PARTE 3
DISCUSSÕES, NO BRASIL, SOBRE A TEORIA QUÂNTICA
David Bohm discutiu muito com Mário Schenberg mas não há trabalhos publicados pelos dois. Uma evidência das discussões, temos na afirmação de Bohm que “passou a estudar a História da Filosofia, considerando o desenvolvimento do mecanicismo, principalmente, depois de discussões com Mário Schenberg, sobre uma abordagem dialética da causalidade". Mas as indicações que dispomos mostram uma distância entre os dois com referência à apreciação epistemológica da Teoria Quântica, ou pelo menos quanto à proposta formulada por Bohm.
Mario Bunge, físico e filósofo argentino, foi contemporâneo das discussões entre Bohm e Schenberg, pois veio para o Brasil para trabalhar com Bohm, e testemunhou essas diferenças, conforme seu comentário:
"Meu segundo encontro com Schenberg foi em 1953 no Instituto de Física, então localizado na rua Maria Antonia. Ele tinha retornado da Europa há pouco e eu usava uma bolsa de estudos para passar o semestre trabalhando com David Bohm. Desta vez nosso encontro não foi tão feliz quanto o primeiro porque eu tinha me convertido à teoria das Variáveis Ocultas de Bohm, da qual Schenberg discordava. Quando eu abordei-o com algumas idéias sobre partículas, ele cortou-me subitamente: 'Eu não estou interessado em partículas'. Naquela época eu fiquei chocado com tal aparente conservadorismo. Poucos anos depois eu ”percebi o quanto ele estava certo".
A análise dos próprios trabalhos de Schenberg sobre fundamentos da Teoria Quântica publicados no período indica que ele dialogava com o programa proposto por Bohm, mas sem uma identificação. Schenberg estava mais interessado em explorar diferenças — formais e empíricas — com relação à interpretação usual, decorrentes de generalizações no formalismo da Teoria Quântica, do que em desenvolver a proposta original de Bohm, no sentido de reproduzir os resultados previstos pela interpretação usual. Neste sentido, elaborou uma generalização Não-Linear da Teoria Quântica, apresentando soluções para o formalismo generalizado. Tendo aplicado os métodos de segunda quantização à estatística clássica e à teoria clássica de campos e chegando à conclusão que este método não é essencialmente quântico, estende a sua aplicação à interpretação hidrodinâmica proposta por Madelung em 1926. Mostra então que as trajetórias das partículas, do modelo de Bohm, podem ser deduzidas das linhas de fluxo. Schenberg explora diversas possibilidades, buscando identificar as propriedades matemáticas e físicas subjacentes ao formalismo da Teoria Quântica, mas sem a preocupação com a recuperação de uma descrição causal e objetiva, lema epistemológico da produção de Bohm.
Podemos, contudo falar de uma tardia aproximação entre Bohm e Schenberg sobre os fundamentos da Teoria Quântica. Numa série de artigos publicados a partir de 1957, Schenberg buscou generalizações das estruturas algébricas subjacentes ao formalismo da Teoria Quântica. Estes trabalhos têm correlação com as tentativas, feitas por Bohm e Basil Hiley, da década de 70 em diante, de matematizar as intuições associadas à Ordem Implicada. Perguntado, no início dos anos 80, sobre a teoria dos Spinors (entes matemáticos fundamentais na Mecânica Quântica Relativística) e a sua visão algébrica da realidade física, Bohm respondeu:
"Isso também surgiu do meu contato com Mário Schenberg, que deu uma enorme contribuição a esse respeito. Pode-se ter uma visão da Mecânica Quântica Fermiônica e Bosônica através da Álgebra, e Schenberg realizou essa ligação (outras pessoas também fizeram o mesmo, porém mais tarde). Para expressar a Ordem Implicada, trabalhamos numa continuação, numa extensão de idéias semelhantes".
Observamos, quanto ao alcance destes trabalhos, que Schenberg dava uma idéia clara da introdução da Supersimetria ao nível das álgebras geométricas, conforme apontado por Normando Fernandes. Mas o desenvolvimento deste programa científico sofreu injunções derivadas do golpe militar de abril de 1964. Provavelmente, se os acontecimentos políticos da época fossem outros, e se Schenberg não tivesse sofrido perseguições políticas e ameaças de prisão, o capítulo da Supersimetria teria os físicos brasileiros em destaque.
