Era feito aquela gente honesta, boa e comovida, que tem, no fim da tarde, a sensação da missão cumprida. Eu tenho medo do cidadão de bem.
O cidadão de bem não gosta muito das minorias (são vagabundos e/ ou pervertidos), a não ser que ele se torne um, ao votar num candidato derrotado: aí ele se afirma injustiçado ante um governo autoritário e corrupto.
O cidadão de bem não faz caridade, nem aprova políticas sociais: quem não tem onde morar e passa fome deve torcer para um governante liberal diminuir a carga tributária e fomentar a economia; assim, em uns 5 anos talvez o pobre consiga um emprego e possa comer.
O cidadão de bem acha que bandido bom é bandido morto, que as ONGs só defendem os direitos humanos dos bandidos. Mas quando o filho vai preso por matar alguém em um racha, por tráfico de drogas ou por incendiar um índio, ele rapidamente "mexe os pauzinhos" para tirá-lo da cadeia.
O cidadão de bem faz loas à polícia truculenta (verdadeiros heróis contra a bandidagem), daquelas que chacina em penitenciárias, praças e bares periféricos, mas desacata de forma preconceituosa e tenta dar carteirada ("Você sabe com quem está falando?") quando tem problemas com a lei.
O cidadão de bem adora um militarismo, assiste à parada de 7 de setembro e sempre reclama da falta de dinheiro das Forças Armadas, mas "agiliza os contatos" para que o filho não preste o serviço militar obrigatório.
O cidadão de bem é defensor da ordem pública e da justiça, mas sempre tenta burlar tudo, seja furando filas, seja subornando fiscais quaisquer.
O cidadão de bem é democrata mas tem certa nostalgia da ditadura, "quando havia ordem"; cristão, defende a pena de morte e é contra o aborto (a não ser que sua filha adolescente fique grávida) e qualquer movimento popular (grevistas, ambientalistas, defensores de minorias, manifestantes em geral).
O cidadão de bem chama posseiros e até índios de vagabundos parasitas, mas usa o tal "direito à propriedade" para defender latifúndios.
O cidadão de bem vota em políticos com anel de doutor que empreendem grandes obras viárias (só para carros), constroem mais presídios que escolas, endurecem leis criminais e ignoram desigualdades sociais, usam força policial contra manifestações pacíficas e conduzem higienizações sociais, removendo os pobres do centro.
O cidadão de bem anda armado para se defender dos bandidos. E eventualmente, para lavar a honra com sangue, como um certo diretor de grande jornal.
Enfim, onde há injustiça, miséria, violência e morte, lá está o cidadão de bem. Mas deve ser coincidência.
Folie a Deux