TRAFICANTES VENEZUELANOS DE MARMITA: TESTANDO OS LIMITES DA ESTUPIDEZ ECONÔMICAAtualmente, a Venezuela vive uma crise terminal, uma espécie de metástase de todas as políticas econômicas socialistas implementadas pela revolução Bolivariana desde 1999.
por Rafael Hotz 27 de julho de 2014
Uma anedota do jornal Valor Econômico
do dia 14/03/2014 nos chama a atenção:
“Motociclistas compram cerca de 30 hambúrgueres no lado venezuelano por cerca de 60 bolívares cada um e revendem do lado colombiano”, revelou o ministro, em San Cristóbal. O contrabando fronteiriço agrava a escassez porque, em busca da vantagem econômica da diferença cambial, produtos que deveriam ser consumidos na Venezuela são transportados para Cúcuta.”
Fica a questão: como explicar uma bizarrice dessas?

Atualmente, a Venezuela vive uma crise terminal, uma espécie de metástase de todas as políticas econômicas socialistas implementadas pela revolução Bolivariana desde 1999.
No entanto, desde as primeiras intervenções, a sequência lógica já poderia ser prevista por aqueles que possuem um ferramental teórico adequado. Em seu curto e clássico livro
“Intervencionismo”, Ludwig von Mises descreve as consequências básicas de um processo típico.
Esse processo começa com governos tentando burlar a
dura realidade da escassez em busca de conceder benesses para seu “público alvo”. Para tanto, passam a incorrer em emissão de dívida pública e impressão de moeda para apossarem mais recursos.
Obtendo esses recursos, que na prática são recursos drenados do setor privado, os políticos e burocratas podem conceder benefícios de toda a sorte aos seus aliados, seja na forma de empréstimos a juros baixos, anúncios de obras públicas, programas assistencialistas e tudo o mais que mais possa render apoio de curto prazo.
Devido ao fato de nenhuma riqueza adicional ter sido produzida nesse processo de emissão de dívida e impressão de moeda, a dura realidade da escassez começa a se fazer sentir com o passar do tempo. Inflação de preços e maus investimentos começam a fazer o setor empresarial e os consumidores a sofrerem com preços altos e gargalos produtivos.
Nesse ponto inicia-se a próxima rodada de intervenções. As coisas estão caras após a moeda impressa se espalhar na economia? Vamos fazer controles de preços! Vamos emitir mais dívida para cobrir o desfalque no orçamento e conceder mais benefícios!
Faltam verbas para finalizar os investimentos infundados e obras públicas sem sentido econômico? Vamos imprimir mais dinheiro, emitir mais dívida, conceder mais subsídios, praticar protecionismo até que as obras e os investimentos vinguem!
1. A Marcha Rumo Ao Planejamento Central Na Venezuela
A situação venezuelana seguiu em boa parte o script acima. O chavismo, numa caricatura tosca do regime cubano, porém com esteroides de plataformas de petróleo, ampliou gastos ligados a assistencialismo ao passo que solapava a economia de mercado.
A gastança foi financiada em parte por emissão de dívida pública e inflação. Abaixo temos a evolução da oferta monetária básica venezuelana desde 1998. Vemos que depois de 2007 as impressoras venezuelanas saíram do controle.

Abaixo temos a evolução da dívida pública em relação ao PIB. O período de queda pós 2004 até 2008 pode ser correlacionado ao take-off do preço do petróleo, no gráfico seguinte.


Assim como uma doença vai se apoderando de seu hospedeiro, o sistema socialista, baseado na agressão institucionalizada, foi canibalizando o setor produtivo venezuelano para sua própria expansão.
De 2002 a 2011 o governo roubou (literalmente tomou para si próprio)
nada menos que 988 empresas. Somente em 2007, o chavismo roubou da Exxon e ConocoPhillips
ativos estimados em US$30bi!
Poderíamos passar horas discutindo sobre a escalada nos gastos com o exército, criação de milícias paramilitares, controle governamental da mídia, propaganda ao estilo soviético, subjugação do Judiciário e Legislativo ao Executivo, etc.
Mas ainda queremos explicar porque há venezuelanos tirando seu ganha-pão contrabandeando marmita para a Colômbia, correto?
Voltando, toda aquela moeda impressa para sustentar o teatro chavista começou impactar a inflação de preços (gráfico abaixo). Se a inflação venezuelana
oficial sempre esteve acima de 10%, sabe se lá em que patamares esteve a
inflação real.