O reconhecimento mais expressivo da tardia aproximação está na introdução de um dos primeiros artigos de Bohm sobre o tema. Registrando as diversas interpretações existentes para o significado dos Spinors, Bohm identifica a singularidade do caminho trilhado por Schenberg, que estabeleceu uma relação destes objetos com o espaço de fase, para afirmar significativamente:
"Neste artigo nós começaremos combinando a Álgebra de Clifford com a interpretação de Schenberg, do espaço de fase, mostrando a inter-relação dos dois e desenvolvendo, de forma sistemática, o conjunto da teoria".
F.A.M. Frescura e B. Hiley, que trabalharam com Bohm neste programa, também identificaram a contribuição do físico brasileiro afirmando:
"Os aspectos geométricos destas álgebras já tinham sido discutidos por Schenberg, embora a motivação do seu trabalho fosse bastante distinta".
Durante a estada de Bohm no Brasil, aqui estiveram R.P. Feynman e L. Rosenfeld, ambos como professores visitantes no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas — CBPF — no Rio de Janeiro. Discussões entre Bohm e Feynman ficaram registradas quando o primeiro declarou, ao final de um dos artigos da época, que deseja agradecer ao Professor R.P. Feynman por várias discussões interessantes e estimulantes.
Indicações de discussões, no Brasil, entre Bohm e Rosenfeld são mais escassas. Rosenfeld trabalhava neste período exatamente sobre questões epistemológicas associadas à Teoria Quântica. Publicou nos Anais da Academia Brasileira de Ciência o artigo “Causalité statistique et orare en physique et en biologie”, considerado pelo próprio autor como importante para esclarecer seus pensamentos sobre os problemas biológicos. Publicou também, em português, artigo de divulgação intitulado “A filosofia da Física Atômica”, no qual faz defesa da interpretação usual e do pensamento de Niels Bohr. Rosenfeld esteve na USP realizando seminário que contou com a participação de Bohm. A ausência de referências mútuas, ou de colaboração, entre Bohm e Rosenfeld, apesar dos dois estarem trabalhando sobre o mesmo tema, no mesmo país e na mesma época, explica-se pela distância, já referida, entre suas respectivas posições sobre a interpretação da Teoria Quântica.
O diálogo com Feynman provavelmente foi facilitado pela posição cautelosa que ele adotou, à época, quanto aos desdobramentos imediatos da física. Em artigo publicado, nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, Feynman examinou uma lista dos problemas fundamentais em física teórica, citando as diversas tentativas de solução em curso referindo-se à "Teoria do Campo Não-Local, reinterpretação da Mecânica Quântica (grifos nossos), etc" para, de forma significativa, afirmar:
"Como uma reflexão atual mostra, não existe em absoluto bases, que não os preconceitos autoritários, sobre as quais seu valor potencial possa ser julgado (a menos que elas já estejam em discordância com experimentos conhecidos) até que uma delas chegue a obter êxitos".
As discussões entre Bohm e Feynman tiveram o testemunho de Leite Lopes, que se refere às discussões realizadas durante a Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em Belo Horizonte, no ano de 1952, registrando o contraste com físicos, que à época hostilizaram Bohm, reduzindo o seu modelo a uma tentativa ideológica de reinterpretação da Mecânica Quântica. Cartas de Feynman para Leite Lopes (fevereiro de 1954 e maio de 1955) revelam também que o primeiro cogitava em escrever alguns artigos sobre a Interpretação Quântica de Bohm, para publicá-los no Brasil, planos estes que não se concretizaram.
Bohm participou do Simpósio Internacional sobre Novas Técnicas de Pesquisa em Física, realizado em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre 15 e 29 de julho de 1952. Após a apresentação do modelo das Variáveis Ocultas, vários físicos debateram sua proposta. H.L. Anderson, D.W. Kerst, M. Moshinsky e Leite Lopes perguntaram sobre testes que pudessem diferenciar a interpretação de Bohm dos resultados obtidos com a interpretação usual. Ele argumentou que sua própria proposta, bem como os meios técnicos disponíveis para a experimentação, precisariam ser desenvolvidos para evidenciar tais diferenças. Anderson quis saber sobre a indiscernibilidade das partículas (característica das estatísticas quânticas) e Bohm respondeu que esta propriedade não era submetida diretamente a testes experimentais e que os resultados que decorressem da indiscernibilidade poderiam ser obtidos pelo modelo das Variáveis Ocultas; não satisfazendo, contudo, a Anderson. A. Medina perguntou se Bohm poderia introduzir o Spin em sua teoria — aliás a mesma questão foi levantada, no mesmo ano, por Halpern e Takabayasi. Bohm responde que sua teoria não predizia o Spin (!!), mas poderia descrevê-lo através de uma analogia com a equação de Pauli.
