Carandiru coverpor
Daniel Sant'Anna em 17 de maio de 2006
Resumo: Quem sofre e quem fica em meio ao fogo cruzado somos todos nós, a população em geral, que trabalha e só serve de acolchoado de balas, ou para pagar impostos. Por que apenas bancos, governos e celebridades podem se sentir seguros? Por quê?
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Foram anos e anos tentando convencer a si mesmos e a sociedade de que a criminalidade não passava de um problema social, e que os bandidos e assassinos eram criminosos circunstanciais, vítimas de forças invisíveis, desprovidos de más intenções. Que não bastava prover-lhes de toda sorte de privilégios após a detenção; era preciso lhes dar voz e justificativa simbólica.
Artistas, cineastas, escritores, sociólogos e padres de porta de cadeia fizeram todo o possível para que essa gente pudesse ser integrada à força à sociedade, e pela porta da frente (ou que ao menos pulasse janela adentro). Deram-lhes microfones e câmeras, e fomos todos obrigados a ouvir seus raps de protesto e sua violenta comiseração. “Matei porque papai não me deu atenção”. “Estuprei porque não tinha o tênis que apareceu na novela”. “Assaltei porque meu papagaio fugiu”, e assim sucessivamente.
A lista de tolices intermináveis não se diluiu no espaço: eternizou-se em filmes, programas de TV e livros. Exposições foram feitas, fetichizando não só a miséria, mas também a violência em toda sua sedução. Quiseram tomar as armas de todo mundo, e de fato quase conseguiram. Diziam que criminosos eram melhor dotados intelectualmente, e portanto não conseguiam ficar passivos diante das mazelas sociais do país. Por isso, se organizavam para roubar, seqüestrar e torturar. E nós, os bobos, sempre achando que inteligentes eram aqueles que conseguiam encontrar uma forma honesta de ganhar dinheiro.
Hoje, quando a violência terrorista e organizada da criminalidade aflora, desabrocha e explode nas ruas, esse bando de avestruzes parece ter desaparecido. Deveriam vir prestar contas, segurar a bronca e, de mãos dadas, cercar pontos de ônibus, hospitais e delegacias, sujeitas à granadas e rajadas de metralhadoras. O pessoal que é da paz devia sair às ruas e fazer sua revolução, de fato, e não na teoria. Mas não: preferem continuar encastelados em suas blindagens de padrão militar, ou esconder-se por trás de sua fama, na base da carteirada de celebridade (bandido que se equivoca e aborda para assaltar um Caetano Veloso dá o fora, pede desculpa e ainda corre o risco de levar um autógrafo para a vovozinha).
Quem sofre e quem fica em meio ao fogo cruzado somos todos nós, a população em geral, que trabalha e só serve de acolchoado de balas, ou para pagar impostos. Nós e “eles”: policiais e militares, que o imaginário quis nos ensinar que eram os vilões, mas que permanecem de mãos atadas. Se atiram, estão errados; se ficam parados, morrem na surdina. E
ainda viram figurantes de filmes onde os heróis e as vítimas são, a um só tempo, os “outros”, os queridinhos do politicamente correto, os super-dotados das favelas, os que preferem matar a empacotar compras no supermercado.
Já passou da hora de chamar o Ubiratan. Se não para ir às ruas, ao menos para dar uma entrevista. De 50 horas. E estrelar um filme. E escrever um livro. Um não. Dois, três. Por que não pensarmos numa grande empresa de segurança privada ostensiva, que patrulhasse quarteirão a quarteirão, com pequenas mensalidades que seriam suportadas por todos, e uma lei de iniciativa popular que permitisse abater todas essas despesas com segurança do Imposto de Renda? Por que apenas bancos, governos e celebridades podem se sentir seguros? Por quê?
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