Reflexões sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munição no BrasilMaurício Stegemann Dieter
Guilherme M. Wall Fagundes
(Acadêmicos de Direito da Universidade Federal do Paraná)
1. O referendo
No dia 23 de outubro de 2005 o cidadão brasileiro vai se confrontar com uma forma pouco usual de exercício da democracia. Trata-se do referendo que homologará ou não o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, o qual já vigora desde dezembro de 2003. Na recente história democrática nacional, a participação popular direta além das eleições é excepcional, muito embora o parágrafo único do artigo 1º da Constituição estabeleça que:
Art. 1º. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos da Constituição.
Nosso país mantém uma tradição política que confunde democracia com a eleição de representantes políticos para as cadeiras executivas ou legislativas. A eleição, na verdade, é apenas um episódio da democracia, mas estamos tão presos à idéia de democracia como democracia representativa que nos esquecemos de todas as possibilidades de exercício direto desse poder que emana do povo, na forma de plebiscitos, referendos e projetos de iniciativa popular, além de outras possibilidades previstas na Constituição. O referendo, como um dos modos de participação democrática direta, está previsto na redação do artigo 14, II:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.
Evidente que várias outras matérias poderiam ou deveriam ser referendadas pela sociedade em geral, como a “reforma política”, a possibilidade de descriminalização do aborto e dos entorpecentes e o casamento homossexual, apenas para enumerar alguns assuntos polêmicos. Entre tantas matérias controversas, por quê a proibição da venda de armas e munição será referendada, vez que este tipo de participação direta não é, como visto, habitual na vida política nacional.
De fato, não é possível atribuir tal possibilidade de participação à benevolência do legislador, como produto de uma súbita visão provocada pelo mais nobre espírito democrático.
Como a proibição da venda de armas e munição no mercado legal afeta sobremaneira as empresas nacionais e estrangeiras que as fabricam, a pressão do capital econômico destas instituições pressionou vários parlamentares para deslocar a competência final sobre essa decisão para um referendo popular, diante da evidente derrota na Câmera dos Deputados e no Senado Federal. A hipótese de lobby para criação do referendo pode ser deduzida, entre outras circunstâncias, a partir do apoio financeiro das empresas que comercializam armas e munição para as candidaturas dos defensores da legalização das armas de fogo, como será explicitado adiante.
O referendo, portanto, nasce torto. Ao invés de caracterizar uma hipótese de incremento de participação popular nas decisões políticas – e, portanto, um avanço na história democrática contemporânea - simboliza o poder do capital financeiro (capital industrial somado ao capital bancário) nas instituições públicas, uma perversão do sistema democrático. Votar não no dia 23 significa, ao menos em parte, compactuar com as empresas nacionais e estrangeiras que participam desse processo de redefinição das prioridades democráticas a partir das necessidades econômicas.
2. A legítima defesa
Ao contrário do que afirma a campanha liderada pela “Frente Parlamentar pelo Direito da Legítima Defesa”, a Constituição da República não garante o direito à legítima defesa. O texto constitucional, na verdade, garante o direito à vida, o que é bem diferente. O direito à vida pressupõe, entre outras coisas, a devida assistência estatal para garantir um mínimo existencial para uma vida digna, e seus desdobramentos não se estendem até ás hipóteses de legítima defesa nem adentram à discussão do comércio de armas.
A legítima defesa é uma categoria do Direito Penal, estabelecida no artigo 25 do Código Penal, com a seguinte redação:
Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Como se denota a partir do texto legal e se estuda na doutrina especializada, são exigidos os seguintes requisitos para que seja configurada a hipótese de legítima defesa: o uso moderado dos meios necessários para repelir agressão injusta, atual ou iminente a direito indisponível próprio ou de outrem.
