Para o bem ou para o mal, se dependesse dos fundamentalistas as religiões mais antigas teriam uns duzentos anos de idade.
Creio que nesse ponto você se equivoca: mesmo que não fossem chamados de fundamentalistas, foi só recentemente (em termos históricos) que se passou a questionar a interpretação literal da Bíblia. De certa forma, todos os cristãos eram fundamentalistas até poucos séculos. O mesmo pode ser dito de outros religiosos. É a interpretação "liberal" que é recente.
O Cristianismo é um caso um tanto peculiar, assim como as demais religiões abraâmicas. Seja como for, estou falando dos tempos atuais; mantenho minha afirmação de que se dependesse apenas dos fundamentalistas, hoje em dia, dificilmente se encontraria alguma religião com mais de duzentos anos de história com alguma vida em suas fileiras.
"Hoje em dia" significa: hoje, após o Iluminismo, a Revolução Científica e a Revolução Industrial. O fato é que, em termos históricos, "hoje em
dia" é um período bastante peculiar da História. A questão então é: se dificilmente se encontraria alguma religião com mais de duzentos anos de história com alguma vida em suas fileiras, isso é devido a um mérito próprio da Religião, ou ao contexto das revoluções acima citadas?
Da mesma forma que não faz sentido afirmar (hipoteticamente, claro ) "Todos os congressistas são corruptos, mas o Congresso não o é", não faz sentido tentar redimir os fundamentalistas pela suposta inocência da religião.
Não fiz isso. Fundamentalistas são uma praga, um instrumento da decadência. Mas são também um mal exemplo da religião, uma amostra viciada.
Estou perfeitamente ciente de que a religião não é inocente, e muitas vezes, pelo contrário, só consegue se corromper mais com a passagem do tempo. Ainda assim a sua meta é muitas vezes válida e sua capacidade de se purificar e corrigir seu rumo nem sempre falha.
Lamento, Luiz, mas aqui você parece estar caindo na falácia do escocês.
Pode parecer, mas estou é combatendo uma falácia do espantalho, vulga generalização indevida...
Embora eu tenha feito realmente uma generalização, não diria que se trata de um espantalho: a imensa maioria das religiões, e principalmente
aquelas com maior apelo popular, estão, na maior parte do mundo, atreladas às estruturas do poder, atuam para propagar superstições e (na prática) ajudam a manter divisões (embora nem sempre as causem. Ver: Líbano atualmente). Você defende a existência de uma mensagem positiva embutida nas crenças religiosas, o que não nego. O problema é que na prática essas crenças costumam envolver mais que uma ética ou uma metafísica. E mesmo com a melhor das intenções, as crenças religiosas, por se basearem em hipóteses não-falseáveis, dogmas e interpretações de livros sagrados (na maioria das vezes), mostram-se excelentes instrumentos para a manipulação das massas.
Além disso, quando os próprios livros sagrados defendem o genocídio, a guerra e a misoginia, fica difícil defender as posturas dos crentes liberais.
Se você se refere a cristãos que preferem desconsiderar os absurdos da Bíblia, eu acho perfeitamente viável defender suas posturas. No mínimo eu não os acusaria de incoerência; para mim um bom cristão, assim como um bom filho, pelo menos TENTA se livrar dos absurdos que herdou para deixar a casa na qual teve origem mais em ordem.
Esses cristãos tem o meu respeito. Também não nego os benefícios que a religião oferece. Eu diria até que, tanto o cristianismo como o Islã tem a seu favor o seu universalismo: todos podem ser salvos, todos podem se tornar muçulmanos, não existe "raça escolhida" ou casta especial.
Esse universalismo tem algumas consequências boas, mas outras são bem nocivas.
Porém, existe o outro lado da moeda: ambas são religiões proselitistas, e que, por isso mesmo, inadvertidamente ajudaram a semear a discórdia e a guerra. Uma religião que conseguisse se livrar da bagagem de proselitismo, superstição e dogma, a meu ver se tornaria indistingüível de uma escola filosófica.
Pois elas existem, e não são tão poucas assim. Mas você provavelmente vai considerar (por exemplo) o Confucionismo uma escola filosófica em vez de uma religião.
Exato.
Entendo, porém, o seu ponto de vista. Mas saiba que ele se refere a uma espécie de "ideal platônico" de religião, não ao que se encontra no mundo real.
No mundo real Francisco de Assis e Lutero se revoltam contra absurdos do Catolicismo, Shinram Shonim contra absurdos do Budismo japonês.
Heh... E a que fim levaram os ideais de Francisco? E quantos absurdos não decorreram do Luteranismo?
Não entendi a primeira pergunta. Pode elaborar?
Que mudança fundamental no catolicismo foi causada por Francisco? O que de essencial mudou na Igreja?
No mundo real, monges budistas escravizavam um povo inteiro,
O Tibete? Há mudanças vindo, ainda que certamente não da forma ou velocidade ideal. Acho um tanto exagerado chamar a servidão do povo tibetano de escravidão, de qualquer forma. A informação que tenho é naturalmente distante E suspeita, mas de qualquer forma nunca vi essa palavra ser usada para descrever tal situação antes.
