O JJ pôs aí uns pontos interessantes, numa forma inteligente de questionar. Não que eu concorde com tudo em todos os detalhes, mas no bojo é isso aí que eu penso também. Ciência é só uma parte do conhecimento humano, não o topo dele. Pode ser só o ramo do conhecimento de adeptos mais arrogantes...
Bom, isso eu acho que é um equívoco absoluto.
Está se tornando popular, hoje em dia, um certo discurso relativista que preconiza que qualquer forma de conhecimento, ou método de obtenção de conhecimento, ou mesmo que qualquer crença em se ter algum conhecimento, é tão válida quanto qualquer outra. Tudo seria uma questão de opinião, de pontos de vista, assim ninguém teria autoridade para dizer que usar voodoo seria menos eficaz que usar medicina.
Esse discurso vem tomando corpo até na Academia, mais predominantemente em grupos ligados à área de Humanas. Chegam a ver Ciência como uma forma opressora de dominação cultural imposta pela civilização ocidental. Uma espécie de neo-colonialismo das mentes, que erradica o conhecimento tradicional de outras culturas, assim submetendo-as a um modelo alienígena de pensamento europeu-ocidental. Seria uma nova forma de colonialismo sem ocupação de território por exércitos, mas que se dá pela "ocupação" das mentes de povos terceiro-mundistas pelo sistema de crenças ( assim querem enxergar a Ciência, um sistema de crenças ) ocidental. Acham que há um objetivo planejado para que estes povos se despersonalizem culturalmente, para que percam a própria identidade, e este seria um instrumento para mantê-los submissos e colonizados.
Essa ideia é um disparate risível. Em 1º lugar Ciência não é sistema de crenças, e depois, se alguém quer mesmo manter um país ou povo na submissão e subdesenvolvimento, não haveria forma melhor de fazê-lo do que impedindo seu desenvolvimento científico e tecnológico. Inquestionavelmente foi a Inglaterra que colonizou a África, e não a África que colonizou a Inglaterra, apenas porque os ingleses descobriram a Ciência antes dos africanos. Os europeus podem viver muito bem sem medicina voodoo, mas os haitianos necessitam todos os anos de milhões em ajuda humanitária.
Ciência não pode ser confundida com sistema de crenças porque para ser Ciência precisa ser testável. Todo conhecimento científico, por definição, precisa ser independentemente verificável. E em nenhuma medida o apelo à autoridade é aceitável.
Essa postura intelectual, ao contrário do que você supõe, é o oposto da arrogância. Pois tendo que ser independentemente verificável, o conhecimento científico é universal em essência, e não pode ser imposto de maneira alguma. Não importam suas crenças: sempre que você aferir, a força gravitacional será proporcional às massas das partículas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre estas. Cientistas e homens educados podem ser arrogantes, mas a Ciência em si é um sistema que se fundamenta na humildade máxima de reconhecer e aceitar as limitações e falhas inerentes ao ser humano. Tanto as cognitivas quanto as morais e éticas.
Curiosamente há segmentos tanto na "direita" quanto na "esquerda" que adotam esse mesmo discurso relativista em relação à validade da obtenção de conhecimento pelo método científico. Só que entre os conservadores a inspiração vem da direita fundamentalista cristã. Tradicionalmente prepotente e arrogante, impositor de dogmas, não é à toa que este grupo social está se tornando raivosamente anti-ciência.
Eu concordo com você que o método científico não é a única forma de obter real conhecimento. E há mesmo campos de estudo que não se sujeitam ao método científico. Por exemplo: uma tese em História ou Economia poderá não ser falseável.
Mas a Ciência é a única forma de obter conhecimento que é independentemente verificável, e isso a distingue de todas as outras.
Sobre a questão da "cura gay" eu discordo um pouco de todos aqui. Ou nem discordo, porque o meu ponto de vista foge completamente do que vocês estão discutindo. Você argumenta que o Estado não tem o direito de mediar as relações que indivíduos adultos desejem livremente estabelecer entre si, mesmo o CFP sendo uma autarquia que é uma entidade de classe praticamente independente, que regulamenta a postura e os procedimentos dos que querem livremente se associar a ela. Nenhum psicólogo é obrigado a se submeter ao CFP, ele só se submete se livremente desejar se associar ao CFP e ser reconhecido por este como psicólogo. Da mesma forma que nenhuma federação de futebol está obrigada a se submeter à FIFA. Só se submetem se livremente desejam fazer parte da FIFA e disputar a Copa do Mundo da FIFA!
Ironicamente é a própria "cura gay", sendo imposta ao CFP na forma de projeto de lei, que representa mais o tipo de intervenção que você e o JJ criticam! Com o agravante de que o movimento objetivando impor legislações reacionárias nem está partindo da própria classe de psicólogos ( embora alguns estejam sendo usados e patrocinados para tal fim ), mas sim de grupos religiosos, conservadores, que têm interesse e conhecimento zero em questões de terapêutica.
Mas eu discordo também de quem argumenta que Psicologia e Psicoanálise são campos da Ciência. Desde quando Freud e Jung têm alguma coisa de científico?! Nos consultórios de psicólogos são usadas desde astrologia até regressão a vidas passadas, e muitos outros métodos duvidosos que vão contra o bom senso tanto quanto a terapia de reorientação sexual.
Então por que as entidades de classe, não só no Brasil mas na maioria dos países minimamente civilizados, implicam só com a "cura gay"?
É muito fácil se deixar engabelar pelo discurso simplista de que se uma pessoa não quer ser homossexual, então ela tem o direito de tentar não ser homossexual. E portanto um psicólogo teria também o direito de tentar reorientar sexualmente esta pessoa, pois tal não estaria sendo imposto pela sociedade ou Estado, mas seria um desejo que parte do próprio indivíduo.
