As raízes conservadoras do nacional-socialismo
A ideologia soviética via a história pelo viés econômico da luta de classes e a nazista pelo viés biológico da luta de raças. Isso levou um importante historiador a assinalar: “A centralidade do pensamento racial – bem como a ideia do assassinato maciço industrializado – constituiu a diferença básica entre o império de Hitler e o de Stalin[6]“. Portanto, essas cosmovisões distinguem radicalmente os dois regimes:
Enquanto o marxismo e os movimentos socialistas se originaram dos princípios da Revolução Francesa, o pensamento racista que antecedeu ao nazismo se formou como oposição a esses princípios. Embora esse pensamento tenha se iniciado na própria França, através de Arthur Gobineau, foi entre conservadores ingleses, como Edmund Burke, que o sentimento racial aliou-se ao nacionalismo[7].
Essa fala de Hannah Arendt é importante porque nos remete para as raízes conservadoras do nazismo. Edmund Burke (1729-1797) foi um teórico político e estadista inglês que, ainda no século 18, teceu fortes críticas ao pensamento social Iluminista que culminou com a Revolução Francesa de 1789. Embora ele considerasse que essas ideologias levariam a um reino de terror e ditadura, suas ideias nortearam o pensamento conservador que se opôs ao Iluminismo e à Revolução e sedimentaram a ojeriza que algumas elites conservadoras sentiam pelos ideais de liberdade e autonomia individual. Os conservadores criticavam no Iluminismo a ruptura com a tradição e com as crenças religiosas e morais, que eles julgavam ser “as únicas fontes legítimas de autoridade política. Os Estados não eram constituídos; eram apenas uma expressão da experiência moral, religiosa e histórica de uma nação[8]“. Com base nisso, eles atacavam os ideais de igualdade como abstrações perniciosas.
“Entre 1789 e 1815, duas concepções diferentes de autoridade guerrearam entre si: os direitos do homem de um lado e a sociedade hierárquica tradicional do outro[9]“. Enquanto a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão alterava a condição dos súditos e reafirmava a primazia do indivíduo sobre as instituições, o pensamento de Edmund Burke com sua valorização das tradições e da sociedade hierárquica restringia a noção de liberdade e de direitos ao governo fundado em práticas de longa data. No século 19, esse pensamento acomodou-se ao conservadorismo nacionalista.
Isso porque a Revolução Francesa não produziu apenas ideais de liberdade e igualdade, mas também o princípio da soberania nacional. A revolução deu novo status ao Estado moderno ao romper com os privilégios de nascimento do Antigo Regime[10] e com a hegemonia da Igreja; isso pôs em evidência a importância do Estado-nação e da autodeterminação dos povos. Como reação a isso, emergiu a ideologia do nacionalismo, que desprezava as noções de igualdade e direitos individuais e enfatizava o senso de comunidade e auto-sacrifício como prova do orgulho de um povo por sua história e por suas tradições. A nação passou a ser frequentemente evocada como entidade escolhida por Deus para cumprir um ideal elevado para o qual fora destinada. A ênfase do nacionalismo no apego à tradição, a Deus e ao passado (como a glorificação da monarquia e da aristocracia hereditária) logo se tornou a força motriz do pensamento conservador que via com desconfiança as ideias revolucionárias e os valores burgueses do liberalismo. A Alemanha foi o principal cenário onde esse pensamento se desenvolveu, encabeçado pelo movimento romântico com a evocação de um passado místico e a negação do indivíduo, que só poderia ser pensado em sua ligação com o povo, a pátria e a comunidade nacional. O pensamento nacionalista do século 19 rejeitava os direitos do homem para afirmar a força da nação com foco na etnicidade. “Os primeiros sinais de problemas futuros já podiam ser percebidos nas visões expressas no início do século XIX pelo nacionalista alemão Friedrich Jahn: ‘Quanto mais puro um povo, melhor’, ele escreveu. As leis da natureza, sustentava, operavam contra a mistura de raças e povos[11]“.
