Cotas na universidade: sobre brancos desonestos e negros “de alma branca”Uma das críticas mais comuns à política das cotas é a que acha que brancos desonestos vão se declarar negros para entrar na universidade. Quem a faz não entendeu como o racismo funciona no Brasil.
Em seu livro Jacobinos Negros, C.L.R. James explica como era entendida a mestiçagem na Ilha de São Domingos, a futura república do Haiti. A descendência de brancos, pretos e mestiços tinha 128 divisões, diz James. Por exemplo, “um filho de um branco com uma mestiça negra era considerada um quadrarão, com 96 partes de branco e 32 partes de preto”. Essas frações relativas entre si iam se combinando conforme a “mistura” do sangue e podiam chegar a 127 partes brancas e uma parte negra. Mas mesmo neste último caso o indivíduo era considerado negro, ou melhor, “de cor”.
Nos Estados Unidos, uma pessoa de ascendência negra também é considerada negra, ainda que seu antepassado africano esteja tão afastado no parentesco que ninguém a reconheça como afro-descendente olhando sua aparência.
No Brasil, acontece o contrário. Pouca gente lembra que o maior escritor brasileiro era negro. Machado de Assis chegou, no máximo, a ser reconhecido como “mulato”. O mesmo pode-se dizer do padre José Maurício Nunes Garcia, talvez nosso maior compositor sacro. E contemporâneo do também “mulato” Aleijadinho.
Nossa classe dominante nacional, branca, européia e racista não conseguiu apagar a origem negra desses gênios. Então, deu um jeito de dizer que quando ela se manifesta, o faz em sua forma mulata. A contribuição negra original seria aquela ligada ao trabalho braçal. Sua transformação em manifestação espiritual somente se explica como produto da contaminação pela “cultura superior” do branco. Uma evolução em que negros tornam-se menos negros.
Os exemplos de Machado, José Maurício e Aleijadinho poderiam ser citados como casos em que o talento aflora apesar dos preconceitos. Portanto, provariam o contrário do que quer a política de cotas. Mas, dizer isso seria o mesmo que condenar milhões a permanecer no analfabetismo, na pobreza, na fome, porque os verdadeiros gênios vencem todas as dificuldades. Os três exemplos citados se fizeram notabilizar apesar de sua condição social de discriminados. Mas se a discriminação não existisse, talvez pudéssemos citar mais 10 ou 20 casos parecidos.
Por outro lado, conhecemos a famosa consideração branca para com o “negro de alma branca”. Ela foi inventada por racistas, mas assumida pela população negra em geral. Na verdade, o famoso mito da democracia racial é a ditadura do mito do branco cordial em relação ao negro submisso. Algo surgido após a abolição para compensar o fato de que não havia como integrar os negros libertos no sistema de produção, já ocupado pela força de trabalho européia. Nesta situação, restou para o ex-escravo dois caminhos. O da mendicância e do favor e o da resistência e da luta. Ambos foram trilhados. Mas, a classe dominante bloqueou o segundo com firmeza. Episódios como a Revolta da Vacina ou o Levante da Armada foram esmagados sem piedade. E a história dos vencedores os classificou como rebeldias de um populacho desesperado e ignorante. Não como movimentos liderados por negros lutando para dar um rumo único para semi-escravos e proletários recém surgidos.
Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. O ditado popular dá bem conta do processo de internalização da inferioridade da condição de negro que atacou os filhos e netos da continente africano. Esmagadas as revoltas, o caminho do favor e da mendicância foi pavimentado pela cordialidade cínica daqueles que foram senhores e passaram a ser patrões. Uma cordialidade que deveria envergonhar o negro pela revolta que sentia em sua condição de excluído. Que procurava fazê-lo aceitar sua cor como brutalidade e desculpá-la assumindo a pretensa bondade branca. Que queria, enfim, combinar sua origem negra com a “alma branca” e o tornar digno da convivência com quem o escravizou.
É certo que na última década assistimos ao surgimento (ressurgimento, é provável) do orgulho negro. É o caso dos “manos” do rap. Mas está para ser provado que essa consciência tenha chegado à maioria da população negra. Na verdade, tais manifestações ainda fazem parte do caminho da resistência e luta sempre interrompido violentamente pela classe dominante.
Infelizmente o mais provável é que os próprios negros tenham dificuldades em afirmar sua identidade. Que sintam constrangimentos em fazer valer seu direito às cotas. Que sejam chantageados pelo discurso de que as cotas são uma medida paternalista. Este tipo de chantagem tem que ser respondida com a verdade histórica. A verdade da condição de trabalhador escravo de um país que foi um dos últimos a abandonar essa forma de exploração da força de trabalho humana. A mais baixa e vil de todas. Mas esse será o tema de nosso próximo artigo, quando abordaremos as cotas como política de compensação e não apenas de afirmação.
Neste artigo faremos um ponto final dizendo que é importante considerar a reserva de vagas para negros na universidade uma política de afirmação. Afirmação porque leva a que as maiorias excluídas de um setor em desvantagem histórica como os negros se manifestem. Oferecer vagas em condições especiais para afro-descendentes em universidades é uma forma concreta de fazer pessoas que se escondem sob a condição de “parda”, “mulata”, “escura”, enxergarem a importância de se afirmarem negras. Ainda é pouco, em diversos sentidos. Mas de nenhuma maneira no sentido de impedir que tais políticas continuem a existir e sejam aplicadas.
A proverbial malandragem nacional fará das suas. Haverá aqueles de olhos claros, cabelos cor de palha e avós europeus que tentarão se aproveitar da situação. Mas serão minoria. Se é difícil para o negro se assumir como tal, que dirá para os brancos. Mas se entre esses últimos houver aqueles que falseiem sua origem étnica para tirar vantagem, sempre é possível fazer valer a lei, que prevê crime de falsidade ideológica e a correspondente punição. O que não se pode fazer é usar das possibilidades de fraude para considerar a regra como inaplicável.
http://www.espacoacademico.com.br/023/23cdomingues.htmNão tem nada disso Bruno, é realmente um exagero, igual o exagero das imagens de bronzeamento para facilitar o vestibular. Na mesma linha. Eu fiquei incomodado com a brincadeira e fiz um comentário sarcástico. Mas é que as brincadeiras me pareceram algo racista.
Não foi tanto um exagero. Se você tiver na pele a cor considerada pelos comissões de pureza racial presentes nas universidades, você não precisará mais de uma nota tão grande para ser aprovado...
Fácil ver os possíveis problemas do sistema de cotas. Claro que tem aspectos negativos, mas a inserção social dos negros na elite brasileira, nos que determinam o rumo da sociedade é importante. A universidade pública tem um papel importante nessa formação. Ao meu ver negar a existência do racismo no país é a principal forma de preconceito, é o preconceito velado.