Por força do artigo 23, inciso I do Código Penal, a legítima defesa constitui uma das causas excludentes da antijuridicidade, ou seja, a ação ou omissão praticada é tipificada pelo Código Penal, mas não é compreendida como “contrária ao Direito” porque, em última análise, a vida como bem indisponível permite que certas ações sejam praticadas diante de evidente perigo. Vale notar que a legítima defesa só se estende para as hipóteses de lesão à bem jurídico indisponível e, portanto, não há legítima defesa de bens patrimoniais: o uso de arma de fogo para proteção do patrimônio não configura uma hipótese de legítima defesa.
Conclui-se, portanto, que a Constituição não garante o direito à legítima defesa: a legítima defesa é uma situação excepcional subordinada aos estritos limites legais e que não guarda relação com a possibilidade ou não de comprar armas de fogo legalmente no comércio varejista. O argumento da legítima defesa é, portanto, falacioso, porque confunde uma situação de exclusão da antijuridicidade com um direito fundamental.
3. Desarmar o cidadão não é a solução: as duas classes de cidadão
De fato, desarmar o cidadão não é solução para o problema do crime e da criminalidade, porque não há relação estrutural entre ambos fenômenos. A partir da Criminologia evidenciam-se as raízes reais do crime, identificadas nos processos de criminalização primária e secundária do Estado, que define os bens jurídicos necessários para a reprodução e manutenção de seu poder político e seleciona os sujeitos que enfrentarão o sistema de justiça criminal. Desta forma, o crime – como definição legal de certas ações ou omissões – e a criminalidade – como a prática dessas infrações e sua imputação a determinados indivíduos – não tem relação alguma com o fato de a lei permitir ou não a compra de armas e munição.
Mas o slogan preferido da “campanha do não” é extremamente perigoso, pois perverte o conceito de cidadão.
A cidadania é um dos fundamentos da República (art.1, II, CF), um atributo de todos os brasileiros (art. 12, CF) e cujos direitos fundamentais alcançam inclusive os estrangeiros em território nacional (art. 5º, CF). Todos somos, afinal, cidadãos brasileiros: prostitutas, sem-terra, sujeitos marginalizados, encarcerados, corruptos, enfim, até os “bandidos” são cidadãos.
O Estado Democrático de Direito ideal é aquele no qual todos podem gozar dos bens sociais positivos (como educação, saúde, saneamento básico, cultura, etc.) em igualdade, como prevê o artigo 3º, inciso III da CF, usufruindo a cidadania em condições semelhantes. Entretanto, e diante da manifesta e brutal disparidade econômica da população brasileira, não se pode afirmar que os “valores cidadãos” são compartilhados do mesmo modo por todos.
Ainda assim, tanto o sujeito marginalizado como o indivíduo mais abastado gozam (ao menos formalmente) da condição essencial de cidadãos brasileiros. Em outras palavras, isso significa dizer que, em relação à “campanha do não”, defender o direito do cidadão de comprar e portar armas de fogo significa defender que esse direito também se estende a um cidadão disposto a cometer uma infração patrimonial.
O discurso liberal poderia, diante da evidente conclusão anterior, afirmar que este é um exemplo falacioso de retórica, afinal, por “cidadão” o que pretende dizer é “cidadão de bem”.
E aí que encontramos a raiz da perversão do conceito de cidadão: quem é “cidadão de bem”? Ou melhor: quem define quem é “cidadão de bem”? Quais são os processos oficiais e reais de estigmatização de uma pessoa em “boa” ou “má”?
A divisão social entre o “mundo do crime” e o “mundo dos bons cidadãos” tem por resultado inevitável o conflito, necessário para que se afirme a superioridade de um grupo sobre o outro. Como comprova o materialismo histórico, a luta de classes (a classe dos “cidadãos de bem” contra a dos “bandidos”) terminará com um embate de eliminação do diferente, como evidencia o estudo da história humana. Segundo FERRAJOLI, esta idéia de “defesa da sociedade” contra o “mundo do crime” é nefasta: “a idéia de defesa social (...) têm como êxito inevitável o terrorismo penal”.
