DDV: existem defensores, e... defensores. Uma coisa é tomar partido ideológico de uma batelada de arremedos, entre eles, o anarquismo epistemológico (e neste caso devem se enquadrar o tipo de gente de que falastes). Outra é efetivamente levar a cabo um estudo sistematizado dos processos de obtenção de conhecimento científico, que parte de um pluralismo de concepções epistemológicas para se chegar no quadro geral mais compromissadamente possível com o que a ciência é, e não o que ela deveria ser. Para este último caso, caro DDV, Feyerabend torna-se um personagem de singular importância nesta escalada. Mesmo que seja a contra-exemplo.
TODOS, não 90%, TODOS os grandes professores pesquisadores da área de Ensino, História e Filosofia da Ciência terão algo para dizer de Feyerabend, e te garanto que poucos o colocarão no conjunto dos senis. Já te disse, anteriormente, que Feyerabend, além de doutor em física, era doutor honoris causa em humanidades, e detentor de um conhecimento literário tido como um dos maiores do séc. XX. Ao contrário de Latour, que não sabia e não conhecia efetivamente aquilo que estava descrevendo, Feyerabend conhecia muito bem. Te garanto que muitíssimo mais que eu, você, e todos neste fórum. Era casado com uma física brilhante (italiana, se bem me lembro), e esta, que o conhecia muito bem, ficou surpresa ao ver como Feyerabend ocultou todo o seu vastíssimo conhecimento literário em sua auto-biografia que, quando li, já fiquei espantado por sua tamanha facilidade e abrangência nas mais diversas áreas (de Teoria Eletromagnética à Ópera). Claro, sei que este ad hominen não depõe a favor de nada que seja, mas, ao menos, ilustra como deveríamos estar mais atentos às tentativas de se senilizar pessoas por posições heterodoxas. Ao contrário dos casos clínicos de senilidade, Feyerabend sempre transpareceu uma lucidez fantástica em relação a tudo o que escrevia e, se suas provocações (já mencionei seu objetivo com o Contra o Método) geraram tanta fúria, é porque estes furiosos estavam já há muito tempo em um mundo de racionalidade forjada que não admitia um ataque frontal à racionalidade.
E veja só: eu também não admito! E Feyerabend também não admitia! Como eu disse anteriormente, as pessoas crescem, e com Feyerabend não foi diferente. Contra o Método cumpriu um importante papel em uma época de positivismos alheios que atribuíam à ciência uma láurea etérea que não lhe era devida, e quando este papel já tinha sido cumprido, inclusive por Kuhn (que bebeu muito em Fleck), Lakatos e Popper, Feyerabend não tardou a perceber um movimento acientífico que ia na contramão de seus propósitos mais basilares que os essencialmente ideológicos. Por exemplo, ele tinha dito, na primeira edição de seu famigerado livro, que “poderá vir um tempo em que seja necessário dar à razão uma vantagem temporária sobre a metodologia anárquica, mas que não pensava que estivéssemos vivendo esse tempo”. Mas, em 1992, ele diz:
Esta era a minha opinião em 1970, quando escrevi a primeira
versão deste ensaio. Os tempos mudaram. Considerando algumas
tendências na educação dos Estados Unidos ( politicamente correto
, menus acadêmicos, etc.), em filosofia (pós-modernismo) e o
mundo em geral, penso que se deva dar à razão, agora, um peso
maior, não porque ela seja e sempre tenha sido fundamental, mas
porque isso parece ser necessário, dadas circunstâncias que ocorrem
bem freqüentemente hoje (mas que podem desaparecer
amanhã), para criar uma abordagem mais humana . (Feyerabend,
1993 : p. 13, n12)
FEYERABEND. Against Method. London / New York: 1993.
Como eu já disse, para um cientista ou ardoroso cientificista de poucas inclinações humanísticas, é muito fácil vilipendiar isto tudo. Mas o próprio Feyerabend dizia que “a ciência vence por seus resultados, por ninguém negados”. E que, se as teorias científicas efetivamente são melhores que outras formas de conhecimento, então isto virá à tona por méritos e demonstrações de poder intrínseco, e não porque uma comunidade receosa de perder seus cargos, por uma suposta volta à idade média, relega ao lixo toda e qualquer tentativa de se diminuir a posição privilegiada que a ciência encontra no mundo civilizado.
Entendo que Feyerabend deu um tiro no pé ao formar um pano de fundo potencialmente dependurável por ideologistas de plantão. E entendo, sobretudo, que sua ingênua e não adequadamente pensada estratégia de se ensinar ciência ao lado de pseudociência pecou ao ignorar âmbitos pedagógicos de apreensão do conhecimento por alunos desinstrumentalizados. Mas Feyerabend não falou só isso, assim como Newton não falou só de alquimia. Racionalizemos adequadamente, portanto, estas idéias, ou joguemos Newton no esgoto da escória por ter escrito muito mais sobre alquimia e teologia, do que sobre ciência. Repito, Feyerabend falou muito mais. E se conseguiu tantos inimigos, é porque enfiou o dedo na ferida e o revirou lá dentro até perceberem que estavam vivos.
Edit: Boa parte de tudo o que Feyerabend sugeriu pode ser representada (de modo algum sintetizada) por sua frase: "todas as metodologias, mesmo as mais
óbvias, têm limitações" (Feyerabend: 1977, p.43).