Desculpe a demora, Pedro. Tive uns contratempos e queria respondê-lo com calma.
Em defesa do liberalismo e não da cura gay, para deixar claro: qual a diferença entre mascates em qualquer esquina vendendo tônicos e elixires que curam qualquer tipo de doença e padres, pastores, pais de santo, benzedeiras e não sei quê mais vendendo curas mágicas e mesmo boa parte dos psicólogos, vendendo todo tipo de pseudociências, muitas delas, inclusive, financiadas pelo SUS (um dos muitos exemplos de como o Estado funciona na prática, em contraste com a utopia, no século XXl)?
Para mim não há diferença importante entre as duas situações da sua comparação.
E por não enxergar diferença ( e obviamente também por não me considerar um liberal ) é que, se dependesse de mim, pseudos-pastores seriam responsabilizados criminalmente por prática de estelionato.
Como se o Estado fosse um mascate nos empurrando goela a baixo tônicos ou elixires que curam qualquer doença? O problema é que os efeitos colaterais dessas soluções mágicas são imprevisíveis. Veja, por exemplo, resultado da criminalização das drogas. A intenção era a melhor possível - extirpar certos vícios da sociedade. É provável que os legisladores fossem mais prudentes se pudessem ser responsabilizados por seus atos. Convém, na tentação de propor experimentos sociais, fazer antes um exercício mental: se ao final de cinco anos para cada beneficiado por sua proposta você recebesse um prêmio estipulado por você mesmo, mas para cada vítima tivesse que pagar uma multa dez vezes esse valor ou pena máxima de prisão em caso de inadimplência, quanto você arriscaria? Pena que não se ensina isso na
catequese escola.
Homeopatia, ayurveda, quiropraxia, ioga, shantala, arteterapia, biodança, dança circular, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, reflexoterapia, reiki, apiterapia, aromaterapia, bioenergénica, constelação familiar, cromoterapia, geoterapia, ozonioterapia e florais são algumas das práticas ofertadas, com o seu dinheiro, pelo SUS. E no que depender de alguém pode ser que no futuro a cura gay seja incluída na lista. Nos tempos da lei da selva não éramos obrigados a financiar os mascates.
Não posso falar muito de liberalismo porque não tenho grandes conhecimentos. Esse termo, o liberalismo, parece um grande guarda chuva que abriga um número de propostas de sociedade conflitantes: desde os rotulados como neo-liberais que estiveram no governo com o FHC até "extremistas" que advogam o completo fim do Estado e a instauração da lei única da selva do mercado.
Dessa forma fica difícil criticar ou endossar ideologias assinaladas como liberais e ser absolutamente claro sobre o quê se está falando.
O liberalismo se resume a defesa da liberdade individual, nos campos econômico, político, religioso e intelectual, contra a coercibilidade estatal arbitrária. Mais preciso seria dizer que ele está sob o mesmo guarda-chuva que abriga essas outras propostas.
Por conseguinte, descartando a ambiguidade dos rótulos, e com isso também os preconceitos já associados a estes, é preferível colocar o meu ponto de vista como o de alguém que não crê que a exagerada regulação e interferência do Estado nas relações entre os cidadãos, e entre cidadãos e empresas, e de empresas com outras empresas, seja a melhor fórmula para o desenvolvimento econômico e a promoção do bem estar social. Mas também não acredito que as dinâmicas do mercado, nas quais as demandas do consumidor e a competição seriam os principais fatores de regulação, possam por si mesmas conduzir a um tipo de sociedade qualitativamente superior.
Não é o que a realidade parece nos dizer. Onde menos o Estado interfere, desvirtuando as dinâmicas do mercado, criando problemas para vender soluções que beneficiam apenas a uns poucos, em geral, aos próprios agentes estatais, seus círculos mais próximos e financiadores, há maior prosperidade. Não é papel do mercado, contudo, conduzir a um tipo de sociedade qualitativamente superior, tudo que ele pode, quando muito, é gerar os meios para tanto. Tão pouco é papel do Estado e o melhor que ele pode fazer é não atrapalhar. Isso cabe a sociedade, não tem fórmula mágica.
Idealmente o Estado seria como um grande condomínio. Da mesma forma que para um simples condomínio se faz necessária a figura de administrador e autoridade ( representada pelo síndico ), um conjunto de "leis", que seria o estatuto do condomínio, e também "impostos" ( taxa condominial ) para os recursos exigidos para cobrir despesas comuns a todos os condôminos, a sociedade, muito maior e mais complexa, não tem como prescindir de administradores, autoridades, leis e impostos. Minha convicção é de que o "libertarianismo" é uma utopia tanto quanto o totalitarismo marxista. Uma utopia que parte de idealizações irrealistas e simplificações da realidade.