A “sociedade de bem” e suas expectativas de proteção ao patrimônio, à autonomia contratual, à livre iniciativa, etc., identifica nos sujeitos marginalizadas da sociedade capitalista o inimigo a ser combatido, e o “bandido” passa a ser a principal ameaça potencial de violação dessas expectativas.
Note-se que o inimigo não é definido em cada caso concreto, mas já está previsto a priori pelas relações de poder. As ações repressivas contra o inimigo da ordem pública atingem tantos quantos sejam adequados ao rótulo criado.
Finalmente, compreende-se que o slogan preferido da “campanha do não” estabelece dois direitos, determinados por categoria: para os “cidadãos de bem”, o direito de comprar armas; para o “cidadão-bandido”, o direito de ser alvo.
4) O uso do medo na propaganda e a necessidade de armas para segurança própria
A campanha da “Frente Parlamentar pelo Direito (inexistente) à Legítima Defesa” utiliza-se de técnicas primitivas da propaganda conservadora. Seu discurso busca atuar diretamente no convencimento passivo (normalização) da sociedade – como um todo - e ativo das classes privilegiadas, até alcançar o custo de legitimação suficiente para sua ação política.
A propaganda - como modo de convencimento - é útil porque o exercício da coerção nos Estados de Direito está condicionada à aceitação do discurso, ao menos pelo auditório particular (ou seja, a classe detentora dos meios de produção capitalista).
As estratégias de propaganda são historicamente eficazes para ampliar o uso da repressão, pois reforçam idéias sem questionamento prévio até torná-las parte do senso comum. Na atualidade, por conta das novas tecnologias dos meios de comunicação de massa, a propaganda do Discurso do Poder é rapidamente enraizada no “consciência popular”. Tamanha é a capacidade da propaganda de condicionar as ações coercitivas, que se chega a afirmar hoje que “o Direito (...) na atualidade não tem discurso acadêmico, é puro discurso publicitário, é pura propaganda; é a mídia que domina o Estado, não o Estado que se sobrepõe a ela” (GOMES).
Na divulgação e aceitação da propaganda, o medo assume um lugar de destaque. A manipulação da retórica pelo medo é um traço marcante nos discursos conservadores, e identifica-se sempre ao utilizar-se do “argumento das causas adversas”, pelo qual atribui-se uma relação indemonstrável entre um mal provável e uma determinada ação (conforme SAGAN). O uso do argumento das causas adversas já havia sido identificado pelo cineasta Alfred Hitchcock, quem asseverou: “não existe terror no estrondo, apenas na antecipação dele”.
O argumento das causas adversas mais utilizado pela “campanha do não” é o de que a proibição da venda de armas tem como conseqüência inevitável a fragilização dos indivíduos, determinada pela certeza (do “bandido”) da ausência de uma arma de fogo.
O discurso do medo perpassa com notória facilidade as barreiras da lógica, tornando o cidadão uma vítima por antecipação, a qual necessitaria de meios de defesa preventivos diante do caos social provocado pelos criminosos. Mas esse medo não tem fundamento real, porque não é fruto de experiências concretas, mas decorre de situações fictícias hipotéticas, sem nenhuma comprovação material. Como afirma PINHEIRO, “é certo que o medo, baseado em avaliações reais, é um instrumento no auxílio ao escape ou enfrentamento de perigos reais. O falso medo, porém, aquele baseado em estimativas irrealistas, é fonte de sofrimento e determina políticas equivocadas”.
Essa campanha de apelo ao medo, como chave para o convencimento popular, atribui a necessidade de armar as mãos civis para suprir a ineficiência de nossa força policial. Segundo essa lógica, diante da incapacidade do aparato policial de combater o crime, o cidadão passa a ter o direito de realizar sua própria segurança.
Para onde se atira? Contra quem se atira? Todos que garantem sua própria segurança podem garantir também a de seu próximo?
