America first– os Estados Unidos da América em primeiro lugar. Isso não quer dizer apenas patriotismo, o que já seria algo muito perigoso. Quer dizer principalmente nacionalismo, protecionismo e destruição do vizinho. America first é a ideia bomba do novo presidente eleito na semana passada para governar pelos próximos quatro anos a maior potência econômica e militar do planeta.
A simples possibilidade de realização desta ideia assombra as burguesias do mundo todo. Primeiro, porque seria o fim do longo período de livre-comércio e da globalização do capital dos últimos setenta anos, em que todas elas lucraram muito. Como essas burguesias nacionais de todo o mundo poderão salvar sua propriedade privada com o fim deste atual longo período de acumulação desenfreada em que o valor e a mais-valia serpenteiam livremente pelos quatro cantos do mercado mundial, seu habitat natural? Segundo, mas não menos importante, como essas diferentes burguesias nacionais poderão sobreviver politicamente, quer dizer, garantir a governabilidade em seus diferentes Estados nacionais, com a falência do mundo liberal e ultra-imperialista que elas julgavam eterno e ao qual se acomodaram e se habituaram a viver nos últimos setenta anos do pós-guerra? A palavra de ordem agora é outra: burguesias de todo o mundo, desuni-vos!
As burguesias europeias foram as primeiras a derramar publicamente suas lamúrias. Em particular a francesa, a mais ameaçada das grandes economias do velho continente por convulsões sociais e guerra civil quando da explosão do próximo choque global. Com titulo bastante sugestivo – “Face au défi Trump, Europe First” [Face ao desafio de Trump, Europe First] – o jornal conservador Le Monde destila ressentimento (e muita paura) de uma velha potência decadente frente à falência da pax imperial norte-americana do pós-guerra:
“A América em primeiro lugar, ‘America First’: se se pode reprovar o presidente eleito Donald Trump pela incerteza em torno de sua visão da política externa pode-se, pelo menos, discernir aí uma ideia central que deve lhe servir como principio condutor: a política exterior dos Estados Unidos será guiada doravante pela defesa dos interesses americanos, e nenhum outro. O intervencionismo liberal, a promoção dos “valores” e dos direitos do homem, a vontade de instituir para a comunidade internacional normas conformes aos princípios democráticos, a liderança e a defesa dos aliados, tudo isso que caracteriza a ação dos Estados Unidos na cena mundial, nos seus bons e nos seus maus momentos, desde a segunda guerra mundial, está notavelmente ausente da retórica trumpiana. Para a Europa é um desafio de primeira grandeza. A relação transatlântica teve seus altos e baixos, mas seu fundamento não foi jamais, até agora, colocado em questão. Para a União Europeia, a relação com os Estados Unidos é existencial, em termos de comunidade de valores, de sistema político, de aliança militar e diplomática – e de relações econômicas. O que lhe reserva a administração Trump é uma questão capital... É a Europa unida que, nos últimos tempos, soube marcar posição em diversos contenciosos com o Estados Unidos, em particular frente aos gigantes tecnológicos americanos e no terreno da fiscalização. Nestes campos, face à ‘América First’, a União Europeia deve jogar a carta ‘Europe First’”. (Le Monde, 10/11/2016)
Outros notáveis ideólogos da democracia e do livre-mercado também acusam o golpe. É o caso de Mr. Francis Fukuyama, filósofo dos órgãos de segurança do imperialismo norte-americano. Nos gloriosos anos 1990 de intensificação da globalização e do livre-mercado Mr. Fukuyama anunciava triunfantemente o “fim da história”, com a profundíssima ideia de que “o liberalismo político e econômico saiu vitorioso da batalha contra o nacionalismo, o socialismo e o comunismo”. Muita gente acreditou nesta propaganda enganosa de vida eterna da empresa Capital & Democracia. Pelo menos até 2008/2009, a fé de Fukuyama em sua honorável obra filosófica continuava inabalável. "Não apareceu nenhuma ideologia nova", declarou orgulhosamente em recente entrevista. Mas agora, com a vitória de Donald Trump, Mr. Fukuyama jogou a toalha. Em artigo no jornal Financial Times (13 Novembro/2016), ele enumera assim os fatos que causaram sua súbita reviravolta ideológica acerca do mundo:
