lusitano, eu já mostrei o caráter geral da diferenciação em posts atrás, e portanto vou proceder com mais exemplificação aqui, e uma que tente não se distanciar das aplicabilidades, pois que muita ciência se faz em um contexto essencialmente explicativo e não pragmático. Mas farei ao final uma pequena inversão do ônus, de modo procedente, como segue:
O Geotecton apontou corretamente um aspecto de minha resposta que remete à necessidade de formação, mas é importante dizer que esta é uma característica secundária de inestimável relevância. Explico-me: temos algumas exceções de pessoas que efetivamente fazem algo correlato à ciência (ainda neste último Domingo Espetacular, mostrou-se um pesquisador diletante de uma espécie marinha), mas estas só o fazem em campos descritivos cujas bases prescindem de um aparato ferramental que reporte aos fenômenos últimos das coisas. Historicamente a conversa é outra, mas sugeri que já à época de Edison não era mais possível fazer ciência sem uma base teórica dos fenômenos últimos (ver Rutherford). Idealmente, para se fazer ciência, basta estar liberto de dogmas empedernidos, munido de ferramental intelectual passível de discernir fenômenos últimos em contextos objetivos, e capacidade explicativa para dar conta dos motivos e relações observadas. O fato é que, por uma simples questão de contingência e índole acadêmica de perscrutação, estas características serão mais facilmente encontráveis em pessoas devidamente formadas.
Edison se apresenta como uma destas exceções, mas de modo a constituir um âmbito de atuação que é próprio da Engenharia, com suas idealizações de artefatos e mesmo conhecimento prático (filamento de algodão carbonado – não exatamente carbonizado - ao invés de um filete de metal, inicialmente, no caso de Edison). E este conhecimento prático se caracteriza por um cabedal de informações acerca do pragmatismo em questão, e não dos fenômenos últimos associados ao contexto de justificação dos motivos de o referido pragmatismo efetivamente funcionar como tal. Ou seja, tem-se uma posição distinta em relação às nossas ferramentas explicativas. É claro que uma teoria sempre está presente em um ou outro nível, mas a teoria associada em um âmbito essencialmente pragmático costuma ser incipiente, e existente apenas de modo a nortear procedimentos. E não explicações últimas.
Para o engenheiro de máquinas a vapor, no século XIX, o resultado final de suas intenções e de sua prática é uma máquina com rendimento satisfatório que dê conta da aplicação necessária. Para o cientista, o resultado final é compreender termodinamicamente os estágios desta máquina para, além de entender de uma forma generalista os processos envolvidos, chegar ainda conceitualmente nos limites possíveis de rendimento para uma máquina térmica, por exemplo. Para o engenheiro elétrico, o resultado final de sua prática está associada às características de possibilidade de implementação de um processo que dê conta da geração e transmissão da energia elétrica, mais uma vez pensando em questões de eficiência e viabilidade. Para o cientista, é compreender os fenômenos eletromagnéticos últimos, estabelecendo um limite de possibilidades para o que é factível e proposições teóricas preditivas, como a pesquisa sobre supercondutores que minimizem ao máximo as perdas por efeito Joule (perda de energia em forma de calor, através de um condutor percorrido por corrente). Percebe os âmbitos de atuação? Interessante que o engenheiro pode, naturalmente, promover esta última pesquisa exemplificada mas, na medida em que o faz, o faz com uma competência adquirida de modo diverso à sua formação de engenheiro, aprendendo com muito mais profundidade aspectos relacionados à Estrutura da Matéria. Está trabalhando como cientista, portanto. E é absurdamente pequena a possibilidade de alguém proceder proficuamente nesta pesquisa de modo diletante, por métodos meramente inventivos.
Analogamente, para Edison, e pegando apenas um interesse pragmático seu, o resultado final é uma lâmpada de filamento de algodão carbonado (e mais tarde tungstênio), enquanto para o cientista são os fenômenos associados devidamente compreendidos e explicados. E, veja só, é esse conhecimento que produzirá a capacidade para se otimizar, às raias do ideal, um feito prático de âmbito mais específico.
lusitano, tente não cair na imagem facilmente induzida, por isto, de demérito do conhecimento prático, em relação ao conhecimento explicativo. Não tenha dúvidas de que muitos conhecimentos práticos foram mais importantes para a sociedade que muitos conhecimentos científicos teóricos, e as máquinas à vapor são um exemplo disso. Se fôssemos esperar pela ciência, demoraria muito mais para termos um motor à combustão. Mas sem ciência não saberíamos até que ponto pode-se otimizar uma máquina térmica, a não ser o trabalho de tentativa e erro lapidante. A ciência requer explicação. A invenção requer contingência de uso. Mais uma vez, não são noções mutuamente excludentes. Mas o trabalho profissional geral de um pesquisador tenderá para uma ou outra categoria, de modo que temos poucos engenheiros cientistas e poucos cientistas engenheiros, por uma simples questão de objetivos pessoais em relação ao conhecimento.
Pois que, ao não saber ao certo quê argumentação lhe é ainda necessária, faço então a seguinte inversão: para categorizar o trabalho de Edison como científico, é imprescindível que se explicite sua imagem de ciência. Se eu soubesse qual o nível de profundidade de sua visão em relação aos modos de proceder da ciência, ainda que de um modo generalista, dentro de paradigmas consensuais aportados em, por exemplo, Popper, Lakatos e Kuhn, certamente ser-me-ia mais factível engendrar uma dissertação potencialmente esclarecedora para você. Mas já me adianto que, se seu conhecimento a respeito tange apenas o que visses nos referidos documentários, então é natural dares mais peso ao conhecimento enciclopédico consensual propalado por estas mídias.