http://www.duvido.com/2008/06/23/os-negros-nao-sao-confiaveis/Os negros não são confiáveis
Os negros não são confiáveis, são imorais e não têm ética. Aliás, se todos fossem brancos não haveria criminalidade no Brasil.
Não só isso: assim como os negros, os judeus, nordestinos e todos os mestiços são criminosos por natureza. A disseminação da cultura da pureza racial e dos valores arianos entre as crianças as tornariam, com certeza, cidadãos melhores no futuro, e reduziriam os problemas sociais nas próximas décadas. Bem, leitor, imagino que neste ponto você esteja escandalizado pelas afirmações acima. Deve estar imaginando que eu enlouqueci, e que estou pedindo para ser preso. Eu entendo perfeitamente. Mas, antes de me denunciar à polícia, por favor continue lendo; em breve você entenderá o porquê de eu ter começado este texto de forma tão polêmica.
Recentemente - no dia 04 de abril, para ser mais exato, como reportou o Fabrício Fleck - o jornalista José Luiz Datena, comentando (à exaustão e milhas além das fronteiras do bom senso) o famoso caso de uma menina arremessada pela janela (presumidamente) pelos pais, soltou, indignado, que
“as pessoas não lêem mais a Bíblia, as pessoas não fazem mais orações a Deus, as pessoas não vão mais à missa, as pessoas não vão mais ao cultos evangélicos, as pessoas não rezam mais pra Buda, as pessoas não vão mais às mesquitas, as pessoas não procuram por Deus…É POR ISSO QUE ESSE CRIMES BÁRBAROS ACONTECEM!!!“Ou seja, crer em divindades e/ou participar de rituais místicos leva à correção; não crer, leva fatalmente à criminalidade. A causa da criminalidade é, como professou o eminente jornalista, da descrença.
O que equivale dizer, passando para o discurso ativo e tornando a linguagem mais clara: os agnósticos e ateus são inerentemente criminosos.
Mas o Datena, como dizem, é o Datena. Todos conhecem o estilo do apresentador, que trabalha no improviso e no calor da emoção - para não tocar no inesgotável assunto do brilhantismo intelectual do sujeito. Em tais circunstâncias, podemos até desculpar um deslize destes.
Porém, este pensamento não está restrito aos estúdios de programas de histeria policial de terceira linha. No Paraná, o Deputado Estadual Mauro Moraes propôs a lei Minha Primeira Bíblia, que (ipsis literis) “consistirá na entrega por parte do Estado de uma Bíblia a todos alunos que houverem concluído a classe de alfabetização” com despesas que “correrão por conta das dotações orçamentárias da Secretaria Estadual de Educação.“
Não vamos nos prender a obviedades, como por exemplo o trivial fato de que isto é escandalosa e gritantemente inconstitucional. O que nos interessa aqui é a justificativa do projeto:
“JUSTIFICATIVA: O que visa esta proposição é, através da fé, amenizar os problemas sociais que vem sendo enfrentado por todos nós. Independentemente de credo, só o fato de se possuir uma religião, contribui para afastar, principalmente os jovens, dos males que os rondam.“
Ou seja: “possuir religião”=”bem-estar social”; sendo assim, “não possuir religião”=”apocalipse social”. Trocando em miúdos, agnósticos e ateus emporcalham a sociedade.
No Rio de Janeiro, o Deputado Estadual Fábio Silva propôs o projeto de lei 1.538/04, com a mesma finalidade (e mesmo conteúdo inconstitucional e proselitista). Vencida a proposta no estado, na Capital o Vereador Théo Silva também tentou a mesmíssima coisa com o PL 680/2005. A justificativa chega a dizer:
“Portanto, em uma cidade com estatísticas de violência como o Rio de Janeiro, é de vital importância, que os nossos jovens tenham acesso à doutrina religiosa.” Fala em “estudos recentes” que provariam que religião é antídoto contra a criminalidade, sem citar fontes, nomes e nem especificar de forma alguma que estudos tão revolucionários são estes.