Somado a isso, o desenvolvimento da Biologia foi um importante catalisador das teorias do racismo e do antissemitismo que se difundiram na Europa a partir de então. Os estudos voltados para qualidades biológicas inerentes em determinadas raças levaram alguns povos a acreditar que apenas as melhores raças alcançariam a civilização. Por outro lado, a aquisição de direitos por parte dos judeus e a abolição da escravidão nas colônias britânicas e francesas levaram os teóricos do pensamento racial a buscarem na ciência a legitimação para afirmar a inferioridades das duas raças. Mas no final do século, a publicação na Alemanha do livro de um escritor inglês chamado Houston Stewart Chamberlain influenciaria diretamente Hitler: ele dizia que apenas dois povos ainda mantinham sua pureza racial e que por isso estavam destinados a lutar até que um extinguisse o outro: eram os arianos e os judeus. Portanto, aliado ao nacionalismo, o pensamento racista se desenvolveu de forma visceralmente avessa a toda noção de igualdade.
As orientações sócio-econômicas das duas ideologias no poder
Uma vez que o pensamento nazista se formou de uma matriz ideológica oposta aos princípios da Revolução Francesa, como disse Hannah Arendt e acabo de explicar, e os movimentos socialistas se originaram daqueles princípios, pode-se verificar que as semelhanças entre as duas ideologias quando chegaram ao poder no século XX são bem menores do que suas diferenças. Enquanto o nacionalismo se aliou a ideologias raciais com status de ciência no século 19 e evoluiu para uma postura cada vez mais segregacionista, o socialismo buscava ampliar a noção de direitos oriunda da Revolução Francesa no sentido de estendê-los às classes desfavorecidas. Ao questionar a propriedade privada e a insuficiência dos direitos políticos, o socialismo evoluiu para um pensamento revolucionário e antiliberal. Em 1843, Marx contestou a noção individualista da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que apenas levava à noção de “homem egoísta” em detrimento da verdadeira emancipação humana que não poderia ser alcançada pela política, segundo ele, mas pela ação revolucionária focada na abolição da propriedade e no deslocamento da noção de homem abstrato, individual para a de homem genérico, organizado em forças sociais. No século 20, essa teoria cimentou a ausência de direitos individuais na sociedade soviética. Ainda em 1918 os bolcheviques proclamaram uma Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, que pouco efeito teve na prática; por não assegurar direitos e liberdades individuais, deixou a sociedade à mercê do terror estatal que marcou toda a história do país sob o comunismo.
O nazismo, por outro lado, opunha-se tanto à direita liberal quanto às esquerdas (a social-democrata e a comunista) e associava todas elas ao judaísmo, que, segundo Hitler, as controlava para subjugar o povo alemão. O nome “socialista” na sigla do partido deveu-se a uma estratégia para se diferenciar de todas essas ideologias e ganhar o apoio da sociedade alemã, especialmente os trabalhadores, a quem pretendia cooptar e recrutar para reerguer a economia do país e fazer frente ao crescimento dos partidos e movimentos de esquerda. O uso da cor vermelha na bandeira também foi estrategicamente escolhido por sua vivacidade e facilidade de atrair a atenção. Hitler explicou essa estratégia em Mein Kampf. Além disso, a adoção do nome “socialismo” era antes uma provocação, segundo ele mesmo: “Neste mundo, porém, quem não se dispuser a ser odiado pelos adversários não me parece ter muito valor como amigo. Por isso, a simpatia desses indivíduos era por nós considerada não só inútil mas prejudicial. Para irritá-los, adotamos, de começo, a denominação de Partido para o nosso movimento, que tomou o nome de Partido Nacional Socialista dos trabalhadores Alemães […] A cor que escolhemos foi a vermelha, não só porque chama mais atenção como porque, provavelmente, irritaria nossos adversários e faria com que eles se impressionassem conosco[12]“.