Com uma crescente cesta de produtos venezuelanos mais caros em bolívares do que a mesma cesta de produtos com seus preços no exterior já convertidos, os dólares do petróleo passaram a ser cada vez mais procurados para financiar importações.
Aí a lógica do intervencionismo, já explicada por Mises, volta a agir.
Conforme os bens vão sendo importados, isso deveria levar a uma depreciação do bolívar frente ao dólar e as demais moedas. Afinal de contas, há cada vez mais bolívares sendo ofertados em troca de uma dada quantidade de produtos estrangeiros.
Ou seja, o sistema de preços estaria sinalizando que a orgia de gastos do chavismo teria chegado a seu limite, dada a restrição do mundo real – a escassez de produtos que a Venezuela produz e é capaz de oferecer em troca de divisas (dólar, euro, reais, etc.).Entretanto, uma nova intervenção foi utilizada – congelar a taxa de câmbio. Mas as intervenções não param por aí. Isso porque o congelamento do cambio permite aos venezuelanos continuarem demandando dólares artificialmente baratos para importar produtos.
Ou seja, a Venezuela chavista passou a consumir as reservas de dólares advindas do petróleo, ampliando seus gastos acima de sua produção. Em suma, o sistema econômico foi se descapitalizando, incentivando cada vez mais o consumo e cada vez menos a produção.
Conforme o consumo aumenta, ou, em outras palavras, conforme cai a poupança, menos recursos reais podem ser destinados aos investimentos. O parque produtivo se deteriora, ficando obsoleto e com métodos produtivos cada vez menos eficientes e competitivos. Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não é mera coincidência!
A essa altura, o problema vem de todos os lados. O governo continua imprimindo moeda, passou a sustentar uma taxa de cambio artificialmente alta e seu parque produtivo vai se tornando cada vez mais débil.
Hora de arrumar a casa? Nada! Hora de mais intervenções!
Seguindo o receituário já previsto por Mises, a próxima intervenção é dupla. O governo resolve controlar o problema do consumo via controle de capitais. Ou seja, ele passa a determinar
de forma arbitrária quem consegue ou não os dólares, as taxas, e que produtos vão ser importados.
A segunda intervenção é impor controles de preços, algo que equivale a tentar reduzir o calor alterando a
escala do termômetro.
Essas duas intervenções representam o último passo antes da catástrofe hiperinflacionária. Representam também a implantação concreta de uma economia centralmente planificada. ´
Na ausência de mercados genuínos, com empreendedores comprando e vendendo bens de consumo
e bens de capital, a produção perde qualquer guia racional. Não há mais um sistema de preços capaz de guiar o próprio planejador central.
Produzem-se coisas para a quais não necessariamente há demanda. E não se produz coisas para as quais há demanda. O horizonte temporal do planejamento é impossibilitado ir além de alguns meses, tornando qualquer empreendimento mais complexo inviável. O parque produtivo se torna cada vez mais primitivo.
Isso nada mais é do que o clássico argumento de Ludwig von Mises para a impossibilidade do socialismo –
a ausência de cálculo econômico racional.
2. Afinal, Por Que Temos Contrabandistas de Marmita na Venezuela?
A Venezuela chavista seguiu à risca este mapa do intervencionismo. Sua particularidade é ser mais aberta politica e economicamente, por exemplo, do que foram Cuba, Coréia do Norte, URSS, Leste Europeu e China Maoísta. Ao invés de eliminar totalmente e logo de cara o setor privado, o mesmo passou a ser eliminado e regulamentado gradativamente.
Apesar dos controles de capitais, as fronteiras ainda são relativamente abertas – basta subornar alguns soldados e seu problema será resolvido.
O estágio de escassez crônica, inflação, intervencionismo, violência urbana e ausência de instituições sólidas gerou uma situação semelhante ao do Brasil dos anos 80. Nas palavras de Mises, a Venezuela hoje se encontra num crack-up boom, ou seja, uma corrida para a hiperinflação.
Nesse ponto, a
queda na demanda pela moeda nacional passa a ser tão relevante para a inflação do que o próprio aumento de sua oferta.O desespero para proteger seu patrimônio do imposto inflacionário e dos controles governamentais levam as pessoas a estocar bens reais que possam servir como reserva de valor, tais como carros, moeda estrangeira e até mesmo ações de empresas! As pessoas recebem seus salários e correm para os supermercados, na esperança de encontrar algo!