A lista segue: o Deputado Joacy Paschoal no Rio Grande do Norte, o Vereador Vilmar Rotilli em Entre-Ijuís, no Rio Grande do Sul, entre muitos outros, já tentaram (e continuam tentando) obrigar ex legis a arregimentação cristã dos alunos do ensino público com a justificativa de que, ao se tornarem legítimos dizimistas, serão imunes à criminalidade, a qual seria praticada apenas por quem não possui religião alguma.
Ou seja, os ateus e agnósticos são criminosos por natureza. A disseminação de crenças religiosas entre as crianças as tornaria, com certeza, cidadãos melhores no futuro, e reduziriam os problemas sociais nas próximas décadas.
Mas… ei, esperem um pouco, não foi exatamente isto que eu disse dos negros, judeus, nordestinos e metiços no começo do texto?
Chegamos ao ponto que eu queria. Formalmente, não há diferença entre uma afirmação e outra. Por que, então, é crime falar certas coisas de negros (discriminação de cor), judeus (discriminação religiosa), mestiços (discriminação étnica) ou outras classes de indivíduos, mas é aparentemente permitido falar as mesmas coisas, da mesma forma, dos agnósticos e ateus? Tanto é permitido que mesmo atos estatais, oficiais - como leis - praticamente criminalizam a descrença, ao ponto de entre a falta de crença em seres mitológicos e o aumento da criminalidade forjar uma relação de causa-efeito?
Vejamos o que diz a própria lei. Todos sabem que racismo (como o das afirmações que abrem este texto) dá cadeia, mas poucos se lembram que não somente ele é punível com todos os rigores reservados pelo Estado para aqueles que andam fora da linha. A Lei 9459/97 ampliou significativamente o alcance do crime de discriminação, de tal modo que não somente o preconceito de raça ou de cor é ato criminoso, mas também o preconceito ou discriminação de etnia, religião ou procedência nacional. E, a respeito de discriminação em função de religião, tanto faz discriminar quem possui uma crença religiosa diferente da sua quanto - e isto ninguém parece perceber - quem não possui crença religiosa alguma.
No entanto, é comum ouvir declarações como as do Datena. Somos assolados por afirmações do tipo “católico, evangélico ou espírita, tanto faz, o importante é ter uma religião”, vindas de pessoas aparentemente preocupadas em, de acordo com os protocolos politicamente corretos, abraçar “todos de todas as crenças”. Mas,óbvio, não abraçar de forma alguma aqueles hereges horríveis que não crêem em deus de mitologia alguma.
Fazem isso de forma até inconsciente. Os ateus e agnósticos são uma parcela estatísticamente desprezível da população, da audiência e do eleitorado. Não possuem, no Brasil, voz ativa (mesmo porque se assumir ateu significa ser impedido pelo povo de obter acesso aos cargos legislativos e, em função da rejeição popular, é garantido aos ateus a falta de espaço na mídia). Portanto, passam a sensação de não existirem de forma alguma, o que está muito longe da verdade. Quando chegam à mídia, são apresentados de forma caricata: resmungões cínicos que estão ali apenas para alívio cômico, como o “vilão atrapalhado” do episódio.
Até quando ficaremos inertes em face desta situação? Permitindo que discursos do tipo “devemos orientar nossas crianças para que encontrem cada uma sua espiritualidade, que é o importante” sejam apresentados como tolerantes e corretos? Se já fomos um Estado de proselitismo oficial católico, e se alguns entes da Federação passam por fases de proselitistas oficiais evangélicos, temos que, como um tipo de denominador comum, concordamos em viver agora em um estado de proselitismo espiritual (que, não se enganem, em nosso país significa cristão). O que, a bem da verdade, é proselitismo do mesmo jeito: intolerante, excludente, cerceante, controlador, embalado em uma capa de boas intenções.
EDIT: Título alterado de acordo com
discussões posteriores