Eu cresci inserido no contexto social de uma igreja considerada rígida, e acompanho de perto (de dentro, inclusive) que há uma mudança de mentalidade quanto a diversas questões que antes eram consideradas tabus.
O que vocês acham que está acontecendo, as igrejas estão modificando seus critérios, exigindo menos dos fieis, ou os fieis estão desconsiderando as concepções originais e consideram-se religiosos mesmo sendo desprendidos dos conceitos das religiões?
Acho que as duas alternativas são complementares. A igreja é composta por seus fieis, e todo o corpo ministerial constituído é muitas vezes escolhido dentre os próprios fieis (especificamente nas igrejas evangélicas). Assim, a mudança de pessoas é inevitavelmente acompanhada da mudança de pensamento.
Isso falando de igrejas mais tradicionais, como as fundadas até o meio do século passado, quando ainda não havia começado esse aumento exponencial no número de igrejas. Como as pessoas, principalmente jovens, estão cada vez menos isoladas umas das outras e como não é mais possível viver sem esbarrar em diversos dilemas que requerem decisões a serem tomadas, está ocorrendo uma mudança "de baixo para cima".
Para exemplificar: na geração dos meus avós, no meio rural em que foram criados, havia a regra rígida (e religiosa) de que mulheres não usavam calças, apenas saias, vestidos ou similares. E isso não era questionado, porque minha avó, por exemplo, nunca deve ter achado necessário usar uma calça. Durante boa parte de sua vida, não deve ter sequer visto uma mulher de calça. Porém, quando passou a morar em São Paulo descobriu uma coisa fascinante: as mulheres também podiam trabalhar e receber salário, igual os homens. Descobriu que muitas empresas não deixavam as mulheres trabalharem de saia por questões de segurança. Ou seja, se antes a proibição parecia natural e não havia, na mentalidade de uma pessoa simplória como ela, motivo para questionar, para as gerações seguintes a igreja dela precisaria se manifestar sobre o fato, e o que ocorreu foi a liberação do uso de calça para mulheres por questões de trabalho ou prática de atividades físicas. Em outras palavras, foi o contato com uma cultura de mentalidade diferente e a necessidade dos membros de se inserirem nela que causou as mudanças de regras.
E por mais que queira, nenhuma igreja tem o poder para exigir que seus membros abdiquem de serem influenciados da cultura que os cerca. Por mais que se tente, o isolamento é impossível. Até para as mulheres muçulmanas, muito vagarosamente a história já está começando a mudar.
No caso das denominações mais "mercadistas", como as novas pentecostais (mais ou menos da fundação da Assembleia de Deus em diante), me parece claro que a pouca imposição de regras de conduta é um fator para atrair fieis, mas essas igrejas já nasceram com essa mentalidade, então não se trata de mudança. Mesmo assim, apenas o viés mercadológico não poderia ser responsável pelo sucesso dessas igrejas. Elas nasceram mais como uma resposta à mudança de mentalidade dos evangélicos do que o contrário.
Quanto aos fieis se considerarem religiosos mesmo sem o cumprimento das regras, é uma questão quase exclusiva dos católicos, mas também presente em algumas outras religiões e praticamente ausente nos evangélicos. Conheço uma pessoa que se declara católica, mas me disse que jamais foi a uma igreja que não fosse em um casamento ou batizado de um conhecido. Há casos mais raros, como muçulmanos não praticantes (já conheci um). Mas nesse caso, acho que é questão de tempo (leia: questão de gerações) para que essas pessoas passem a se considerar como não religiosas ou então migrem de vez para outras igrejas.
Fugindo só um pouquinho do tema, também há a questão de a pessoa de fato tornar-se de fato irreligiosa, embora continue se declarando como crente para evitar as tensões sociais que infelizmente ainda são geradas contra as pessoas que perdem a fé. Conheço duas ou três pessoas que não acreditam em Deus (inclusive um gay), mas que mais do que semanalmente sentam-se nos bancos da igreja e participam dos serviços como todos os outros, e sei que fazem isso justamente por não quererem enfrentar a inevitável rusga familiar e social que seria criada se decidissem tornar públicas as suas realidades. É óbvio que essas pessoas são virtualmente incapazes de colocarem em prática todos os ensinamentos de uma doutrina mais rígida. Parece secundário, mas o medo da pressão e do preconceito ainda é o principal fator que prende muitos membros em diversas igrejas.