http://esporte.ig.com.br/futebol/2014-09-15/futebol-cresce-nos-estados-unidos-e-pode-ensinar-licoes-valiosas-ao-brasil.htmlAntes rejeitado, esporte cai nas graças dos americanos, que já planejam tornar a liga principal a mais poderosa do mundo até 2022. Astros já foram contratados e segurança financeira e organização são lições para o futebol brasileiro
A Copa do Mundo no Brasil mostrou que o futebol – ou “soccer” – é uma realidade nos Estados Unidos. Além de terem sido os estrangeiros que mais adquiriram ingressos para o Mundial, eles lotaram bares, ruas e estádios para acompanhar os jogos da seleção deles. Mas todo esse interesse não se deu repentinamente. A ascensão do esporte no país norte-americano está diretamente relacionada ao fortalecimento da MLS (Major League Soccer) e à chegada de jogadores consagrados mundialmente. Pode parecer estranho, mas o tradicional e vitorioso futebol brasileiro tem o que aprender com os “novatos”.
A evolução do esporte nos Estados Unidos se deve muito à mudança da liga NASL (North American Soccer League) para a MLS em 1996. A primeira teve notoriedade mundial depois que o New York Cosmos contratou Pelé e Franz Beckenbauer na década de 70, mas acabou sucumbindo devido ao endividamento dos clubes, que gastavam mais com a folha salarial do que arrecadavam. Situação bem semelhante ao que acontece atualmente com o Campeonato Brasileiro, organizado pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol).
Investir na administração do campeonato então foi a solução encontrada. A MLS é gerida como uma empresa, onde os clubes são franquias e os contratos de televisão e patrocinadores são distribuídos igualitariamente. Cabe às franquias respeitarem um teto salarial e o orçamento anual de um pouco mais de 3 milhões de dólares (cerca de R$ 5,4 milhões). Regras estas que asseguram a saúde financeira dos filiados e o nível de competitividade da liga.
A estratégia é elogiada pelo ex-jogador brasileiro Ricardo Villar. Formado nas categorias de base do São Paulo, ele deixou o Brasil aos 17 anos para ser atleta universitário nos Estados Unidos e hoje, aposentado, trabalha em uma empresa que realiza intercâmbio de jovens. “O nosso modelo pré-histórico no Brasil é propício à exploração das entidades através de agendas pessoais, além de atrapalhar o bom profissional também existente no mercado. A gestão fica engessada e limita o planejamento a um médio prazo, que inclusive pode ser destruído na próxima eleição no clube. A MLS já é um produto valorizado e bem administrado, enquanto o Brasileirão é uma competição muito mal ‘marketeada’ ao mundo”, disse ele em entrevista ao iG.
E foi justamente esta segurança que fez o brasileiro Flávio Augusto da Silva investir na compra da franquia do Orlando City. Carioca e torcedor do Flamengo, o empresário acompanhou competições na Flórida antes de fechar negócio e se impressionou com o público. “Nos Estados Unidos, o futebol é o esporte mais praticado entre mais de 20 milhões de pessoas em todo país. Ao ampliar a pesquisa sobre o futebol profissional, percebi que a liga era, na época, a terceira no mundo em taxa de ocupação e a quinta em média de torcedores no estádio. Isso me levou a concluir que o futebol nos Estados Unidos era um fenômeno ainda não percebido pelo mundo”, afirmou à reportagem.
A constatação feita por Flávio também foi comprovada pela Pluri Consultoria. Recentemente, a empresa divulgou um levantamento que aponta os Estados Unidos como o 9º colocado no ranking de maior média de público em 20 torneios do mundo, com 18.743 torcedores. A MLS aparece como a segunda competição com maior ocupação dos estádios, com 91%, atrás apenas de Alemanha e Inglaterra, que possuem 98%.