O direito de realização da própria segurança é incompatível com o Estado Democrático de Direito, porque no Estado Democrático o poder polícia se realiza em nome de todos, sendo indelegável aos indivíduos e no Estado de Direito proíbe-se a realização da justiça pelas próprias mãos.
A possibilidade de adquirir armas de fogo legalmente aumenta a possibilidade de auto-tutela e exercício arbitrário das próprias razões, o que é de todo incompatível, como visto, com o Estado Democrático de Direito, no qual não há espaço para vingança privada e uso doméstico da força para fins de política criminal.
5) A arma, a ilusão de poder e a violência como intrínseca à humanidade
É característica das armas de fogo a relação vantajosa entre o poder de destruição e a praticidade de uso, a tal ponto que essa vantagem foi decisiva na definição das relações de poder na história ocidental a partir do século XVI (como evidenciou, por exemplo, a dominação da cultura européia sobre as comunidades pré-colombianas na América do Sul, conforme HART).
A arma não é apenas símbolo de poder, mas instrumento de destruição da vida, da dignidade e da sociabilidade, pois quem a tem estabelece uma relação imediata de desigualdade em relação ao outro. As armas de fogo, ao aumentar o poder de destruição individual, criam uma falsa sensação de poder. Nos casos concretos, qualquer resposta contrária que tenda a inverter ou a igualar o sentido da estabelecida relação é causa para que o símbolo de poder se converta em instrumento de morte, como esclarece ARENDT:
“Aqueles que se opõe à violência com o mero poder rapidamente descobrirão que não são confrontados por homens, mas pelos artefatos humanos, cuja desumanidade e eficácia destrutiva aumentam na proporção da distância que separa os oponentes. A violência sempre pode destruir o poder; do cano de uma arma emerge o comando mais efetivo, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca emergirá daí o poder.”
Seja em uma abordagem infracional ou em uma discussão entre vizinhos, a presença de uma arma torna desigual - ou aumenta a desigualdade já presente - nos momentos de disputa patrimonial ou pessoal. É aqui que o instinto de agressão, próprio de todos os seres humanos (conforme LORENZ) atua de modo mais decisivo: em situações sociais de conflito a possibilidade de imposição da vontade pela força nega a alteridade, o diálogo e a solução pacífica das disputas. Ainda que essa hipótese não se estenda à maioria das situações de conflito patrimonial (como o roubo, por exemplo), votar SIM no dia 23 de outubro reduz a possibilidade de lesão definitiva nos casos que envolvem armas de fogo em disputas interpessoais - tão comuns como a vida em comunidade - além de evitar acidentes envolvendo o uso simbólico da arma.
6. O objetivo do Estatuto do Desarmamento
Em um claro exemplo de manipulação retórica, a frente parlamentar contra a proibição da comercialização de armas de fogo e munição afirma que o Estatuto do Desarmamento não resolverá o problema do crime e da criminalidade. Isso é óbvio, porque esse não é (e nem poderia ser) o objetivo do capítulo do Estatuto sujeito a referendo.
O objetivo é apenas esse: proibir que armas de fogo e munição sejam comercializadas legalmente. A partir desse ponto, seguem conseqüências mais complexas.
Seguindo a lógica capitalista, o preço de um produto aumenta na medida em que diminui sua oferta, mantido o mesmo padrão de demanda. Com o fim do comércio legal de armas de fogo e munição, parece ser evidente que aumentará o preço das armas ilegais, desde que mantida as mesmas condições estruturais, repetindo-se no Brasil um caso de criminalização bem conhecido na história estadunidense: a “Lei Seca”. É falsa, nesse sentido, a afirmação de que a proibição da venda de armas no varejo legal determinará o aumento das armas em geral. Parece ser evidente que o número de armas ilegais aumentará, o que não equivale à afirmação de que haverá um acréscimo na demanda de armas para realização de ações descritas como crimes. Neste sentido, a criminalização incidirá sobre as armas hoje vendidas legalmente e permanecerá sobre as armas já criminalizadas (pelo calibre ou procedência). Votar SIM não aumentará o número de armas em circulação, mas estabelecerá o princípio de que toda arma em mãos de civis é ilegal, o que facilita e antecipa a ação policial, a qual recairá, inevitavelmente, sobre os indivíduos alheios aos processos sociais de promoção individual. Nesse sentido, os indivíduos rotulados como “bandidos” não terão benefício com a opção pelo voto SIM, como pode fazer parecer a campanha do não. Nesse sentido, tanto o voto sim como o não trazem conseqüências adversas para os “clientes preferenciais do sistema penitenciário”.