Os adversários a quem ele se referia eram os comunistas e Hitler plagiou suas estratégias para cooptar o apoio dos trabalhadores a seu partido. Em “Minha Luta” ele detalha como foi influenciado pelas ideias socialistas sem, contudo, se unir ideologicamente a elas; antes copia-lhes os métodos de organização, propaganda, agitação e difusão para criar um partido que se lhes oponha frontalmente. Em “Minha Luta, ele escreveu:
A doutrina de Marx é assim o extrato espiritual concentrado das doutrinas universais hoje geralmente aceitas. E, por esse motivo, qualquer luta do nosso chamado mundo burguês contra ela é impossível, até ridícula, pois esse mundo burguês está inteiramente impregnado dessas substâncias venenosas e admira uma concepção do mundo que, em geral, só se distingue da marxística em grau e pessoas. O mundo burguês é marxístico, mas acredita na possibilidade do domínio de determinado grupo de homens (burguesia), ao passo que o marxismo procura calculadamente entregar o mundo às mãos dos judeus.
Em face disso, a concepção “racista” distingue a humanidade em seus primitivos elementos raciais. Ela vê, no Estado, em princípio, um meio para um fim e concebe como fim a conservação da existência racial humana. Consequentemente, não admite, em absoluto, a igualdade das raças, antes reconhece na sua diferença maior ou menor valor e, assim entendendo, sente-se no dever de, conforme a eterna vontade que governa este universo, promover a vitória dos melhores, dos mais fortes e exigir a subordinação dos piores, dos mais fracos. […]
Por outras palavras: o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães apropria-se nas características iniciais do pensamento fundamental de uma concepção racista do mundo; e, tomando em consideração a realidade prática, o tempo, o material humano existente, com as suas fraquezas, forma uma fé política, a qual, por sua vez, dentro desse modo de entender a rígida organização das massas humanas, autoriza a prever a luta vitoriosa da nova doutrina[13].
Hitler ganhou o apoio de industriais alemães, mas não foi controlado por eles. Seu regime garantiu a propriedade privada, estabilizou a moeda, construiu grandes obras, reergueu a indústria, pavimentou estradas, estancou o desemprego e garantiu qualidade de vida para a população alemã. Ele via seu partido como uma organização revolucionária, embora tenha chegado ao poder por meio de eleições livres.
Do ponto de vista econômico, os nazistas não possuíam um corpo doutrinário definido. Eles desprezavam na teoria marxista o princípio de socialização de todos os meios de produção e defendiam a existência de empresas independentes. Como a Alemanha foi arruinada pela crise de 1929, socialistas e nacional-socialistas, por motivos diferentes, pretendiam superar a ordem social burguesa marcada por conflitos de classes, egoísmo econômico e repetidas crises. Enquanto os socialistas preconizavam a revolução e a coletivização para a derrubada dessa ordem e construção da sociedade sem classes, o nazismo preconizava a conquista e o saque:
Sua concepção [de Hitler] tinha mais em comum com as tradições mercantilistas dos primórdios da era moderna, quando território, tesouro e recursos eram usurpados a ponta de espada sob a interpretação errônea de que a riqueza do mundo era finita […]. Hitler tomou emprestado da geopolítica popular da década de 1920 a ideia de que a questão primordial enfrentada por todas as nações era a limitação de espaço vital – a quantidade de terra e materiais necessários para sustentar a vida de uma determinada nação ou raça[14].
O termo “capitalismo de Estado” foi cunhado por um cientista social alemão exilado nos Estados Unidos na época para designar o modelo econômico do terceiro Reich, marcado por forte intervenção do Estado, disciplinarização da mão-de-obra e proteção do lucro privado. Tanto a direita antiliberal quanto a esquerda cultuavam o Estado e o viam como elemento indispensável para a construção da utopia, uma sociedade de super-humanos, onde racionalismo e grandeza moral se conjugariam na formação de um mundo melhor. No caso da Alemanha, o regime nazista se manifestava como um Estado de Bem-estar racial, com sua política eugênica, garantia do pleno emprego aos alemães e doutrina da superioridade da raça ariana. O conceito de “capitalismo de Estado” também é usado hoje para caracterizar o sistema soviético, uma vez que a propriedade privada também não foi extinta naquele país.