Os números são também consequência de algo que o americano costuma fazer muito bem: organizar grandes eventos. Os estádios, apesar de pequenos, são extremamente confortáveis e não se economiza na hora de trazer uma grande estrela para atrair o público. O exemplo disso foram as chegadas de David Beckham ao Los Angeles Galaxy, em 2007, e do francês Thierry Henri ao New York Red Bulls, em 2010. De 2008 para 2012, segundo a revista Forbes, o faturamento dos clubes saltou de US$ 400 milhões para mais de US$ 1 bilhão.
O técnico luso canadense Marc dos Santos, que treinou as categorias de base do Palmeiras e do Desportivo Brasil, hoje comanda o Ottawa Fury FC (Canadá) e destaca o esforço dos clubes em busca de seguidores por meio de trabalhos sociais. “Os clubes estão muito aplicados com suas comunidades. Quando eu fui técnico do Montreal Impact FC (da MLS), a equipe e os jogadores faziam visitas a escolas, hospitais e instituições juvenis para divulgar o clube. Desta forma, as pessoas não olham para o clube da cidade como algo à parte, mas sim como algo que pertence e ajuda a cidade”, destacou.
Enquanto no Brasil a CBF exige certificado de formação nas categorias de base do clube sem ao menos conseguir fiscalizar a vida escolar dos jovens atletas, nos Estados Unidos a carreira no futebol e o estudo precisam andar juntos. É bem verdade que os americanos ainda não dispõem de um centro de formação para jogadores, mas sabem exatamente como suprir essa dificuldade: investindo no atleta universitário.
A NCAA (National Collegiate Athletic Association), liga que coordena as competições universitárias de todas as modalidades, tem seu campeonato de futebol, separado por divisões conforme o nível de excelência das escolas. Avaliado em questões teóricas e práticas, o estudante pode ganhar bolsa de estudo se for incorporado ao time.
Foi o que aconteceu com o atacante Richard Osterloh Junior, de 23 anos. Depois de ser dispensado pelo Palmeiras no fim de 2008, Richard decidiu viajar e cursar Administração Internacional nos Estados Unidos por meio de um convite de teste da 2SV Sports & Education, empresa de Ricardo Villar. “Eu aprendi muito aqui. O futebol aqui tem outro estilo de jogo e, sem dúvidas, os americanos priorizam mais a parte física. Passei por três universidades diferentes e percebi a estrutura absurda que eles têm. Trabalhei com técnicos de diferentes países e eles gostam muito de passar vídeos de grandes clubes do futebol mundial, como o Barcelona, e aplicar os conceitos durante os treinamentos. Bem diferente ao que acontece no Brasil, onde os treinadores passam apenas imagens dos adversários antes das partidas”, contou ao iG.
Agora, já adaptado e a um ano de concluir a graduação, Richard não pensa em voltar ao futebol brasileiro. Mas sabe que o futuro está garantido. “Sei que vai ser difícil de ser observado pelo draft da MLS, mas tenho contato com muitos treinadores e acho que isso pode me ajudar a continuar aqui. Não penso em voltar para o Brasil, mas, caso isso aconteça, certamente terei oportunidades no mercado profissional por causa do meu inglês, que hoje é fluente, e da faculdade.”
Embora o esporte universitário seja a principal fonte de talento, as equipes da MLS já se adatpatam à realidade mundial do futebol. “Mais e mais clubes estão construindo as suas próprias bases (ou centro de formação). A partir daí, os jogadores têm mais qualidade, pois são formados de uma maneira melhor e com mais tempo. Diferente do circuito universitário”, diz Marc dos Santos.
Diretor de relações internacionais da empresa que intermediou a viagem de Osterloh, Villar coloca em prática hoje o que vivenciou há alguns anos. Ele se formou em Engenharia de Produção na Penn State University, foi selecionado pelo draft do Dallas para disputar a MLS e, após um ano, resolveu se aventurar por clubes de Áustria, Coreia do Sul, Alemanha e Grécia, até voltar para o Dallas e encerrar a carreira. “Hoje no Brasil sabemos que há imensas dificuldades em conciliar os dois (estudo e treino). Nosso foco não é simplesmente formar jogadores. Oferecemos um planejamento de vida para os nossos atletas”, argumenta o treinador.
