International Herald Tribune - 15/11/2006
Aids na África: costumes locais são uma preocupação crescenteElisabeth Rosenthal
em Nkolndongo, República dos CamarõesQuando Innocent Zamba Manga nasceu no verão passado, os médicos aconselharam a sua mãe, Marise, que é HIV positiva, a não amamentá-lo, já que o aleitamento pode implicar na transmissão do vírus da Aids da mãe para o filho. A mãe e o bebê deixaram o hospital com mamadeiras e latas de leite em pó fornecidas por uma instituição de caridade católica. Mas naquela exata semana, os pais orgulhosos levaram o bebê para a vila do pai, no sul de Camarões, para que Innocent participasse de uma cerimônia tradicional de nascimento e batismo.
Os costumes exigiam que a nova mãe amamentasse o pequeno Innocent, e ela continuou a amamentá-lo por duas semanas. "Por que vocês colocaram a saúde da criança em risco desse jeito?", repreendeu a médica Suzie Tetang Moyo com um suspiro de frustração, ao ver os pais na semana passada na sua clínica, que fica em uma rua sem calçamento de Nkolndongo. À medida que os pesquisadores dedicam mais tempo ao estudo do enorme problema que é a Aids pediátrica na África, eles descobrem que a trajetória da transmissão no continente pode ser diferente daquela nos países industrializados, e que as estratégias para prevenir a disseminação da doença precisam ser adaptadas às realidades locais.
Nos países desenvolvidos, o único fator de risco real para as crianças é que elas podem contrair HIV das mães durante o nascimento. Mas aqui, de acordo com os pesquisadores, um conjunto de cerimônias e práticas tradicionais está criando rotas de transmissão exclusivamente africanas - perigos que até então vinham sendo ignorados. Há cerimônias de batizado, como a de Innocent, nas quais a amamentação é obrigatória. Mas existem também vários outros momentos nos quais o perigo potencial é ainda maior, como, por exemplo, quando fluidos corporais de duas pessoas diferentes são misturados. Em cerimônias de escarificação para identificação étnica e cortes para cura ritual, as lâminas são usadas em seqüência por várias vezes seguidas. Há ainda a prática do aleitamento comunal de um único bebê por várias mulheres, algo comum em diversas aldeias africanas estreitamente interligadas.
Em um país como Camarões, onde mais de 5% da população e 11% das mulheres grávidas estão infectados com o HIV - a esmagadora maioria sem ter consciência disso -, tais práticas podem levar a um alastramento explosivo da doença. "Se o nosso trabalho dissesse respeito apenas à biologia, então estaríamos cumprindo a metade da nossa missão", explica Marcel Manny Lobe, diretor do novo Centro Internacional de Referência e Pesquisa do HIV e da Aids, em Iaundé, a capital do país. "Mas precisamos também realizar pesquisas sociológicas e antropológicas, antes das intervenções de natureza biológica".
Os pesquisadores daqui e de outros países da África estão apenas começando a estudar o papel dessas práticas tradicionais comuns na África rural, a fim de determinar se elas contribuem muito ou pouco para a transmissão do HIV.
Mas o risco é sério, e estudos de pequena magnitude realizados em Calabar, na Nigéria, já revelaram que os cortes não higiênicos no corpo e as injeções de soluções herbáticas, práticas utilizadas pelos curandeiros tradicionais, contribuem para a disseminação da doença. "Não sabemos o suficiente sobre esse tópico importante, mas não há dúvida de que as práticas tradicionais estão disseminando o HIV - essa é uma preocupação crescente", afirma Ed Mills, um médico epidemiologista da Universidade McMaster, em Hamilton, Ontário, que realizou pesquisas extensivas na África do Sul.
A Unaids está ignorando essa questão", diz ele, referindo-se ao Programa Conjunto das Nações Unidas para o HIV e a Aids. "Creio que isso se deve ao fato de as pessoas acharem que falar sobre o assunto denota insensibilidade cultural. Mas mesmo que a escala do problema seja pequena, é um problema passível de ser prevenido e, portanto, deveríamos realmente dar atenção a ele". As práticas tradicionais podem ainda explicar um mistério que há muito deixa perplexos tanto os médicos locais quanto os estrangeiros: eles se deparam constantemente com crianças que sofrem de Aids, sem que haja uma explicação óbvia para a infecção, já que as mães eram HIV negativas. As crianças jamais passaram por transfusões de sangue, um processo no qual a transmissão pode ocorrer quando se usa sangue não testado. Em Batie, uma vila a três horas de Iaundé, a maior parte das pessoas visita tanto os curandeiros quanto os médicos, e os tratamentos tradicionais envolvem com freqüência o uso de lâminas para cortar a pele.