7. As campanhas: Veja X Rede Globo
No rádio e na televisão, setores políticos antagônicos aderem a uma ou outra bandeira, pelos mais diversos motivos. Contrasta com a presença de atores da Rede Globo na campanha a favor da proibição da venda legal de armas para pessoas físicas a opção óbvia da Revista Veja, o maior e (infelizmente) mais influente semanário do Brasil.
Em primeiro lugar, será oportuno esclarecer que ambas as instituições sempre defenderam uma posição ideológica em todos os assuntos que abordaram. As reportagens sempre estão orientadas por estreitos pontos de vista, mas, como geralmente esse ponto de vista é adequado à reprodução dos valores “burgueses”, geralmente passa desapercebida a opção ideológica travestida de “notícia”.
É por isso que causa tanto espanto o alarde feito a partir da demonstração inequívoca da opção política de ambos órgãos de comunicação, afinal, essa é uma característica de todo veículo de informação. Tal função ideológica já foi explicitada por diversos autores: a demonstração de que há uma constituição recíproca entre o poder e o saber é uma das contribuições de FOUCAULT, o uso da propaganda não-oficial como Discurso do Poder já fora evidenciado por PERELMAN e o uso dos Aparelhos Ideológicos de Informação já havia sido explicado por ALTHUSSER.
O fato de um determinado órgão da imprensa dedicar-se à defesa de um dos lados desse debate não pode qualificar ou desqualificar a posição de uma das frentes envolvidas nesse processo.
8. As forças políticas envolvidas
De um lado, temos a “Frente Parlamentar Brasil sem Armas”, presidida pelo senador Renan Calheiros (PMDB – AL) e composta por vários partidos políticos, assim distribuídos:
6 senadores e 3 deputados federais do PMDB
4 senadores e 23 deputados federais do PT
3 senadores e 4 deputados federais do PSDB
3 senadores e 2 deputados federais do PFL
1 senador e 7 deputados federais do PPS
1 senador e 3 deputados do PDT
1 senador e 3 deputados do PSB
1 senador e 1 deputado do PL
1 senador e 1 deputado do PP
7 deputados federais do PCdoB
3 deputados federais do PV.
De outro lado, a “Frente Parlamentar pelo Direito da Legítima Defesa”, presidida pelo deputado Alberto Fraga (PFL-DF) também composta por uma pluralidade de forças políticas (ainda que legendas menos representativas):
1 senador e 2 deputados federais do PSDB
4 deputados federais do PDT
3 deputados federais do PFL
3 deputados federais do PMDB
2 deputados federais do PTB
2 deputados federais do PL
1 deputado federal do PP
1 deputado federal do Prona - (sim, é o Enéas)
1 deputado federal do PPB
1 deputado federal do PSB.
Entre os parlamentares que compõe e frente pela “legítima defesa” três admitiram ter recebido dinheiro da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) para suas campanhas, conforme reportagem de Wilson Tosta publicada no Estado de São Paulo de 03 de outubro de 2005. São eles: Alberto Fraga (R$ 60 mil), Robson Tuma (R$ 50 mil) e Josias Quintal (R$ 40 mil). A frente parlamentar contra a proibição da comercialização de armas de fogo e munição surge como grupo de interesse econômico e não como grupo de defesa de garantias e direitos constitucionais fundamentais, congregando apenas políticos da atual oposição, identificados como membros de partidos políticos de tradição conservadora (PTB), liberal (PFL) ou fascista (Prona).