Tanto a economia soviética como a alemã eram economias de comando. E nesse ponto as semelhanças também não ocorrem por acaso: os nazistas não plagiaram apenas as cores, a organização coletivista e o nome socialismo de seus rivais: os economistas alemães também observavam atentamente como era conduzida a economia soviética e, como os planos quinquenais de Stalin, Hitler tinha o plano quadrienal com objetivos similares: investimentos na indústria pesada, substituição de importações e intercâmbio mínimo com o mercado mundial para salvaguardar as prioridades internas do país. Mas, segundo Richard Overy, nem a União Soviética era um socialismo puro nem a Alemanha nazista era propriamente capitalista. Os dois impérios tinham sistemas econômicos híbridos que se diferenciavam entre si mais pela forma como interpretavam a história, seu papel no cenário mundial e pelos objetivos das duas utopias do que pelo modo de produção predominante.
Desse modo, embora preservasse a existência da propriedade privada, o nazismo não era apenas capitalista, mas uma mistura dos dois sistemas e também não era de esquerda. Por isso usamos a designação extrema direita: Hitler acreditava que o capitalismo liberal era fraco e impotente para conter o avanço do bolchevismo sobre a Alemanha, condenava o parlamentarismo burguês como um sistema dominado pelo judaísmo tanto quanto o bolchevismo e fundou um partido que defendia um Estado forte e centralizado para se opor a isso, um partido e um Estado nacionalistas e racistas, ele sempre enfatizava. Diferentemente do socialismo, sua interpretação da história não era social (luta de classes), mas racial, nem pretendia estender os ideais de inclusão e igualdade social a todos, apenas à raça germânica. Aos outros, caberia a extinção pela guerra. Por isso também é preciso entender os homens a partir do contexto em que estão inseridos e no contexto das décadas de 1920 e 1930 a esquerda e a direita podiam compartilhar algumas ideias gerais muito populares de sua época, sem se confundirem ideologicamente.
Em uma época de impérios e darwinismo social, as noções de uma hierarquia racial eram onipresentes, e poucos europeus, da direita ou da esquerda, não acreditavam nas ideias de superioridade racial ou não aceitavam sua relevância para a política colonial. O chamado “racismo científico” era levado a sério e influenciava atitudes públicas[15].
A derrota na Primeira Guerra, a humilhação do Tratado de Versalhes, a inflação, o desemprego e a visibilidade dos judeus no pós-guerra forneceram a Hitler o fermento para a exacerbação do sentimento racista e antissemita na Alemanha: “A propaganda nazista transformou a suposição de uma conspiração mundial judaica de assunto discutível que era, em principal elemento da realidade nazista; o fato é que os nazistas agiam como se o mundo fosse dominado pelos judeus e precisasse de uma constraconspiração para se defender[16]“. Por outro lado, o medo do comunismo levou liberais e conservadores a apoiá-lo: “Muitos conservadores também estavam insatisfeitos com a democracia do entreguerras e ansiavam por uma volta a modos de governo mais elitistas, aristocráticos e eventualmente monárquicos. Achavam que o problema da democracia estava no poder que conferia às massas, em sua suposta incompatibilidade com a autoridade[17]“. Na Europa do entreguerras, a extrema direita chegou ao poder em países com pouca tradição democrática e apoiada por conservadores herdeiros do pensamento social anti-iluminista e aristocrático que remonta a Edmund Burke. Por isso o nazismo representava a direita.
