Bicho, vegetariano sofre...
Ontem fui ao almoço de despedida de uma de nossas colegas de trabalho, à convite dela mesma. Como gosto muito dela, pessoa extremamente simpática e comunicativa, fui com a turma. Normalmente eu declino destes convites, pois sei que a bebida alcoólica vai rolar solta, e as refeições são todas baseadas em pratos de carnes.
Pois este almoço não fugiu à regra. A começar pelo restaurante: comida típica mineira (devia ter carne até no saleiro, rsrs).
Quando sentei-me à mesa, junto com mais dois ou três colegas, o chefe, a homenageada e mais um colega já estavam no aperitivo: caipirinha de vodka.
Me ofereceram, recusei: — Não bebo, sou abstêmio...
Pronto! Meu chefe que é do tipo gozador já disparou a primeira, que sinceramente nem me lembro bem. Só sei que ele falou algo como “Este pessoal cheio de frescura normalmente esconde algum segredo!” – acho que ele insinuou que sou bicha, como eu não sou, não liguei. Aliás, nem dá para ligar para alguém que está drogado pelo álcool...
Sem o menor escrúpulo, pedi uma laranjada. Sem açúcar, por favor.
Outro momento de dificuldade: o cardápio. O que pedir? Até o momento, ninguém sabia que eu sou vegetarista (não, não vou dizer vegetariano – me recuso!) Os pratos podiam ser pedidos para dois ou para uma única pessoa, como estávamos em número ímpar – 7 – eu fiz o pedido unitário: Tutu/arroz/mandioca/couve/lingüiça (argh!). Foi quando eu deixei escapar que não comia carne, queria que separasse a lingüiça...
— Você não come carne? Oh!... (tenho a impressão que ouvi esta frase em oníssono – todos ao mesmo tempo. Todos me olharam como se eu fosse um ser de outro planeta)
— Sim, faz treze anos – respondi com aparente tranqüilidade (apenas aparente, pois queria mesmo era sair dali correndo).
A moça mais jovem, Carol, 28 anos, arregalou os olhos e me perguntou: - Como você se sente sendo vegetariano? Se sente bem?
— Sim, tanto fisicamente quanto espiritualmente. (fiz questão de mencionar a parte espiritual pois a Carol é daquelas religiosas roxas)
— E sua esposa, também é vegetariana?
— Sim... (fiquei reticente pois não queria de jeito algum tocar no assunto do vegetarianismo, não naquele templo da carne, estando rodeado de lobos famintos)
Percebi que a Carol vibrava por dentro, seus olhos excessivamente abertos e brilhantes deixavam transparecer uma certa admiração. Olhos que me acompanharam praticamente durante todo o almoço. Creio que se alguém se tocou positivamente naquele fatídico almoço, este alguém foi ela. Mas será que foi somente ela? Creio que não, como logo percebi.
— E as vitaminas, como você faz para adquirir as vitaminas? É a carne quem fornece as vitaminas, né? – disse ela, toda preocupada.
— Eu retiro as vitaminas dos vegetais, sem problemas. A única vitamina que não existe nos vegetais é a B12, mas aí é só suplementar. (disse isso mas na verdade eu nunca suplementei)
Nesse instante meu chefe contou sobre um conhecido que não comia legumes nem verduras, só carne.
— E como ele adquire as vitaminas? – perguntamos.
Fez um sinal com os dedos, imitando um frasco de comprimidos.
— Suplementos, muitos deles.
“Cada maluco!” – pensei. “Esse cara deve cagar pedra...”
O rapaz que sentou-se à minha frente, o Fernando (20 anos), ficou impressionado quando lhe disse que havia 13 anos não bebia mais álcool. Perguntei-lhe: “Qual a diferença entre fumar maconha e tomar whisky? Nenhuma! No entanto, a maconha é proibida enquanto o álcool é vendido livremente por aí.” O rapaz concordou e até contou casos de conhecidos que fumavam a erva (natural, segundo ele) sem grandes problemas. E, segundo ele mesmo, o problema da maconha era o incentivo a drogas mais pesadas. Qual a diferença para o álcool? Quem toma cerveja vai querer provar whisky, ou vodka, ou outra qualquer! – disse-lhe.
A verdade é que o papo ia e vinha, e vez por outra caía no vegetarismo. Mas era só provocação. Como o brasileiro é imaturo, aff!
Um outro rapaz, também 28 anos, gordo como um leitão, sentado na extremidade oposta da mesa de onde eu estava sentado, também alcoolizado, soltou a dele:
— Ricardão! Quer dizer então que se você levar uma moça para detrás da moita, você come a moita e poupa a moça?
Risos estridentes ecoaram em meus ouvidos já afoitos pela saída!
Respondi com uma calma que nem eu acredito (queria mesmo era esmurrá-lo, mas contive-me)
— Eu não entendo este tipo de comparação. Quer dizer então que você come moças? Eu não como moças, eu faço amor com elas...
Mais risos, desta vez a meu favor – ufa! Acho que me saí bem desta...
