Eliana Tranchesi: da Daslu para o CarandiruAcusada de ameaçar a ordem pública, a empresária e dona da loja mais cara do Brasil foi condenada a 94 anos e meio de prisão – mais que Marcola, o líder do PCC
Solange Azevedo com Danilo Soares
O que mais chama a atenção no episódio da prisão de Eliana Tranchesi, de 53 anos, dona da megabutique Daslu, é o tamanho da pena: 94 anos e meio. Os crimes de Tranchesi foram formação de quadrilha ou bando, descaminho (importação fraudulenta) e falsidade ideológica. Apenas para efeito de comparação, a jovem Suzane Richthofen foi condenada a 39 anos e meio pelo assassinato dos pais, em 2002. O jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, que matou a ex-namorada Sandra Gomide em 2000, pegou 15 anos – e está livre, aguardando julgamento de recurso. Até Marco Willians Herbas Camacho,
o Marcola, líder do grupo criminoso PCC, tem pena menor: 40 anos.A explicação para tamanho rigor está na decisão da juíza Maria Isabel do Prado, da 2a Vara Federal de Guarulhos, de estabelecer um exemplo. “A decisão corajosa da juíza Maria Isabel é a prova de que para vários setores do Judiciário, hoje em dia, um criminoso não é somente um desgraçado com um fuzil na mão”, afirmou o procurador da República Matheus Baraldi Magnani, que trabalha no caso. “O que houve foi sonegação fiscal. É grave.
Mas não faz sentido condenar alguém que sonegou impostos a penas superiores à de traficantes e homicidas”, diz o advogado Roberto Podval, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).Com a sentença, a juíza Prado concluiu um trabalho de mais de quatro anos. Além de Tranchesi, condenou seis pessoas por envolvimento num esquema de importação fraudulenta, incluindo seu irmão e sócio, Antonio Carlos Piva de Albuquerque (que teve a mesma pena). A juíza pediu a prisão dos sete réus, negando-lhes o direito de recorrer da sentença em liberdade. Isso porque ela os enquadrou na Lei no 9.034/95, que trata de organizações criminosas. Em uma linguagem peculiar, a juíza afirma que a conduta de Tranchesi era “proveniente da cobiça em busca da acumulação de riqueza proveniente de meios ilícitos”. Na sentença de 542 páginas, refere-se a ela como “chefe de uma organização criminosa” e “empresária de criminalidade sofisticada”.
Um grupo de policiais federais cumpriu a ordem da juíza cerca de 6 horas da quinta-feira. Eles prenderam Tranchesi em sua casa de quatro quartos no Morumbi, bairro nobre da capital paulista. Na tarde da sexta--feira, Tranchesi obteve um habeas corpus e deverá responder ao processo em liberdade. Seu irmão e Celso de Lima, dono da importadora Multimport, continuavam presos. Os outros condenados, donos de importadoras que trabalhavam para a Daslu, não haviam sido encontrados pela PF.
“A sentença da juíza e as prisões preventivas não se justificam”, diz Podval. “Se os réus estavam respondendo ao processo em liberdade, por que prendê-los antes da sentença definitiva? É incoerente.” Joyce Roysen, advogada de Tranchesi, criticara a juíza. “A prisão de Eliana é ilegal, arbitrária e cruel”, disse. “Nossos tribunais já reconheceram que, mesmo nos casos enquadrados na lei das organizações criminosas, a prisão deve ser uma medida extrema. Minha cliente está com câncer de pulmão e ósseo, sendo submetida à quimioterapia.” Por sua condição de saúde, Tranchesi foi encaminhada para a enfermaria da Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru, na Zona Norte da cidade. Antes de ser levada para lá, escreveu um bilhete em que diz não ver sentido em sua prisão. “Não represento perigo para a sociedade.”
Tranchesi foi detida pela primeira vez em julho de 2005, na Operação Narciso. Os investigadores descobriram o mecanismo usado pela Daslu para subfaturar produtos de grife vindos do exterior. Numa das cargas apreendidas, a Receita encontrou camisas de seda pura e sapatos de couro da italiana Gucci com valores declarados de R$ 12 e US$ 3,95 (cerca de R$ 9), respectivamente. As peças custam cerca de R$ 2 mil. Com a manobra, o valor dos impostos se tornava irrisório. O rombo detectado pela Receita Federal, somado aos juros e multas, chega perto de R$ 1 bilhão.
Quando o esquema da Daslu foi revelado, em 2005, Tranchesi ficou apenas 12 horas na delegacia “prestando esclarecimentos”. Meses depois, descobriu que estava com câncer. Em agosto de 2006, foi submetida a uma cirurgia para a retirada de um tumor no pulmão. No fim do ano passado, houve recidiva da doença e metástase. “Ela está muito debilitada. Na prisão, Eliana pode ter uma série de complicações, como infecções. É recomendação médica que ela seja tratada em casa”, afirma a advogada.
Desde que começou a ser investigada, a Daslu perdeu boa parte de seu apelo na elite da moda. Algumas grifes internacionais rescindiram o contrato com Eliana Tranchesi e fecharam suas lojas na megabutique. Com o encolhimento,
a Daslu demitiu cerca de 500 funcionários. Nos últimos tempos, segundo a própria dona, a empresa se recuperou. No ano passado, inaugurou sua primeira filial em shopping centers, uma loja de 2.500 metros quadrados no Shopping Cidade Jardim. Em nota no site, a empresa afirma que “sua história de mais de 50 anos comprova seu compromisso com o Brasil”. E diz que continua trabalhando normalmente.
As manobras da Daslu para pagar menos impostos e as investigações da PF
OUT 2004
Com a Operação Narciso, a Polícia Federal começa a investigar irregularidades nas importações da Daslu depois de constatar que uma nota fiscal apreendida no Aeroporto de Cumbica era diferente da nota apresentada à Receita Federal referente à mesma compra. A nota apreendida registra uma venda direta da grife italiana Gucci para a Daslu. Na prestação de contas à Receita, a negociação teria sido entre importadoras dos EUA e do Brasil.
JUL 2005
A Polícia Federal cumpre 33 mandados de busca e apreensão de documentos da Daslu em São Paulo, Santa Catarina, no Espírito Santo e Paraná. A dona da Daslu, Eliana Tranchesi, é detida por 12 horas. Seu irmão Antonio Carlos Piva de Albuquerque, diretor-financeiro da loja, é preso e solto após cinco dias. Escutas telefônicas teriam revelado que a loja planejava queimar documentos.
DEZ 2005
O Ministério Público denuncia Eliana Tranchesi, seu irmão e mais cinco pessoas por formação de quadrilha, descaminho e falsidade ideológica.
DEZ 2005
A Receita Federal apreende R$ 1,7 milhão em bolsas das marcas Chanel e Gucci. Nos produtos, a etiqueta da Daslu estava coberta por outra da importadora Columbia.
JUN 2006
Piva de Albuquerque é preso novamente e solto oito dias depois.
DEZ 2006
A Receita Federal autua a Daslu em R$ 236 milhões por sonegação de impostos de importação.
ABR 2008
Ministério Público Federal pede a condenação de no mínimo 28 anos para Eliana Tranchesi e Antonio Carlos Piva de Albuquerque.
MAR 2009
Eliana Tranchesi, Piva de Albuquerque e mais cinco são condenados em primeira instância por formação de quadrilha, descaminho e falsidade ideológica.
Fonte:
http://revistaepoca.globo.com/EditoraGlobo2/Materia/exibir.ssp?materiaId=66037&secaoId=15223