Novo programa de direitos humanos, de tão prolixo, parece feito para não fazer coisa algumaMaioria dos problemas apontados é da esfera pública, e existem não pela falta de leis, mas pela impunidadeAo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se atribui ter pedido, certa vez, para que esquecessem o que escrevera como sociólogo. Ao presidente Lula, conforme o rumo de partes do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), se poderia dizer, por analogia, que a sua Carta aos Brasileiros, de maio de 2002, com a qual descartou a tese da ruptura de contratos do PT, também é para ser esquecida.
Não chega a tanto, mas é o que os críticos sugerem, e ainda mais por vir sob a chancela de decreto – um pormenor jurídico que ganha relevância num ano eleitoral. A formalidade aos direitos humanos é resultado de convenção de 1993 das Nações Unidas, da qual o Brasil é um dos muitos signatários. Ela orienta a formulação de programas essenciais aos direitos civis e políticos definidos em plataformas com revisões periódicas. Não deveria provocar chiliques.
O 1º PNDH é de 1996, o 2º, de 2002, ambos do governo passado. Em essência, não diferem tanto do 3º, de Lula. Mas o que FHC tratou como diretrizes para o que, na prática, está na Constituição, Lula ampliou para muito além de sua base de apoio político por meio de “ampla jornada de discussões, debates e seminários” nos estados, como ele mesmo destacou ao lançar o programa no fim de dezembro.
Foram 137 encontros estaduais e uma conferência em Brasília, com 14 mil pessoas ao todo envolvidas, segundo o articulador do PNDH-3, o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria dos Direitos Humanos.
É muita gente, conforme o sentido da administração participativa defendida pelo PT, mas é muito pouco para substituir a vontade do eleitor, representada pelo Congresso, tratando-se de um programa com 521 ações e 81 objetivos, da responsabilização de torturadores durante o regime militar à interveniência de centrais sindicais e sindicatos em processos de licenciamento ambiental.
Vannuchi e o ministro Tarso Genro, outro ativista do PNDH, devem ter se entusiasmado. As propostas prosperaram sem relação com sua viabilidade política, ataram-se às de outras conferências, como a das Comunicações, e Lula, talvez confiante em sua popularidade, bancou o que é maior que o seu cacife político.
Lula já amenizou parte da questão militar, criando um grupo para formatar o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade, e orientou a ministra Dilma Rousseff a evitar os temas candentes do PNDH.
Bandeira à oposiçãoO resultado é que se criou grande expectativa entre os movimentos sociais, os mais mobilizados pela ação, e setores da esquerda, em especial do PT.
Mas ficaram ausentes grandes partidos da eclética base governista e outros importantes segmentos políticos, como os militares, os empresários e a cúpula da Igreja Católica, todos, de alguma forma, atingidos pela fartura de propostas do 3º PNDH.
E precisava disso tudo depois de sete anos de governo e aprovação nas alturas? A resposta nunca será conclusiva. Mas a “gincana de tiros no pé”, segundo Ricardo Kotcho, ex-secretário de Imprensa de Lula e seu amigo pessoal, “trouxe sérios problemas para o governo e deu de graça a bandeira e discurso que faltavam à oposição”.
Uma Carta sem leitorO PNDH revisto e ampliado toca mais pelo que esmiuça dos direitos e garantias individuais que pela eventual afronta à Constituição.
Não há o que mudar numa Carta que determina que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e define como “objetivos fundamentais da República” “promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Está tudo lá. Mas poucos, especialmente os governantes, a tem como livro de cabeceira. Basta aplicá-la.
Ocultando a omissãoParece pueril, e deveria ser. Extensa até demais, a Constituição já prevê a proteção às minorias, dispensando lei complementar. Se há desrespeito é porque há omissão dos que competem cumprí-la. Os arquivos da ditadura, por exemplo. A lei os liberou. Falta muito a apurar, mas também falta determinação ao governo em ir atrás.
Se a anistia se estende a torturadores, à Justiça cabe julgar as ações impetradas com tal intenção. E conflitos no campo? Em terra grilada, são casos de polícia, como um roubo, não para comitês de mediação como propõe o 3º PNDH, válidos para situações eventuais, mas complicadores da paz social diante de esbulhos organizados e quadrilhas de grilheiros.
Tais problemas são da esfera pública, e existem não pela falta de leis, mas pela impunidade. A impressão, no fim, é que tanto barulho serve é para omitir responsabilidades.
Plano sem conversaAs serventias são muitas. Um programa de direitos humanos sem o envolvimento do Congresso, que trata o governo mais como ombdusman da sociedade que responsável final pela sua aplicação, que propõe miudezas, como a retirada de crucifixos de prédios públicos, coisa da tradição, não de afronta ao caráter laico do Estado, que põe sob a assinatura presidencial propostas já em debate no Congresso, como a descriminalização do aborto.
A lista é tão prolixa que mais sugere a vontade de polemizar que aprovar alguma coisa. Como diz o governador Marcelo Deda (PT-SE), um plano aprovado de “afogadilho, sem consenso mínimo no governo, faltou conversa”. E discernimento.
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