O garçom trouxe o primeiro prato: picanha grelhada! E o imbecil colocou aquele prato escaldante bem na minha frente! Dela saía uma fumacinha que – para meu espanto – tentava sufocar-me invadindo as minhas trêmulas narinas!... Não deixei barato e logo me manifestei:
— Você vai por este troço bem aqui na minha frente?!¿?...
O chefe desta vez foi legal:
— Não, não! Tira daí e põe para lá, senão o Ricardão vai terminar desmaiando...
(Que ódio... Perdoai-os Pai, eles não sabem o que fazem)
A Laura, eu diria uns 52 anos, nossa homenageada, trabalhou um tempo na China. O Cláudio, uns 57 anos, nosso chefe, que a conhece bem há uns 20 anos, provocou-a:
— A Laura gosta de comer cachorro e insetos, hehehe! E já comeu cobra também, hahaha!!!
— Oras, Cláudio! Me deixe!
— Vai dizer que é mentira? Na China você comia estas coisas sim!
— Eu não! Aliás, se comi não percebi...
Vendo que alguns fizeram cara de nojo, larguei uma das minhas:
— Brasileiro faz cara feia quando fala “Uh, chinês come cachorro!”; no entanto, hindu faz cara feia quando fala “Uh, brasileiro come boi!”... (silêncio mortal)
— Nem todo hindu não come boi – disse a Laura. – Há uma pequena parcela que come...
— Qual a diferença de comer boi e de comer cachorro?... – perguntei, com a intenção de mostrar que tanto um como o outro é nojento.
— NENHUMA! – me responderam em oníssono. E as garfadas nos ‘apetitosos’ pratos de carne nem assim cessaram.
— E como é comer cobra, Laura? – perguntou inocentemente a Carol.
Meio sem graça, Laura lhe respondeu:
— Eles cortam a cobra no meio – da cabeça ao rabo – separam o que não presta e servem. Até que é bom, parece peixe...
Meu estômago ameaçou boicotar-me.
— E escorpião, você comeu? hehehe – atirou o Nelson, um japonês de 40 anos que até então sorrindo apenas observava.
— Deeeus me livre! E eu sou louca de comer insetos?
— Ugh, que nojo – disse Felipe, o leitãozinho.
Aí tive que me intrometer novamente: - Qual a diferença entre comer um escorpião e comer um siri?...
— Siri anda de lado, escorpião anda assim! hahaha... – berrou Felipe.
— Escorpião come-se tudo, siri sobra a casquinha, hahaha! – este engraçadinho foi o japa.
(meu deus, o que faço aqui?)
— É tudo a mesma coisa – falei. Inútil.
Nessa hora percebi que a Laura já me olhava diferente. Estava realmente preocupada comigo, talvez arrependida de ter-me colocado naquela constrangedora situação.
— Ricardo, coma desta polenta, aqui tem mais mandioca, coma também!
— Não se preocupe, estou me alimentando bem...
— Fique à vontade se quiser pedir mais alguma coisa...
— Não, estou bem, obrigado...
— Hmmm, então você é chegado numa mandioca? hehehe – era o leitãozinho.
— Sim, adoro mandioca, você não?
— Eu quero distância de mandioca, hehehe...
(que saco)
— Quem tem cara de quem gosta de mandioca é o Fernando, hahaha – bradou meu chefe.
E a Carol me olhando.
E a Laura querendo me empurrar suas polentas.
E eu não via a hora de ir para o sagrado silêncio do escritório!
O papo virou para o leite. “Leite você toma! – dirigiu-se para mim o Nelson.
Nem leite, nem ovos. Só “por tabela”, em massas e bolos.
— Nem leite?...
— Nem leite. (não sei como eu não explodi)
Falaram alguma coisa do aumento do preço do leite, mas eu tava com tanta raiva que nem prestei atenção. Meu chefe contou que alguns amigos seus o criticavam muito por causa do colesterol, mas que ele nunca teve problemas com isto. E que todos que o criticavam já morreram (de colesterol?)... Que a Medicina não sabia explicar porque fulano não desenvolvia colesterol alto enquanto cicrano que tinha colesterol baixo tava mal, etc. etc. etc.
— O diferencial – me meti na conversa – está no humor. (silêncio total). O que faz o Claudio viver bem e melhor que os seus amigos é o seu bom humor. Pessoas de bom humor vivem mais e melhor que pessoas mal-humoradas. (no coments)
Finalmente o papo fluiu para outras estâncias e me esqueceram (aleluia!). Pouco depois nos levantamos e eu, cavalheiro que sou, deixei as damas passarem à minha frente, pois os demais ‘cavalheiros’ já estavam na porta de saída. Passou a Carol e, ao passar a Laura, nossa homenageada, esta parou à minha frente oferecendo o rosto. Beijei-lhe a face corada e esta me envolveu num forte abraço. O que ela estava agradecendo? Minha presença, apesar das investidas contra mim? Meus ensinamentos filosóficos? Jamais saberei, mas me senti reconfortado com aquele gesto simples e espontâneo. A Laura passou a fazer jejum semanal de doze horas, influenciada pelo meu jejum; quem sabe não passará a ser vegetarista também?
Só uma coisa eu sei: este almoço não esquecerei jamais, rsrs...
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Ricardo Euzébio