Nada disso faz sentido fora do contexto histórico em que se desenvolveu a composição destes textos.
Para a maioria dos seguidores das religiões judaico-cristãs ( islâ incluso ), estes textos já surgem prontos e acabados, revelados por Deus ou como registros do que Deus revelou.
Claro que isto é uma fantasia. Você pode traçar a origem do livro de Gênesis em religiões mesopotâmicas ancestrais, que influenciaram grandemente a religiosidade dos cananitas.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Mitologia_sum%C3%A9riaOs cananitas ainda eram politeístas muito tempo depois da época em que os religiosos afirmam que os hebreus teriam sido designados como povo eleito do único deus. Adoraram especialmente a Baal, uma divindade de origem fenícia, que por sua vez parece ter sido inspirado por anteriores religiões mesopotâmicas e do Egito.
https://pt.wikipedia.org/wiki/BaalÉ preciso compreender que a bíblia é uma colcha de retalho de muitos textos de diversos autores, escritos em épocas diferentes, sob contextos diferentes ( e até religião outra ), muitos baseados em anteriores tradições orais, e que foram muito alterados e continuam sendo, de uma forma ou de outra, até os dias de hoje.
Supostamente a bíblia deveria ser um livro que nos dá conta do plano de Deus para a humanidade, mas só passou a existir a partir do século IV, quando a Igreja Católica, por meio de vários concílios, começou a decidir o que era e o que não era a palavra de Deus. Sendo que o último concílio realizados pelos homens para definir a Palavra de Deus foi o de Trento, em 1545. Antes disso o que havia eram muitos textos, os quais já haviam sido substancialmente alterados, e que eram referenciados ( com diferentes versões ) em diversas ramificações do judaísmo. Sendo o próprio cristianismo, no seu início, também um tipo de judaísmo.
https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A2non_b%C3%ADblicoBom, o caso é que você juntar textos de autores, religiões e épocas diferentes, escritos sob diferentes condições e propósitos, em um único livro com a pretensão de expressar um único discurso teológico coerente é absolutamente impossível. As religiões biblicamente baseadas tentam realizar essa impossibilidade por meio de uma exegese obscura, empolada e incrivelmente complexa.
Mas para quem vê este livro como o que ele realmente é, discutir estes argumentos é uma absurda perda de tempo.
Só a título de exemplo, nós podemos ainda hoje observar claramente em várias passagens do texto bíblico que muitos autores tinham uma concepção religiosa politeísta, e a ideia de um deus único não fazia o menor sentido para eles.
Note que quando Moisés confronta os sacerdotes do Faraó, os deuses egípcios existem, são reais. Invocados pelos sacerdotes, comparecem e realizam milagres. Mas que são sobrepujados pelo poder do deus invocado por Moisés. Aqui o autor, como também em outras passagens, quer demonstrar que esse deus em particular é mais poderoso que outros, mas obviamente não é único.
Em Êxodo 32, após Moisés ter se ausentado apenas uns poucos dias, os hebreus no deserto abandonam YAWEH e confeccionam um bezerro de ouro e passam a adora-lo.
Para quem não sabe como a bíblia veio a se tornar a bíblia esta é uma estória estúpida demais para que alguém tivesse sido estúpido o bastante para escreve-la. Os homens daquele tempo não eram menos inteligentes: não faria sentido algum que, pouco tempo depois de terem testemunhado portentosos milagres ( pragas, mares se abrindo, etc e tal... ), aquela gente tivesse a ousadia de renegar Deus e se curvasse diante de um ídolo de ouro.
O autor não seria imbecil de escrever tal coisa porque pareceria absurdo para seus contemporâneos.
Tanto quanto deveria nos parece absurdo agora.
Então por que alguém, de fato, escreveu alguma versão parecida com isso?
A resposta é óbvia: tanto o autor como os seus contemporâneos não eram monoteístas! O touro era uma das representações comuns de Baal, um dos deuses mais importantes para os cananitas quando surge a versão original do relato do êxodo. Talvez ainda em forma oral.
![](http://4.bp.blogspot.com/-YM2bX1PhfB4/TiAvqrLLHuI/AAAAAAAAAsM/ja9mQliH15M/s320/18-3-2-a.jpg)
Logo, para as pessoas naquele tempo, politeístas como eram, não era absurdo que quando um deus parecesse falhar, elas se voltassem para outro. Portanto alguém não estava inventando uma fábula tão inverossímil o quanto ela iria se tornar no contexto da bíblia cristã.
Apesar das prováveis muitas modificações ainda podemos ler:
1 Mas vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de Arão, e disse-lhe: Levanta-te, faze-nos deuses, que vão adiante de nós; porque quanto a este Moisés, o homem que nos tirou da terra do Egito, não sabemos o que lhe sucedeu.
2 E Arão lhes disse: Arrancai os pendentes de ouro, que estão nas orelhas de vossas mulheres, e de vossos filhos, e de vossas filhas, e trazei-mos.
3 Então todo o povo arrancou os pendentes de ouro, que estavam nas suas orelhas, e os trouxeram a Arão.
4 E ele os tomou das suas mãos, e trabalhou o ouro com um buril, e fez dele um bezerro de fundição. Então disseram: Este é teu deus, ó Israel, que te tirou da terra do Egito.
Quando alguém inventou a versão ancestral que originou a esse texto não parecia tão idiota porque naquele contexto religioso havia um panteão de deuses competindo pelas afeições do povo. Então nessa história o povo apenas comete um pequeno equívoco, considerando que foi outro dos deuses preferidos ( Baal ) quem os libertou do cativeiro.
![](https://lh6.googleusercontent.com/-1metwZwMMFI/TXUbMl92eQI/AAAAAAAAAJM/IMt4GBwN1P0/s320/baal-o-deus-dos-hebreus1.jpg)
Agora, retomando as suas considerações sobre o Gênesis, no livro The History of God, da historiadora Karen Armstrong, ela demonstra que as raízes desse livro se encontram em antigos mitos de criação de religiões mesopotâmicas. E o interessante é que estes povos eram perfeitamente conscientes de que estas estórias eram mitos. E não havia nenhuma pretensão de que estes mitos devessem ser tomados literalmente.
Ainda hoje isto está clarríssimo no próprio texto, que é totalmente escrito em estilo de fábula.
Se a intenção do autor fosse escrever algo para ser entendido como um relato literal da Criação, não teria inventando deuses modelando e soprando bonequinhos de barro, mulheres saindo de costelas, Adão sendo levado para nomear, um a um, todos os animais da Terra, etc...
É claramente uma fábula e para ser entendida como tal. É o mesmo estilo que encontramos em quase todos os outros mitos de criação, em quase todas as culturas.
É irônico que homens modernos interpretem literalmente algo que povos de 6 mil anos atrás enxergavam claramente se tratar de fábula.