Em uma tarde recente, Berlin Simeu, um aldeão, visitou a cabana mal iluminada de Sop Kamtchewo, um curandeiro, em uma cerimônia cujo objetivo era neutralizar tanto as doenças quanto as bruxarias. Com uma lâmina afiada que estava embrulhada em um pedaço de papel, o curandeiro fez três incisões curtas no corpo do paciente - um no pulso, um nas costas e um no ombro. Uma fruta foi colocada sobre os ferimentos a fim de cancelar qualquer energia negativa. Não se sabe como - ou se - a lâmina seria limpa antes do próximo uso. Yves Moumbe, um médico de Batie, conta que quase todos os seus pacientes portadores do HIV foram a curandeiros tradicionais antes de procurar a sua clínica. "Não sei se eles estão usando qualquer técnica esterilizadora", disse Moumbe. "Eles não têm muito conhecimento a respeito do HIV e da forma como o vírus se dissemina. Portanto, isso pode ser um problema sério".
Estima-se que 70% dos africanos recorram aos curandeiros como recurso principal para tratamento de saúde, o que é uma função da tradição e da disponibilidade. Na África existe um médico para cada 40 mil pessoas, mas um curandeiro para cada 500. Segundo Mills, as práticas dos curandeiros variam muito de um local para outro, muitas vezes envolvendo cortes, a administração de injeções de remédios herbáticos e a prática de sangramentos. Uma pesquisa realizada em um pequeno universo revelou que 50% dos curandeiros são portadores do HIV, segundo médicos do Centro Internacional de Referência e Pesquisa do HIV e da Aids, em Iaundé.
"Nós costumávamos dizer que a Aids estava vinculada ao ato sexual, mas agora precisamos lembrar às pessoas que a doença pode estar em qualquer lugar do corpo, e que existem outros riscos", explica Bertrice Mabule, que criou a Fundação para Saúde e Educação das Crianças, a fim de promover a conscientização quanto à Aids em Batie.
Um estudo publicado em 2004 pelos periódico "Tropical Doctor", de autoria do médico Etete Peters, da Universidade de Calabar, no sudeste da Nigéria, concluiu que há "um sério risco inerente nas práticas adotadas pelos curandeiros tradicionais nigerianos", devido "ao uso contínuo de instrumentos não esterilizados e à contaminação do sangue e de outros fluidos corporais dos pacientes durantes essas práticas". Embora Peters tenha continuado a estudar a questão dos curandeiros, ele diz que existem poucas verbas para a realização de campanhas de conscientização dirigidas a esse grupo, de forma que "tais práticas terríveis persistem na Nigéria e na África em geral". Em grande parte da zona rural de Camarões, cicatrizes pequenas são o código de identificação dos integrantes dos diferentes grupos étnicos, e várias crianças passam simultaneamente por cerimônias de escarificação.
"Dá para ver essas cicatrizes por toda parte. Três linhas no queixo ou na testa. Os pigmeus fazem cortes entre as sobrancelhas. Isso se constitui em um motivo real de preocupação", afirma Serge Florent Moudt, educador especializado na questão do HIV, que trabalha no centro em Iaundé, assim como na Província Ocidental, onde reside.
Se apenas uma criança em uma aldeia for portadora do HIV, uma lâmina comum poderia disseminar o vírus por dezenas de outras que sofrem cortes depois dela. E a mesma lógica se aplica à circuncisão grupal.
"Existem aspectos tradicionalmente africanos dessa luta", afirma Jean Stéphane Biatcha, secretário-executivo da African Sinergy, um grupo de prevenção da Aids. "Estamos levando essa mensagem às áreas rurais nas quais as tradições são muito fortes, e onde é preciso que se trabalhe cuidadosa e lentamente".
Uma outra prática tradicional que as autoridades governamentais admitem que pode estar disseminando o HIV é a amamentação comunitária, que é uma norma em várias aldeias rurais. A poligamia é legal em Camarões, e um chefe de aldeia pode ter 30 ou 40 mulheres, já que os homens ricos costumam se casar com as viúvas de parentes que morreram.
E é comum que essas mulheres - ou até mesmo amigas - se ajudem amamentando os filhos das outras. Na verdade, esse é um serviço essencial caso uma mãe precise trabalhar ou fazer uma viagem à cidade.
Mas, novamente, em um país no qual os estudos revelaram que 11% das mulheres em idade de procriação estão infectadas com o vírus da Aids, essa prática representa um canal aberto para a infecção das crianças.
Biatcha diz que a população geralmente não tem consciência dos riscos, de forma que o primeiro passo é a informação.
Nos últimos anos, um número crescente de médicos passou trabalhar em conjunto com os curandeiros, tanto para encorajar a adoção de práticas seguras como para utilizá-los como educadores sobre a Aids.
"É necessário que se abra o diálogo com os curandeiros", afirma Mills, o epidemiologista. "Eles podem muito bem estar disseminando o HIV, mas, em vez disso, poderiam se tornar parte da solução para o problema".
Fonte:
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/herald/2006/11/15/ult2680u380.jhtm