Uma voz que clama pela justiçaA iraniana Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz em 2003, diz em São Paulo que os ventos da “Primavera Árabe” vão chegar a seu país e defende que garantir os direitos das mulheres ajuda a encurtar o caminho para a democraciaO Irã tem um grande potencial para mudança, e a democracia chegará ao país num futuro próximo, inclusive pela influência da “Primavera Árabe” nos países vizinhos. Mais do que uma esperança, essa certeza foi afirmada pela advogada e ativista dos direitos humanos iraniana Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz de 2003, na segunda conferência do ciclo Fronteiras do Pensamento, realizada na Sala São Paulo no dia 14 de junho. Shirin Ebadi foi a primeira mulher de seu país a ser nomeada juíza e presidiu um tribunal legislativo até ser obrigada a deixar o cargo depois da revolução de 1979, que levou ao poder os islâmicos radicais liderados pelo aiatolá Khomeini. Desde 2009 ela vive exilada na Inglaterra e percorre o mundo denunciando as violações dos direitos humanos em seu país.
Democracia e direitos da mulher são dois lados da mesma moeda, diz Shirin Ebadi: "Onde a democracia está mais avançada, a situação da mulher melhora. A vitória do movimento feminista abre caminho para a democraciaO potencial para a mudança, acredita a advogada, vem de fatores como a alta proporção de jovens no país – críticos do governo pela falta de liberdade e pela situação econômica, que leva a dificuldades para conseguir emprego – e o aumento das manifestações dos trabalhadores, também pressionados pela crise e pelos baixos salários. “Outro potencial são as mulheres, que no Irã têm muita educação e são contra as leis discriminatórias”, diz.
A democracia e os direitos da mulher são duas faces da mesma moeda, considera a Prêmio Nobel – que falou em sua língua natal, o farsi, e foi interrompida várias vezes pelos aplausos do público. “Onde a democracia está mais avançada, a situação das mulheres melhora. A vitória do movimento feminista em qualquer país encurta e até abre caminho para o estabelecimento da democracia”, acredita. “Os governos não-democráticos acham seus piores inimigos entre as mulheres.”
Se o marido deixar – Shirin Ebadi traçou um panorama da situação das mulheres pelo mundo, lamentando que “na ciência e tecnologia temos realizado grandes progressos, mas a civilização humana ainda não progrediu para dar direitos iguais a homens e mulheres”. Elas permanecem sob discriminação e opressão, que apresentam diferentes formas nos mais distintos países e continentes. Mesmo nas nações desenvolvidas, aponta, na maioria das vezes as mulheres ainda assumem jornada dupla e não podem usufruir dos mesmos direitos dos homens. Elas também ocupam menos cargos de comando nas empresas, nos partidos e nos governos.
Em outras regiões, a discriminação está nas leis e também se apoia em costumes tribais e crenças tradicionais. É o caso da mutilação genital, prática corrente em países como Sudão, Nigéria e Somália. Na Arábia Saudita, as mulheres não podem dirigir e até há pouco tempo sequer tinham documento de identidade. Em algumas áreas do país, elas são referidas pelo nome dos filhos homens, e é malvisto citar ou dizer em público o nome de uma mulher. No Afeganistão, embora a lei determine que pelo menos 25% das cadeiras no parlamento sejam ocupadas por representantes femininas, isso não garante a sua voz. Recentemente uma parlamentar criticou o governo – e foi expulsa da casa sob o argumento de que às mulheres só é permitido votar, não opinar.
“Só em Cabul as mulheres têm algum grau de conforto. No resto do país, têm que ficar em casa e são forçadas a usar a burca. O Taleban destruiu muitas escolas para meninas e continua mantendo influência”, relata. “Meus amigos no Iraque me contam que a invasão militar causou o aumento do fundamentalismo e reduziu os direitos das mulheres. Ou seja, a invasão não apenas não melhorou a situação delas, como deixou-a ainda pior do que no tempo de Saddam Hussein.”
No Irã, a revolução de 1979 não cassou o direito de voto das mulheres, conquistado há mais de 50 anos – há inclusive ministras no atual governo de Mahmoud Ahmadinejad. Porém, entraram em vigor leis discriminatórias, como a que determina, por exemplo, que a indenização paga a um homem em caso de acidente é o dobro daquela paga a uma mulher. Na Justiça, o testemunho de um homem equivale ao de duas mulheres. “Essas leis não estão de acordo com a situação cultural das mulheres do Irã, e por isso elas estão contra o governo”, diz Shirin Ebadi.
Outra lei estabelece que uma esposa que quiser viajar para fora do país precisa da autorização por escrito do marido. “Se nossa ministra da Saúde tiver que ir para uma reunião da Organização Mundial da Saúde na Suíça, mas tiver tido um desentendimento com seu marido em casa e ele não quiser dar a autorização, a cadeira da representante de 75 milhões de iranianos ficará vazia”, ressalta.