Isso explica também o apoio da Igreja ao fascismo e ao nazismo, um assunto já bastante comentado na historiografia. Os ideais da Revolução Francesa a que o nacional-socialismo se opunha também não eram bem quistos pela Igreja, uma instituição que se opôs a variadas conquistas da modernidade e teve seu poder muito reduzido com o avanço do secularismo na Europa. A Igreja, na verdade, não era fascista, mas o direcionamento conservador que tomou a partir do Concílio Vaticano de 1870 veio a colocá-la como aliada de Estados autoritários e corporativos que teve em países católicos seus primeiros experimentos, cujos sistemas políticos também agiam com forte apelo à tradição católica. Segundo Eric Hobsbawm:
[…] com menos frequência observou-se a considerável ajuda dada após a guerra por pessoas de dentro da Igreja, às vezes em posições importantes, a fugitivos nazistas ou fascistas de vários tipos, inclusive muitos acusados de horripilantes crimes de guerra. O que ligava a Igreja não só a reacionários anacrônicos mas aos fascistas era um ódio comum pelo Iluminismo do século XVIII, pela Revolução Francesa e por tudo o que na sua opinião dela derivava: democracia, liberalismo e, claro, mais marcadamente, o “comunismo ateu[18]“.
O nazismo jamais foi um movimento abertamente anti-cristão, nem Hitler era ateu, como os dirigentes marxistas da União Soviética e essa era outra importante diferença entre as duas ideologias. Enquanto em “Minha Luta”, Hitler deplorava a perda da fé religiosa na Europa, particularmente na Alemanha e considerava a religião como um importante sustentáculo da vida moral numa sociedade, o socialismo, enquanto movimento herdeiro das Luzes, via as religiões como forças sociais a serviço das classes dominantes e legitimadoras da desigualdade e da opressão, o que levou as lideranças soviéticas a emplacarem um amplo programa de descristianização e desfiliação religiosa, sobretudo através da educação. O nazismo, a despeito de seu programa revolucionário, era avesso aos princípios revolucionários do bolchevismo. Por isso Hobsbawm os chamou de revolucionários da contrarrevolução.
Nacionalismo e internacionalismo
Uma característica da política soviética após a morte de Lênin foi a desistência gradual da revolução mundial e a consolidação do novo regime na Rússia. Essa foi uma preocupação de Stalin desde o início e uma de suas metas após assumir o poder. Stalin agia motivado pela preservação da revolução, por sua ampliação e via a si mesmo como o único líder bolchevique que possuía determinação suficiente para dirigir o país. Enquanto o nazismo possuía uma meta definida de extinção de outras raças, o comunismo não escolheu a priori suas vítimas, que foram sendo atropeladas à medida que o partido acreditava que elas poderiam interromper o caminho da revolução. “As consequências dessa determinação [de Stalin] para a sociedade soviética foram profundas e angustiantes, mas para ele devem ter sido justificadas pelo único imperativo de construir o comunismo[19]“.
Na União Soviética o nacionalismo jamais se tornou parte da ideologia governamental. Depois da invasão alemã em 1941, o partido apelou ao sentimento patriótico da população para combater os invasores, mas isso nem de longe se aproximava de um direcionamento nacionalista. Mesmo a ideia de Stalin de “construção do socialismo num só país” tinha um viés diferente do nacionalismo. Sobre o assunto, novamente Richard Overy:
A ideia […] foi muitas vezes mal interpretada como uma expressão de socialismo “nacional” – um deslocamento das aspirações internacionalistas do verdadeiro marxismo inspirado pelo Stalin mais “nacionalista”. Mas a ambição não era nacionalista em nenhum sentido reconhecível. Quando Stalin afirmou, em 1924, que “podemos construir o socialismo… por nossos próprios esforços”, expressava uma ambição social, não nacional. O malogro da revolução fora das fronteiras soviéticas obrigou a maioria dos bolcheviques a aceitar a visão sensata de que o socialismo teria de ser construído sem a ajuda de outros proletariados […]. Stalin nunca deu as costas à ideia de que a União Soviética devia continuar a combater o capitalismo e incentivar a revolução no estrangeiro; “o socialismo num só país” deu à União Soviética um lugar especial na liderança da luta mundial, mas não foi uma declaração de independência nacional. Se Stalin, na década de 1930, esperou que os cidadãos soviéticos expressassem um patriotismo soviético, foi por amor à única pátria socialista, não por soberba nacional […]. Embora, a partir da década de 1930, a ditadura começasse a identificar-se mais com um passado especificamente russo, ele sempre manteve a distinção entre a União Soviética como um Estado socialista de muitas nacionalidades e a nação como expressão de uma cultura particular e sem igual[20].