Mas a lei não proíbe que você tente mudar sua orientação sexual. Ela também não proíbe que a Federação Catarinense de Futebol use seus recursos para lhe auxiliar nesta sua inconsequência. Apenas a Federação Catarinense não poderá fazer isso se a CBF baixar norma em contrário para todas as federações e a Catarinense tiver interesse em permanecer filiada a esta entidade privada que é a CBF. É por isso que em Santa Catarina jogam futebol com as mesmas regras do resto do mundo: porque os clubes de lá querem disputar o campeonato brasileiro.
Eu e meus amigos quando jogamos bola adaptamos um pouco as regras às nossas limitações materiais e contingências, mas porque não temos interesse em participar de nenhum torneio da federação. Infelizmente e para o prejuízo único da qualidade futebolística nos campeonatos nacionais, assim privados de contarem com a qualidade de um meia-direita da minha categoria.
Então voltamos à questão: por que muitas entidades de classe de Psicologia proíbem seus membros de ministrarem a tal "cura gay"?
Se você analisa o contexto completo sob o qual essa decisão foi sendo tomada em todo o mundo, vai enxergar como uma medida absolutamente sensata.
Na cultura cristã, diferentemente do que ocorria na Europa pré-cristã da cultura clássica, a homossexualidade passou a ser vista como aberração e pecado. E apenas por influência destes valores culturais arraigados, mas de certa forma arbitrariamente estabelecidos, a partir do século 19 a homossexualidade começa a ser caracterizada como uma doença mental. Sem base objetiva, mas os médicos vitorianos também eram homens do seu tempo, influenciados pelos valores de sua própria época. Da mesma forma até a sexualidade feminina, se um pouco mais aflorada, era também interpretada como um distúrbio. Estes padrões seriam patológicos por serem supostamente "anti-naturais". Mas anti-naturais por quê?
Na verdade, ao contrário do que se dizia e se acreditava, comportamentos homossexuais são observados em centenas de espécies, e estas espécies se distribuem por todos as ordens taxonômicas. O que parece indicar que é antigo e está sendo sistematicamente selecionado. Ou seja, uma vez que o comportamento homossexual não leva à reprodução, ou há alguma vantagem evolutiva nessa característica, ( se este for inato ), ou está associado a genes que contribuem para outras características vantajosas. Não significa que todo comportamento homossexual tenha a mesma origem e razão em todas as espécies, que necessariamente exista alguma relação entre as albatrozes de laysan que formam casais e o homossexualismo na nossa espécie, ou em qualquer outra. Mas deve significar que é natural, que ocorre de forma inata em muitas espécies, e que é vantajoso ou inócuo do ponto de vista evolutivo, porque a incidência desta característica se mantém estável ao longo das gerações.
Durante muito tempo, os biólogos fizeram de conta que não estavam vendo. Agora, não dá mais para esconder: o comportamento homossexual é bastante comum na natureza, e não é restrito a mamíferos; aves e insetos também o apresentam.
Mais além, não se tratam de relações fortuitas – alguns animais realmente formam casais homossexuais que passam juntos a vida toda, chegando a criar filhotes às vezes doados por casais heterossexuais, às vezes resultado de uma “escapada” de uma das fêmeas.
https://hypescience.com/10-animais-que-praticam-a-homossexualidade/No séc. 20, pesquisas como o famoso relatório Kinsey, apesar da metodologia duvidosa, começam a apontar que a homossexualidade era muito mais comum do que se imaginava. Estudos como estes não podem ser usados para inferir o percentual de pessoas gays na população, como muitas vezes é feito pelo ativismo gay, mas creio que hoje em dia ninguém mais tem dúvida que comportamentos homossexuais são bastante frequentes no ser humano. Basta observar um pouco o mundo à sua volta.
Logo, apesar da cultura conservadora, foi se tornando cada vez mais óbvio que a repressão gerava desnecessariamente um problema de saúde pública. Saúde psíquica, porque a repressão sim é que era a causa de neuroses, desajustes e sofrimento para uma parcela não desprezível da população. E para piorar um indivíduo com orientação predominantemente homossexual ainda era considerado portador de um distúrbio mental, da mesma forma que um esquizofrênico. Frequentemente uma pessoa assim, além de tudo que sofria na família e no meio social, ainda era encaminhada a profissionais que a submetiam a "tratamentos" que deixavam o pobre do homem ou da mulher ainda mais "zuretas", coitados. Muitas vezes as pessoas eram expostas a estas terapias nefastas ainda na adolescência, ou na infância, quando ainda não teriam desenvolvido uma personalidade estruturada, com consequências ainda mais devastadoras.
Diante desse quadro, nada mais razoável do que desencorajar este tipo de procedimento. Nenhuma entidade de classe séria poderia continuar a endossar um procedimento supostamente terapêutico que era na verdade um atentado à saúde mental do paciente. Em muitos casos pessoas submetidas à terapias de reorientação sexual acabavam chegando ao suicídio.
O CRM também já proibiu vários tipos de terapias, seguindo tendências mundiais. O FDA, a ANVISA, e órgãos com atribuições semelhantes de outros países proíbem tratamentos e medicamentos ( como no caso da "pílula do câncer" ) por estes mesmos motivos: não terem eficácia comprovada ou serem comprovadamente representarem riscos à saúde. E ninguém parece achar que há algo de errado nisso. Muito pelo contrário, as pessoas parecem se sentir mais seguras imaginando que existem especialistas que não permitem que qualquer porcaria perigosa chegue ao mercado.
A única diferença entre estes casos e a "cura gay" é que sobre essa há uma disputa ideológica usando argumentos camuflados. Bem disfarçados para ocultar seus reais interesses e objetivos.