A discussão mais acirrada foi com I.I. Rabi. Este perguntou o que Bohm queria exatamente dizer por uma partícula. E sustentou que não havia na proposta das Variáveis Ocultas outras idéias que não as da Teoria Quântica, querendo dizer com isto que aquela proposta não abria uma perspectiva própria para o desenvolvimento da física. Bohm sustentou que não havia, à época, razões empíricas para decidir sobre a superioridade de uma das interpretações da Teoria Quântica, e que as críticas feitas por Rabi eram análogas às que os anti-atomistas do século XIX fizeram aos defensores da hipótese atomista.
Bohm publicou com Walter Schützer, físico brasileiro, da USP, uma análise de problemas estatísticos em física e sua relação com a teoria das probabilidades. O objetivo do artigo é mostrar que em certos problemas estatísticos da física é vantajoso, e mesmo necessário, ir além do quadro conceituai presente na teoria das probabilidades.
Bohm e Schützer consideraram como adequada aos problemas estatísticos da física a chamada Interpretação Objetiva, mas identificaram insuficiências na versão desta interpretação denominada de freqüência relativa. Em especial, criticaram a identificação entre probabilidade e freqüência relativa. Exemplificando com o lançamento de um dado, eles sustentaram que a probabilidade é uma propriedade objetiva do dado mais o processo pelo qual ele é lançado, e que se manifesta aproximadamente como uma freqüência relativa em uma longa série de lançamentos. Trata-se de uma antecipação da idéia de que a probabilidade de um evento singular é uma propriedade tanto do objeto quanto das condições experimentais a que o objeto será submetido, desenvolvida por K. Popper e denominada por este de interpretação da propensão.
Para Popper, as probabilidades caracterizam a disposição, ou a propensão, do arranjo experimental provocar certas freqüências características, quando o experimento é repetido muitas vezes. Assinalando a diferença com a interpretação das freqüências (puramente estatística), ele afirmou que a interpretação da propensão considera a probabilidade como uma propriedade mais característica do dispositivo experimental do que da seqüência de eventos.
É digno de nota que Bohm tenha valorizado esta interpretação quando ela foi apresentada à Comunidade Cientifica, embora tenha sido cético quanto à sua eficácia para resolver os problema da Mecânica Quântica, mas isto provavelmente porque ela estava associada, na defesa de Popper, a uma certa interpretação da Teoria Quântica — teoria estatística, mas de base indeterminística — distante das posições sustentadas por Bohm (7).
(7) Bohm participou do Simpósio realizado em 1957, em Bristol, onde o trabalho de Popper foi apresentado. Ele declarou, logo após a exposição: "... penso que em alguns casos existem vantagens em falar sobre propensões. (...) Neste sentido parece ser uma contribuição distinguir entre propensão e freqüência relativa". Mas considerou que a dualidade onda — partícula é tão difícil de ser tratada na interpretação da propensão quanto em qualquer outra. A familiaridade de Bohm com as questões da interpretação da probabilidade ficou evidente quando a sua intervenção sobre questões bastante técnicas — correlação da propensão com a "escola axiomática" de Kolmogoroff — foi acolhida favoravelmente na intervenção final de Popper. Para o trabalho de Popper e o debate que se seguiu, ver K.R. POPPER. The propensity interpretation of the calculus of probability, and the quantum theory In: S. Korner. Observation and Interpretation, op.cit., p.65-70 e 78-89.
Na conclusão do trabalho Bohm-Schützer, encontramos o seguinte agradecimento, indicativo de discussões ocorridas quando de sua elaboração:
"Nós desejamos agradecer ao Professor Mario Schenberg, ao Dr. Mario Bunge e a J.A. Meyer por muitas discussões estimulantes e instrutivas, as quais desempenharam um papel muito importante na clarificação de nossas idéias".
Ao longo do nosso estudo ficou ressaltado que a sociedade brasileira foi capaz de acolher o cientista e cidadão perseguido politicamente, e assegurar a continuidade de seu trabalho científico, apesar de condições nacionais — políticas, científicas e educacionais — adversas. A ciência brasileira muito se beneficiou do ensino, da pesquisa e da permanente preocupação com os fundamentos da física, características da obra de David Bohm.