“Deixo nas mãos de deus”
Isto me é duplamente entristecedor. Primeiro, naturalmente, este horror que é, imaginar o pavor, o desespero das crianças, correndo por sua vida, enquanto outras não tiveram a mesma sorte (deus não quis protegê-las – e aqui já dou o tom de meu monólogo, para alerta dos crentes e discernimento cuidadoso até mesmo dos ateus). Toda e qualquer violência deste tipo recebe uma carga maior de revolta ao estar associada com crianças, posto que representam, ainda que apenas potencialmente, um mundo melhor, de uma louvável ignorância em relação à mesquinharia humana, aflorada tão onipresentemente nas pessoas adultas.
E daí, como é de costume (eu insisto em não me acostumar), começa a caudalosa enxurrada de agradecimentos à deus, agradecendo cada pingo de sangue derramado. Ah, não é assim? Mostrem-me que não é assim! Vem a senhora, debaixo de uma situação indescritivelmente infernal de perder um ente querido, falando que, pela manhã, despediu-se: “deus te abençoe, deus te guarde”. Não guardou. Claro, não existe. Mas para ela Ele está lá. O seu deus, mais uma vez, deixou que inocentes pagassem com seu sangue e vida, pelos pecados do assassino que certamente será perdoado, posto que o perdão foi solicitado. E a deus, perdões são implorados, e perdões são concedidos, desde os primórdios obscuros de um povo indouto da Idade do Bronze, passando pela compra de perdão divino, pelas mãos do clero que institui a safadeza em nome daquele que tudo pode, mas nada faz porque não existe. Ao constatar o incontornável, a senhora constata também que os órgãos de seu mais alto tesouro, já ceifado de sua vida, agora dá uma chance a outros, que dele, morto, dependem para viver. Ufa, tudo esclarecido, e ode ao sábio dos sábios. “Agradeço a deus por isso”. Sim, ela agradece a deus por sua mais alta preciosidade ser morta, de maneira brutal e dantescamente surreal, de tão comum, com o objetivo agora claríssimo de salvar outros que precisam. Sim, glória a deus pela morte de meus filhos. Glória A Deus Pela Morte De Meus Filhos!
Aos sem deus no coração, resta nossas racionalizações, que associam tamanho disparate a um estado psicológico duplamente atormentado, uma vez pela horrenda perda, e outra vez pelo estado clínico de esquizofrenia branda, aceita e camuflada nos costumes da humanidade, característica do religioso. Mas vira notícia, vira assunto de primeira para o Fantástico, e nossos filhos passam a entrar em contato com a verdadeira loucura humana. Maior do que a do assassino, pois este mostra o pau com que matou a cobra (o discernimento e bondade latente), matando-se em seguida (um fim prático, de se matar para não ser morto – vá que eles me peguem para me dilacerar vivo). Sim, é maior, porque mantém, pelas láureas concedidas à sua causa (que também não existe, para além de uma mixórdia de valores), a perpetuação das atrocidades em nome das “linhas tortas de quem escreve certo”. Sim, deus tinha um plano melhor para estas crianças que terminaram em vermelho. Não, claro que o assassino é quem foi o culpado disto... deus não impede a maldade dos homens, apenas salva um ou outro para mostrar que, apesar de tudo, é benevolente. Sangue? Morte? Bala na cabeça? Opa, pelo menos salvamos órgãos, no meio destas tripas já inúteis, para outras crianças. O Senhor é sabedoria infinita, e não deixaria estes órgãos em uma criança inocente, tendo o trabalho de providenciar mais um milagre, para salvar aquelas que precisam destes órgãos. Não, aproveitemos a chacina para salvar aquelas, e estas... ora, estas tem um mundo melhor pela frente. Foram minhas escolhidas. Serão meus anjinhos.
Apenas um resultado trágico de alguém com problemas? Vítimas desnecessárias de uma covardia imensa sem maiores explicações? Não, não podemos viver com isso. Deus é sapientíssimo demais para aceitarmos as vicissitudes inconseqüentes da humanidade. Ele sabe o que faz.
Glória a deus pelo sangue e morte de nossos filhos. Só alguém com infinita sabedoria para não proteger crianças (crianças, meus deus!) de um assassino, em nome de “um plano maior”. Agradecemos, pois, mais uma vez: glória a deus pelo sangue e morte de nossos filhos.