Shirin Ebadi (acima) e protestos no Irã (abaixo): potencial para a mudançaNão é a religião – Shirin Ebadi considera que é um equívoco atribuir ao islã a origem das leis que restringem os direitos das mulheres. Para ela, a discriminação não escolhe religião – pode existir no hinduísmo, como em regiões remotas da Índia em que a viúva é queimada viva junto ao corpo do marido quando este morre; ou no cristianismo, pois a mutilação genital é praticada também em países de maioria cristã. Na China, é alto o número de aborto de fetos do sexo feminino – a preferência dos pais por meninos é uma das consequências da política do filho único. “E a China não é islâmica, mas segue os princípios do socialismo”, observa a advogada. “A discriminação está em toda parte e não é específica dos países islâmicos.”
“O islã, como qualquer ideologia, tem interpretações diferentes”, aponta Shirin. O paralelo traçado pela Prêmio Nobel da Paz é com o cristianismo: de um país para outro, igrejas da mesma confissão podem ter orientações distintas sobre temas como aborto ou casamento de pessoas do mesmo sexo. O fundamento da imposição dessas leis, defende, é “a cultura patriarcal e machista, que faz uma interpretação da religião contra a mulher”.
Essa cultura patriarcal, diz a advogada, “não aceita a igualdade dos seres humanos”. Para Shirin Ebadi, as mulheres são vítimas, mas também portadoras e transmissoras desses valores, porque são elas que criam e educam os filhos. O combate à discriminação passa pelo direito fundamental da mulher de ter mais informação e educação de qualidade.
A advogada elogiou ainda a recente mudança de postura do governo brasileiro em relação ao Irã. Em março, na Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, o Brasil deu voto favorável à proposta de designação de um investigador independente de direitos humanos para o Irã. “O povo iraniano está feliz pelo fato de que o Brasil não mais apoia Ahmadinejad e o governo não-democrático do Irã”, considera. Shirin Ebadi, porém, lamentou não ter conseguido se encontrar com a presidente Dilma Rousseff, como desejava.
Perseguição – Nascida em Hamadã, a mais antiga cidade persa e uma das mais antigas do mundo, Shirin Ebadi cresceu numa família de classe média, e seu pai era professor de Direito Criminal. “Aprendi com meus pais a crença no princípio da igualdade das pessoas”, conta. Ela concluiu seus estudos de Direito na Universidade de Teerã e iniciou sua carreira como juíza em 1970, aos 23 anos. Aos 28, foi a primeira mulher indicada à presidência de um tribunal municipal. Com a revolução de 1979, foi rebaixada a uma função de secretária e deixou o trabalho.
Conseguiu então a licença para abrir um escritório e passou a defender vítimas de violações de direitos humanos. A partir de sua atuação, formou ONGs para trabalhar com crianças, mutilados por minas terrestres e direitos humanos. Esta última contava com 20 advogados e acabou fechada pelo governo. Por causa das perseguições, os juízes passaram a não ter coragem de aceitar queixas encaminhadas por ela.
Uma das causas que Shirin assumiu foi a defesa de um grupo de seguidores da religião Baha’i, perseguida pelo governo. Sete líderes foram presos, acusados de espionagem para Israel e os Estados Unidos. “Nos autos não há nenhuma prova dessa acusação, que é totalmente inverídica. Eles foram presos por sua crença, mas o governo, por não poder justificar a perseguição religiosa, inventou a acusação de espionagem”, diz a advogada. A pena é de 20 anos, dos quais os presos já cumpriram três.
Muçulmanos em oração: repressão à mulher não vem da religião, mas da cultura patriarcal e machista, diz Shirin Ebadi“O dever de um defensor dos direitos humanos começa quando as condições pioram”, afirma. “No Irã, infelizmente a situação dos direitos humanos piora dia a dia.” Shirin Ebadi vem sentindo na pele as consequências de sua postura corajosa. Em junho de 2009, saiu do país para participar de um seminário na Espanha. Exatamente naqueles dias estouraram os protestos contra o resultado das eleições presidenciais, que reconduziram Ahmadinejad ao poder. Colegas e amigos da advogada estavam entre as centenas de pessoas perseguidas e presas. Seu marido e sua irmã também foram encarcerados, e seu patrimônio foi confiscado. Ela decidiu permanecer no exterior, denunciando a situação iraniana.
“O que acontece comigo não é importante. Esperavam que eu ficasse calada, mas tenho o dever de transmitir a voz do povo do Irã a todos os povos do mundo”, afirma Shirin Ebadi, cuja pequena estatura física é inversamente proporcional à firmeza e à determinação com que maneja seus argumentos. “Tenho um dever, que é o de relatar a verdade. Enquanto estiver viva, vou cumprir esse dever e levar o protesto do povo iraniano para o mundo.”
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