Abaixo temos a taxa de câmbio do dólar no mercado negro Venezuelano (em azul), comparada à taxa oficial. Interessante notar sua correlação com a disparada da inflação no gráfico acima.

Gráfico do mercado acionário de Caracas, com o crack-up boom:

Com os controles de preços, muitos produtos na Venezuela, quando disponíveis, são bem mais baratos do que na vizinha (pró-mercado) Colômbia. O caso da gasolina é emblemático, uma vez que a Venezuela é grande produtora e o governo subsidia os preços – segundo a reportagem do Valor, um tanque de 60 litros custa apenas 5,8 bolívares.
O que fazer então? Encher tanques de gasolina, preparar umas quentinhas e levar tudo para a fronteira da Colômbia em busca de dólares. Será mais fácil achar compradores do lado colombiano, já que o peso colombiano possui um poder de compra em dólares muito maior do que o bolívar [1]!
Na cotação oficial,
um dólar turismo custa 12 bolívares, quando disponível. Já o dólar do mercado paralelo vale ao menos
60 bolívares. Obviamente nosso trader terá que dividir os lucros com os soldados da fronteira (propina), mas ainda sim valerá a pena!
O site Zero Hedge veiculou matéria mostrando que toda a estupidez econômica do chavismo pode fazer
um dólar virar US$174.000, explorando os diversos loopholes!
Ou seja, na Venezuela, para conseguir comprar algo
sem ser marcado como gado numa fila, é necessário antes levar produtos para a Colômbia, vender e trazer dólares de volta, com o intuito de comprar no mercado negro.
Esse é o socialismo do século XXI! Cozinhar quase que de graça para um colombiano em troca de uns míseros dólares para conseguir comprar algo no mercado negro venezuelano!
Esse processo é doloroso e corresponde à dolarização da economia por forças espontâneas de mercado. Aqueles que são incapazes de contrabandear bens ou de obter dólares legalmente serão forçados a ver seu poder de compra em bolívares se esfacelar cada vez mais rápido.
3. Conclusão – Protestos de Elite?
Sob a luz desses fatos, podemos compreender porque há uma série de levantes ocorrendo na Venezuela.
O socialismo chavista, enquanto sistema econômico, morreu. Contudo, o chavismo fez o que todos os sistemas socialistas fizeram ao longo do tempo: construiu um sólido poder político, institucional e militar. E é contra esse aparato que o povo terá que lutar daqui em diante.
Por hora há estudantes e pessoas mais conscientizadas dos fatos reais nas ruas lutando contra o governo. O tabuleiro irá de fato mudar apenas quando a população cliente do assistencialismo chavista perceber que foi ludibriada em direção a um beco sem saída.
A revolução bolivariana, estampada nos Bolívares Fuertes emitidos pelo Banco Central Venezuelano, já não vale mais nada.
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[1] Está ocorrendo um ajuste econômico. Bens artificialmente baratos estão fluindo do país mais pobre e com menor poder de compra (Venezuela) para o país com maior poder de compra e preços naturais (Colômbia). No contexto, é a única forma do bolívar reduzir sua depreciação frente ao dólar, mas às custas de uma maior escassez de produtos do lado venezuelano (e maior abundância do lado colombiano).Rafael Hotz
Paulista, formado em Economia pela Unicamp. Trabalha no mercado financeiro, no segmento de securitização.
Fonte:
http://spotniks.com/traficantes-venezuelanos-de-marmita-testando-os-limites-da-estupidez-economica/