9. O impacto na indústria
Segundo os fabricantes de arma nacionais, e entre eles especialmente a empresa “Forjas Taurus” (que controla 80% do mercado brasileiro), a proibição da venda de armas causará um colapso na indústria, significando a demissão direita ou indireta de 27 a 40 mil pessoas. Segundo a Revista Isto É Dinheiro essa estimativa é equivocada, pois as cinco empresas do ramo não empregam juntas mais do que 6500 pessoas. Além disso, do lucro líquido de R$ 164,8 milhões da empresa “Taurus”, 70% vem das exportações. O impacto também será menor do que o divulgado oficialmente porque a crescente dificuldade para aquisição de armas de fogo já determinou mudanças estruturais nas empresas, seguindo a lógica de mercado: de 74% em 1986, a produção de armas passou a constituir 41% da receita total em 2003. Conclui-se, portanto, que o impacto na economia com a restrição da venda de armas para particulares será mínima, e não justifica o voto contrário a proibição da comercialização de armas de fogo e munição.
10. Algumas conclusões
Diante do exposto, pode-se concluir o seguinte:
a) O referendo do dia 23 é resultado do lobby econômico no Congresso das empresas nacionais e estrangeiras que pretendem continuar lucrando com a venda de armas para o amedrontado cidadão brasileiro.
b) A legítima defesa não é um direito fundamental garantido constitucionalmente. O argumento do direito à legítima defesa como direito fundamental como conseqüência lógica do direito à vida é uma das falácias mais perigosas do discurso favorável á comercialização de armas.
c) Não existem duas classes de cidadão. Oficialmente todos somos – nos termos da Constituição - cidadãos brasileiros, sem exceções. Defender o direito da classe média de portar armas significa, necessariamente, defender o direito de todos a portar uma arma, pois a diferença entre o “bandido” e o “cidadão de bem” é somente retórica. A conseqüência da divisão social nesses termos é a disputa violenta pela subordinação de um grupo ao outro, como constata toda a história humana.
d) O discurso que utiliza o “medo dos bandidos” como argumento central mascara e simplifica a explicação complexa do crime e da criminalidade, e atribui a uma coisa (a arma de fogo) o poder de garantir a segurança pessoal, ignorando o fato de que o aumento do poder de destruição individual não é o equivalente ao aumento do poder de defesa própria, como demonstram as estatísticas. O deslocamento do poder punitivo para os cidadãos significa um retrocesso na construção de um Estado Democrático de Direito, no qual não se permite o exercício arbitrário das próprias razões e a individualização da atividade policial.
e) As armas, historicamente, estabelecem uma relação de desigualdade que perpetua a prevalência de uma classe sobre a outra. A proibição da venda de armas de fogo e munição reduz a possibilidade de lesões definitivas em conflitos pessoais interindividuais, ao menos nas classes com condições econômicas razoáveis.
f) O referendo do dia 23 tem por objetivo apenas proibir o comércio varejista de armas de fogo. Na discussão sobre o crime e a criminalidade, essa é uma discussão menor que não acarretará conseqüências definitivas para o problema da violência. Nem o Estatuto do Desarmamento nem qualquer outra iniciativa legislativa alcançará as raízes reais do crime, encontradas em situações estruturais de desigualdade na distribuição de bens sociais positivos. Somente políticas públicas de atribuição de bens sociais positivos podem mitigar a realidade violenta de países periféricos.
g) O apoio da mídia impressa ou televisionada a uma das frentes políticas é inevitável, na medida em que constituem aparelhos ideológicos de informação. A defesa de um dos lados por qualquer veículo de informação não deve justifica, por is só, a opção entre o sim ou o não no referendo.
h) A força política que compõe a “frente do não” é composta por pessoas tradicionalmente vinculadas à posições de conservação do poder, limitação dos direitos sociais coletivos e (até mesmo) fascistas. Mesmo diante do perigo do argumento “ad hominem” neste caso, parece ser inevitável constatar a prevalência do interesse econômico específico em detrimento ao interesse público geral na frente parlamentar que defende a venda de armas, sustentada por interesses e investimentos privados.