Longe de ser o campeonato mais valorizado do mundo – é apenas o 23º, atrás de Bélgica, Romênia e Japão -, a MLS atrai jogadores consagrados devido à qualidade de vida no país. Foi o que aconteceu com os astros Frank Lampard e David Villa, contratados pelo New York City FC, e também o brasileiro Kaká, que jogará pelo Orlando City. Longe de desembolsarem as cifras astronômicas de mercados badalados, os jogadores optaram por atuar em uma liga em ascendência e em um país que está na 16ª posição do ranking de qualidade de vida.
“Se esse jogador já é consagrado, já fez bom dinheiro e constituiu uma família, onde você pensa que ele vai jogar?", questiona Ricardo Villar
“O jogador que não joga na MLS começa a ter mais e mais interesse. Não pelo dinheiro, porque pode fazer melhor salário nos países árabes. Mas sim pelo crescimento do futebol e pela qualidade de vida. Por exemplo, o David Villa perdeu dinheiro ao assinar contrato com o New York, mas a qualidade de vida é tem um peso enorme na decisão”, destaca Marc dos Santos.
O luso canadense ainda exemplifica a situação utilizando um clube brasileiro. “Imagine um jogador que ganha R$ 10 mil no Corinthians e, por exemplo, sai de um jogo e leva porrada de torcedores porque perdeu um pênalti em um jogo importante. Isso nunca acontece aqui. Amanhã, a equipe de Montreal, cidade espetacular, oferece a esse jogador R$ 6 ou R$ 7 mil de salário. Se esse jogador já é consagrado, já fez bom dinheiro e constituiu uma família, onde você pensa que ele vai jogar?”.
Qualidade técnica: ponto negativo, contudo promissor
Com o nível técnico abaixo dos demais campeonatos pelo mundo, a MLS é otimista e prevê um crescimento a curto prazo. Em recente entrevista ao site Máquina do Esporte, o diretor Jeff Agoos afirmou que a liga será a maior do futebol mundial em 2022. Previsão que pode parecer otimista, mas que é adotada também por outros profissionais.
“As maiores ligas do mundo são aquelas que têm o maior faturamento e que têm poder econômico para atrair os melhores jogadores. Portanto os Estados Unidos, maior mercado de marketing esportivo do mundo, somam todos os fatores para que a MLS se torne uma liga grandiosa", diz Flávio Augusto, dono do Orlando City.
O dinheiro já começou a entrar no caixa em maior quantidade. "Em 2014, fizemos uma renovação de nossos direitos de TV com um contrato oito vezes maior que o anterior. A previsão é que o mesmo aconteça na próxima renovação, em 2022, o que dará à liga o poder econômico necessário para a contratação das maiores estrelas mundiais”, conta o brasileiro
A limitação técnica em nada impede exposição do campeonato no mercado, segundo Villar. “Os atletas preferem reclamar de salário atrasado, falta de segurança ou estrutura para treinamentos? A qualidade técnica é uma questão de tempo e crescimento da liga, que hoje tem apenas 18 anos. Não existirá mais esse questionamento daqui a sete anos”, projeta.
A chegada de jogadores campeões na próxima temporada acelera o processo. “Demanda tempo e investimento, mas a liga se estruturou e mostrou ao mundo a que veio. Naturalmente jogadores de alto nível chegarão à liga. Que país você escolheria pra você e sua família viver: Catar ou EUA? Ucrânia ou EUA? Japão ou EUA? Será a mesma pergunta que eles farão. Além da certeza de entrar em uma liga bem estruturada e fazer parte de um projeto que aponta para o sucesso”, completou Flávio.