Enquanto Stalin não fazia distinção entre nações, Hitler as concebia como entidades inseparáveis da ideia de raça e as raças inferiores estavam destinadas a ser conquistadas e ter seus territórios tomados pelas raças superiores, dotadas de uma vontade maior de autopreservação e de uma capacidade extraordinária de produzir cultura e ciência e isso também embalava a diferença radical que os dois ditadores tinham da noção de Estado: “O Estado de Stalin era uma realidade multinacional sustentada por uma visão social e política distintamente não nacional; o conceito de Estado de Hitler baseava-se apenas na ‘preservação e intensificação’ de uma nação única, a cujos fins todas as ambições políticas e sociais deviam ser implacavelmente subordinadas[21].”
Disse anteriormente que o nacional-socialismo se caracterizava como um Estado de Bem-Estar racial, algo que inexistiu na União Soviética ou qualquer outro sistema socialista. Esse plano de fundo colocava os dois sistemas em campos opostos quanto a seus objetivos finais:
A utopia soviética buscada sob Stalin era uma utopia sociológica, cujo objetivo visava criar uma sociedade progressista baseada em torno da satisfação de necessidades humanas […]. A utopia alemã buscada sob Hitler era uma utopia biológica, dedicou-se à criação de um corpo racial puro, capaz de reprodução sob linhas demográficas estreitamente definidas. Mediam-se o valor e o bem-estar individuais em termos de utilidade biológica e valor de raça, acima de tudo a disposição de aceitar o sacrifício do eu pela sobrevivência da espécie […] É inteiramente cabível que o esforço de guerra [alemão] para construir tal utopia afundasse em malogro na guerra de 1945, pois esta foi a lógica do darwinismo vulgar que embasou o empreendimento – vitória ou derrota na luta pela existência[22].
O Estado soviético tinha uma posição formal contra todo tipo de discriminação racial aberta ou violenta, além de ser formado por variados grupos étnicos que jamais foram perseguidos por motivos raciais. As deportações em massa que ocorreram na União Soviética no final e após a Segunda Guerra não tiveram um padrão pré-estabelecido de corte racial. Embora grupos étnicos praticamente inteiros tenham sofrido deportação na URSS, as razões para isso tinham fundo político, não étnico. No caso da Alemanha, ao contrário, a “solução final”, a questão da eliminação dos judeus, ganhou contornos mais dramáticos a partir de 1941, quando os alemães puseram em prática o assassinato em massa de judeus que durou, segundo Richard Overy, até 1944. Hitler via sua guerra contra outras raças, especialmente os judeus, em termos extremos de sobrevivência ou extinção.
A União Soviética era uma federação de nacionalidades, cujas identidades nacionais foram respeitadas na medida em que não comprometeram as ambições políticas centrais do regime […] Xenófoba e exclusiva, a Alemanha de Hitler viu-se em direta e violenta competição com todas as outras nacionalidades, trancada numa história perpétua de luta racial. As raças estrangeiras não podiam ser assimiladas sob quaisquer circunstâncias[23].
Não é possível compreender adequadamente as diferenças entre socialismo e nacional-socialismo se não se tiver clareza da importância e das raízes dos conceitos de internacionalismo e nacionalismo que norteavam as duas ideologias e as colocava em oposição tenaz.