Ok. Hipérbole. A palavra correta era servidão. Mas isso serve para ilustrar um dos problemas da religião: mesmo seus ideais de pacifismo e igualdade costumam ser convenientemente colocados de lado quando entram em conflito com o status quo.[/quote]
Outra generalização perigosa. Religião costuma ter um elemento de revolta contra o status quo. Tanto que temos bancadas evangélicas querendo mudar o status quo aqui no Brasil - embora, novamente, eu não goste de generalizar a partir do Cristianismo.
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Até que elas
se tornam o status quo. Como resistir a criar uma ordem social imutável, quando se se acredita conhecer a verdade última do Universo?
E quando o status quo se confunde, na mente dos crentes, com uma ordem cósmica, ele se gera sociedades estáticas e injustas.
Religião é feita por humanos; não subestime a vontade humana de ver mudanças.
Realmente, não a subestimo. Porém, guiando-nos pela História, podemos ver que tais mudanças quase sempre consistiam de "mudar, para que tudo continuasse o mesmo". Isso é verdade não só para as religiões, como para outras tentativas de engenharia social motivadas pela submissão a uma idéia. É justamente essa submissão que critico.
hindús realizam ataques terroristas contra muçulmanos,
E santos hinduístas resolvem fazer alguma coisa a respeito.
e cristãos tomam parte em cruzadas.
E questionam depois a justiça e a sabedoria dessas aventuras.
Séculos depois, você quis dizer?
Não tenho motivos para crer que não houvesse pelo menos um início de questionamento já na época, Manhattan. Mas mesmo que leve séculos, ainda assim é um questionamento. Como você bem lembrou, hoje em dia a informação e as mudanças são bem mais ágeis, e não é apenas porque a religião cristã não é mais tão influente.
Nesse ponto, não tenho dados para afirmar uma coisa ou a outra. Penso que a propensão ao altruismo é um dom natural dos seres humanos, mas que se desenvolve de formas diferentes em cada um. Independentemente da religião.
Se o mundo está melhor hoje em dia, não é por causa de uma religião ou outra, mas devido ao surgimento de uma aldeia global, que permitiu a derrubada do tribalismo, do qual as religiões são algumas da maiores expressões.
Eu compartilho da sua simpatia pela aldeia global, bem como da desconfiança do que as religiões são na prática, mas ainda acho apressada essa declaração, principalmente porque é uma generalização um tanto exagerada. Principalmente ao chamar TODAS as religiões de expressões do tribalismo.
Concordo que se trata de uma generalização. Mas será exagerada?
Já que você pergunta diretamente: sim, é exagerada.
Mesmo que algumas não seja expressões de tribalismo, o tribalismo acaba se expressando através delas. Humanos são humanos.
Novamente: é a submissão a uma idéia, a ausência de questionamento e a crença num conhecimento total que torna as religiões potencialmente perigosas.
O tribalismo pode se expressar de formas mais sutis: aqueles que podiam ser mortos por serem de outra tribo, agora são os que podem ser mortos por serem infiéis/hereges [1]. As exortações de Cristo ao amor ao próximo não impediram que católicos e protestantes se matassem por 30 anos na Europa. Isso porque, acima desses apelos à compaixão, havia o imperativo do proselitismo.
Será que uma religião que: enfatizasse a igualdade entre os homens, a não-violência, o progresso da humanidade, a busca do conhecimento, a caridade e o amor ao próximo E que além disso, NÃO fosse baseada em dogmas, NÃO fosse baseada em superstições e NÃO fosse proselitista, poderia ser realmente chamada de religião?
Com certeza. E de fato todas as religiões deveriam almejar chegar a esse ponto. Mais ainda, quero crer que mesmo nas doutrinas mais doentias HÁ adeptos que tem de fato essa meta e trabalham para alcançá-la.
Então, podemos concluir que nossa discordância é uma questão semântica: Eu não chamaria esse conjunto de crenças de religião.
E será que, se fosse o caso, essa religião poderia persistir sem perder essas características?
Eu penso que as respostas são TALVEZ e NÃO.
Por que a religião "não poderia persistir" exatamente no momento em que se tornasse mais construtiva? O que exatamente isso quer dizer?
Quer dizer que seus ideais poderiam ser "sequestrados" por aqueles com sede de poder. Se um povo se submete a uma idéia, nada mais simples do que dar mais um passo e garantir a sua submissão ao
representante dessa idéia.
O primeiro é apenas uma opinião pessoal. Talvez o budismo se enquadre nessas características, mas confesso que não conheço suas bem doutrinas.
Nah, não estou falando de nada específico ao budismo, ou mesmo estranho à religião abraâmica, ainda que eu seja muito crítico das formas mais estereotipadas destas.
E doutrina, na prática, é o que menos importa em uma religião. Bom, o que menos importa depois da escritura, digo.
Novamente: chegamos então a uma questão semântica.
O segundo é baseado no reconhecimento de que religiões são instrumentos de poder, e por isso acabam se subordinando a interesses políticos, que por sua vez entram em conflito com esses aspectos "liberais" citados. É também o que a História ensina.
Essa é uma visão bastante enviesada da coisa, que parte do pressuposto de que a religião se associa mais ou menos automaticamente ao poder. Eu não posso deixar de apontar o espantalho.
Então me dê um exemplo de uma religião que não se associa ao poder (não é uma pergunta retórica, estou mesmo curioso)? Mesmo entre os quakers, a ordem social é suportada pela crença religiosa.