E estou cansada: estou cansada de ouvir sermão de negros que me culpam por ser branca e certamente ter 'culpa' pela escravidão a que foram submetidos.
Escravidão a que não foram submetidos. Nenhum desses militantes jamais passou por qualquer coisa parecida com a escravidão sofrida por alguns de seus ancestrais remotos.
Esse é um ponto com o qual eu concordo, ao mesmo tempo em que faço algumas ressalvas. Não é exatamente como se aquilo ao que os ascendentes dos militantes foram submetidos tivesse tido efeito seu efeito restrito àquelas gerações e hoje não se tivesse mais qualquer seqüela, e estivessem apenas choramingando feito bebês-chorões sem razão alguma, como se estivessem na mesma posição de um branco de classe média-alta ou média-média que pedisse qualquer tipo de indenização ou política de compensação por poder traçar sua ascendência até escravos brancos na Grécia antiga, quando dificilmente consegue-se detectar qualquer padrão de desvantagem geral com relação aos descendentes dos donos de escravos de então.
Por outro lado, a perspectiva racial do discurso dos militantes típicos não tem nada de boa. Ser descendente dos "escravos recentes" versus não ser pode ainda ser um bom "previsor" de fracasso e sucesso, de chances e não ter chances, e isso pode até ser digno de consideração e de políticas que de fato melhorassem essa situação toda, mas o fator racial, e até mesmo a origem histórica na escravidão, são elementos desnecessários para a solução do problemas, e potencialmente a semente de um novo problema em si mesmo.
Uma pessoa numa situação que se considere precária, que idealmente se devesse prestar algum tipo de ajuda, não é mais digna de tal ajuda conforme tiver em sua genealogia pessoas escravizadas ou não, ou mesmo escravizadores.
Algumas vezes penso que teria sido melhor se de alguma forma brancos só tivessem escravizado brancos, ou brancos e negros tivessem sido escravos e escravizadores em proporções iguais. Não que tenha qualquer coisa realmente mais justa nisso do que em uma assimetria total da cor da pele ou continente de origem das pessoas escravizando e sendo escravizadas, apenas talvez se diminuísse as chances do problema se estender em desmembramentos colaterais com esse meme da reificação racial, de duas "entidades" que continuam por gerações. Ainda que pudesse sempre se ter algo parecido só que com castas sem diferenças fenotípicas marcantes, de qualquer forma.
Faz-se uso de uma mentalidade coletivista, como se não existissem indivíduos negros e brancos - julgando-se cada um de acordo com seu caráter individual -, mas apenas dois grandes "espíritos raciais coletivos atemporais", de forma que se um branco submete, em algum momento da história, um negro à escravidão, então temos que brancos atacaram negros, e não que alguns brancos atentaram contra alguns negros. Então todo branco e todo negro de todas as gerações subsequentes carrega uma parcela de culpa e uma parcela das feridas, apenas por fazer parte de seu respectivo grupo racial.
Novamente, não é algo com o qual não se possa se identificar se imaginarmos uma situação onde ainda se traga essas "feridas". Se o meu bisavô e o seu eram parceiros-chefes de alguma empresa, com o seu tendo dado muito duro para erguer e fazer funcionar o negócio, quando foi vítima de um golpe aplicado pelo meu, perdendo tudo, sendo de alguma forma expurgado da empresa sem direito a nada e sem economias de reserva (novamente, parte da trama do sacana do meu bisavô), não acho inesperado que você não tivesse nenhum pingo de remorso contra mim, enquanto trabalha como gari ou catador de lixo, e passa na minha rua, me vendo falar ao celular à beira da piscina da minha casa. Mesmo que não tenha sido eu que tenha te aplicado um golpe. Eu ao menos acho que não me sentiria exatamente bem do "seu" lado.
Mas enfim, ao mesmo tempo acharia muito mais proveitoso, se estivesse no "seu" lado, e não houvesse qualquer recurso legal a recorrer (porque era muito matuto o sacana do bisavô), ficar focando meus pensamentos nisso. De forma similar que não faz muito sentido pensar se o Brasil não seria muito melhor, talvez, se os portugueses não tivessem expulso os holandeses. Por algum motivo, provavelmente instintivo, esse intervalo de tempo menor faz a coisa ficar mais pessoal, então é realmente mais difícil.
Com isso só estou dizendo que é compreensível, esperada, essa perspectiva de vítima, não que é o ideal, ou que está "certo". O melhor mesmo é se focar naquilo que se pode fazer, não no passado, no que é história. Por outro lado, acidentalmente através desse exercício também acaba sendo talvez possível se colocar na desconfortável e até um tanto revoltante posição de quem escuta esse lado "motivacional" do discurso como bisneto do bisavô vítima de golpe, vindo do bisneto do bisavô golpista...
É bastante complicado.