De acordo com o registro de atletas disponível no site da MLS, dos 22 brasileiros inscritos na competição, seis deles – o correspondente a 27% - foram formados nas categorias de base do São Paulo. Coincidência? Não para Ricardo Villar, que participou da transferência da maioria deles.
“A 2SV foi diretamente responsável por esse número, colocando quatro atletas da base do clube na liga. Na verdade eram mais: Paulo Nagamura (Galaxy, Chivas, Toronto e Kansas City), Marcelo Saragosa (Galaxy e DC United), Leonardo (Galaxy), Juninho (Galaxy), Jackson (Dallas e Toronto) e agora o Kaká (Orlando). E esse numero deverá voltar a crescer com o projeto reativado para a próxima temporada”, garantiu.
Clubes brasileiros já começam a olhar para os EUA
Durante a paralisação da Copa do Mundo, São Paulo e Cruzeiro realizaram uma intertemporada nos Estados Unidos com disputa de partidas amistosas. Os mineiros voltaram para o Brasil com 100% de aproveitamento após cinco partidas, contra Miami Dade FC, América do México, Tigres (MEX) e Chivas.
"Começamos esse trabalho em 2008, pois víamos o país como um mercado promissor, tanto que consolidamos nossas escolinhas de futebol nos Estados Unidos. Mas o calendário nos prejudica muito e não poderemos voltar em 2015. Temos convites, mas as competições não permitem. O futebol brasileiro precisa de reformulação, não é possível que todos (campeonatos) estejam errados e só o nosso esteja certo”, diz Valdir Barbosa, gerente de futebol do Cruzeiro.
Em parceria com o Orlando City, que cedeu o Kaká por seis meses, o São Paulo já não destaca emprestar jovens talentos para clubes da MLS. “Temos um olhar muito promissor. Cada vez mais temos tentado marcar presença dentro dos Estados Unidos, e a China é o nosso próximo objetivo. O São Paulo tem uma estrutura exemplar em Cotia e pode vir a ter o intercâmbio de atletas. Precisamos olhar para o mercado”, afirma Júlio César Casares, vice-presidente de Comunicação e Marketing do clube.
Profissionais apontam problema no futebol brasileiro
A goleada vexatória da Copa do Mundo para a Alemanha alertou para a desatualização do futebol brasileiro. A CBF reconheceu que uma reformulação se faz necessária, mas parou no discurso. Na seleção, Dunga voltou, e o time que disputou dois amistosos na semana passada, contra Colômbia e Equador, teve nada menos que dez jogadores remanescentes do último Mundial. Mudanças no calendário sequer foram discutidas.
“Eu conheço a Europa, onde me formei no Curso de Treinadores da Uefa, trabalhei e trabalho no circuito Norte Americano e trabalhei também no futebol brasileiro durante dois anos. Os grandes problemas atuais do Brasil são a estabilidade, formação dos técnicos e identidade e modelo nas bases. O Brasil deve olhar para a Alemanha como exemplo de formação de técnicos. Para ter melhores jogadores, você necessita de gente formada e com qualidade para ensinar”, opina Marc dos Santos.
Ricardo Villar entende que algumas diretrizes da MLS podem ser adotadas no Brasil. Algo que foi feito pelos atuais campeões do mundo, embora sem nenhuma ligação com o futebol dos EUAS. “A Alemanha foi capaz de encontrar regras controladoras visando a proteção do clube e o bem da liga, tornando a Bundesliga mais sustentável e forte a longo prazo. Por que o Brasil não seria?”, questiona.
Villar sugere algumas práticas. “O teto salarial poderia ser estipulado diante de uma porcentagem máxima de receita do clube, para evitar essas dívidas gigantescas que os clubes têm. E as cotas de TV deveriam seguir uma ordem mais justa de divisão visando a competitividade e a valorização do campeonato nacional. Isso, porém, mexeria mais uma vez no conforto dos que controlam o mercado de forma centralizada. Uma triste realidade de nosso pais em todos os seus principais setores.”