Tanto é uma utopia, uma proposta impraticável, que ninguém nunca viu um grupo de libertários tentar constituir um mero condomínio sem síndico, sem estatuto e sem taxa condominial. Nem que fosse como um teste do modelo econômico e de sociedade que defendem.
Se não é possível para uma comunidade de pessoas vivendo em um prédio de 20 apartamentos, como pôr em prática em um país com mais de 5 milhões de habitantes? O Estado ainda é um mal necessário porque a humanidade não é feita só de gente como São Francisco de Assis, Madre Tereza e Mahatma Ghandi. Precisamos de normas e leis mediadoras das relações entre indivíduos, empresas, organizações e o próprio Estado; normas e leis que de nada valeriam sem uma estrutura de autoridade que garanta o cumprimento do acordo social.
Ainda bem que você admitiu desconhecer o assunto, porque aqui está fazendo uma confusão entre anarcocapitalismo e liberalismo. O que este propõe é algo muito próximo do que você descreveu, o minarquismo, ou seja, o mínimo de interferência necessário para a maior dinâmica possível, uma espécie de sindicância, por assim dizer, onde o Estado deve servir ao indivíduo e não o contrário, justamente porque tão pouco o Estado é feito de santos, além do quê, diferente dos síndicos, os agentes estatais, não assumem riscos. Eles tem o direito de cometer grandes erros, por exemplo, quebrar a economia do país, sem ter que responder por isso. Não convém, portanto, dar tanto poder a eles. Não chega sequer a ser o extremo oposto do totalitarismo, o marxista, inclusive. Está mais para uma vacina contra este.
Os exemplos que você traz são ilustrativos dessa realidade: devido a algumas circunstâncias especiais, o Estado se exime de mediar as relações materiais entre as instituições religiosas e os consumidores destes serviços, também chamados de fiéis. Na prática o resultado que se vê não é o "mercado" selecionando as melhores instituições, bem intencionadas e idôneas. Mesmo com a competição nesse segmento de atividade empresarial sendo extremamente acirrada. O que se vê são abusos sobre estes consumidores que, se praticados fossem fora do contexto de culto religioso, estariam tipificados na lei como charlatanismo e estelionato.
Como você mesmo bem observou!
Você não poderia estar mais enganado. Tem se observado nas últimas décadas uma intensa mobilização no mercado espiritual, com fiéis migrando de uma seita para outra, no mundo todo. A concorrência é cada vez mais acirrada, com a seita católica, por exemplo, perdendo espaço para as seitas islâmicas e evangélicas, tendo de apelar para novos produtos, como padres-cantores-galãs, por aqui, transformando igrejas em espaços culturais, com música, biblioteca e até exposição artística, na gringolândia, sem falar no perfil do atual Papa (apesar de parecer que a estratégia não está funcionando). E embora tudo isso me pareça uma grande estupidez, tenho que admitir que os consumidores, em geral, parecem bem satisfeitos. Há, portanto, uma seleção, embora ela possa não atender aos seus critérios. Nem quero imaginar o efeito de uma intervenção qualquer nessa joça.
É um triste fato, mas ainda é fato, que a qualidade do que o mercado oferece, e também o padrão ético dessas relações de mercado, não pode ser estabelecido só pela livre concorrência combinada com o crivo seletivo dos consumidores. Porque o poder econômico tem formas e formas de influenciar pessoas a fazerem as piores escolhas, de limitar esse poder de escolha e até de impor que pessoas não tenham escolha. Examine como exemplo a qualidade de produto que o consumidor do mercado de políticos "escolhe" consumir.
Pior do que o poder econômico é o poder estatal, pois se aquele nos convence, esse nos coage – não nos deixa escolhas. E pior do que isso, o que acontece com frequência, é quando ambos unem forças. Só temos a perder com um Estado intervencionista.
Por isso que se não houvesse órgãos como ANVISA e FDA, Coca-cola e água tônica estariam sendo receitadas por médicos e vendidas em farmácias até hoje. Assim como alguns laboratórios já estariam fazendo bom dinheiro comercializando a "pílula do câncer".
Graças as agências reguladoras, o pequeno empreendedor, responsável pela geração de oitenta por centos dos empregos em média, isso no Brasil, ou trabalha na informalidade ou cede às chantagens dos agentes corrompidos pelo grande empresariado que, não por acaso, frequentemente burla o mercado, pressionando governos para aumentarem barreiras ou criarem regras que afastem a concorrência, quando não, corrompendo-os. Sem elas talvez a JBS não passasse de uma pequena empresa familiar, mas correríamos o risco de consumir carne de qualidade duvidosa. Opa!
E por falar em “pílula do câncer”, só para reforçar, homeopatia, ayurveda, quiropraxia, ioga, shantala, arteterapia...