i) A proibição da comercialização de armas de fogo e munição não provocará uma crise econômica, pois o amplo mercado internacional substitui (com vantagens já percebidas) o pequeno nicho econômico construído sobre a demanda nacional.
j) As duas alternativas de discurso (o Sim ou o Não) apresentam problemas graves. Por um lado, o discurso do sim assevera que o problema do crime e da criminalidade está ligado à posse de armas, e sugere como solução um desarmamento parcial que rume para um desarmamento total. Esse discurso é falho porque mascara as origens reais da violência em países subdesenvolvidos, identificando as raízes do crime na etiologia do ser e na realização ocasional de instintos agressivos. Por outro lado, o discurso do não divide o mundo entre os bons (“cidadãos”) e os maus (“bandidos”), e nessa separação maniqueísta autoriza a guerra pública (pela polícia) e privada (pelos indivíduos armados) contra as comunidades marginalizadas, identificadas como esconderijo ou fábrica de delinqüentes sociais e inimigos da ordem. Em comparação, a campanha do não é menos democrática.
k) Finalmente, nessa desconstrução dos argumentos contrários a proibição da venda de armas e munição, objetiva-se compreender o problema do crime e da criminalidade como exterior à realidade do referendo do dia 23. O voto SIM simboliza a elevação das premissas maiores do respeito à alteridade em detrimento das posições irracionalizáveis para além de rótulos indefinidos, criados em um ambiente de medo. Votar SIM no dia 23 de outubro traduz a compreensão de que a superação da violência social começa a partir da própria abdicação da violência individual, mas essa opção deve ser feita com a consciência plena de que, independente do resultado do referendo, não haverá uma diminuição da violência em nosso país.
Esperamos ter contribuído para o debate,
Os Autores
11. FONTES
Livros:
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos do Estado. São Paulo: Graal, 1985. p. 78.
ARENDT. Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,1994. p. 42.
BUBER. Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001. p. 4.
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
_____. As Raízes do Crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 26. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
FERRAJOLI, Luigi. A pena em uma sociedade democrática. In: Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Revan, ano 7, n. 12, 2002. p. 31.
GLASSNER, Barry. Cultura do Medo. São Paulo: Francis, 2003.
GOMES, Luiz Flávio. Reação de Zaffaroni ao Direito Penal do Inimigo. Disponível em: <http://www.juspodium.com.br/novo/arquivos/artigos/penal/reacao-zaffanori-dp-luiz-flavio.pdf>. [Acesso em 14.09.2005].
HART, Michael. As 100 Maiores Personalidades da História. 9. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2003. p. 353-364
LORENZ, Konrad. A Agressão: Uma História Natural do Mal. Lisboa (Portugal): Moraes, 1974.
PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Medo em todo lugar e em lugar nenhum. In: GLASSNER, Barry. Cultura do Medo. São Paulo: Francis, 2003. p, 12.
SAGAN, Carl. O Mundo Assombrado pelos Demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
ZAFFARONI, Eugenio Raul; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal: Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002.
Periódicos:
Jornal O Estado de São Paulo. Fabricante de Munição financiou campanha de deputado. 03/10/2005. p. 97.
Revista ISTO É Dinheiro. As Armas do Referendo: qual é o impacto econômico para o mercado de pistolas e munição e como o cidadão comum poderá usar essa informação no voto. 12/10/2005.
Revista Época. 10 Mitos sobre as Armas. Globo, 2005, nº 386, 10/out/2005.
Revista Isto é. Referendo das Armas: 7 razões para votar Sim, 7 razões para votar Não. nº 1878, 12/out/2005.
Endereços eletrônicos:
http://www.votonao.com.br [consultado em 11/10/2005]
http://www.referendosim.com.br [consultado em 11/10/2005]