“A espantosa vitória eleitoral de Donald Trump sobre Hilary Clinton marca um momento decisivo não só para a política dos EUA mas para toda a ordem mundial. Parecemos estar ingressando em uma nova era de nacionalismo populista, na qual a ordem liberal dominante construída dos anos 50 em diante passa a sofrer ataque de parte de maiorias democráticas raivosas e energizadas. O risco de decairmos a um mundo de nacionalismos concorrentes e igualmente raivosos é imenso. Se acontecer, a ocasião poderá ser tão tormentosa quanto a queda do Muro de Berlim, em 1989. A elite liberal que criou o sistema precisa ouvir as vozes raivosas que gritam diante dos portões, e pensar em igualdade social e identidade como questões de primeira ordem que precisam ser resolvidas. De uma forma ou de outra, teremos uma estrada difícil nos próximos anos”.
O problema na análise dos ideólogos burgueses, seja na Europa, seja nos EUA, ou alhures, é que eles tratam Donald Trump como o determinante, o demiurgo dos próximos e catastróficos acontecimentos econômicos e geopolíticos – e não como uma consequência antecedente destes próprios acontecimentos. Assim, embora eles pressintam que um grande tsunami global se anuncia, esses ideólogos – reformadores sociais ou conservadores – não querem ou não podem aceitar a realidade pela qual a plataforma patriótica e isolacionista do seu “super homem” que deve ocupar a Casa Branca em janeiro próximo não passa de um primeiro e tímido esboço para salvar o seu país dos efeitos catastróficos do próximo choque global e de uma consequente 2ª grande guerra civil norte-americana. Qual é nas atuais circunstâncias históricas a melhor plataforma política para administrar a luta de classes no interior da maior potência econômica e militar do planeta. Esta é a verdadeira questão anunciada pelo fenômeno eleitoral Donald Trump.
Seu tímido esboço de salvação nacional valeu a vitória para o super Trump nas urnas. Os deserdados da globalização gostaram de suas ideias e votaram neste esperto oportunista. Principalmente no deteriorado e programado para explodir “cinturão da ferrugem” do norte do país. Enquanto a democracia funciona bem, quando a lei do valor não é contestada, os operários industriais são antes de tudo cidadãos e eleitores. Povo, não classe. Duas coisas bem diferentes. Tanto na ideia quanto na vida democrática real, o povo é sobreposto à classe. Todos os diferentes são iguais perante a lei. E em regiões onde predominam esses milhões de cidadãos desempregados no processo de globalização da indústria nacional, o voto deles vai necessariamente para o candidato que melhor enrolá-los com a promessa do emprego de volta, plano de saúde que vai funcionar, salário para comprar comida, para pagar aluguel da pequena casa e outras coisas básicas e tão cruciais à sua reprodução meramente biológica. Esses cidadãos acreditam piamente que o Estado e a democracia podem resolver seus problemas econômicos, materiais.
Para evitar a nova e definitiva guerra civil no interior do seu país, a burguesia norte-americana deve exportar sua anunciada e insuperável crise econômica para o resto do mundo. Agora, de maneira muito mais espraiada e massacrante que em ciclos econômicos periódicos anteriores do pós-guerra. Mas isso só pode se realizar e assim neutralizar seus inimigos de classe internos, como bem ensinava Maquiavel, se o soberano substituir seus inimigos e guerras civis internas por inimigos em número cada vez maior e guerras externas cada vez mais amplas.
http://www.criticadaeconomia.com.br/noticia/detalhes/349