BRASIL
Uma voz contra a corrente
Para o economista americano, o problema do Brasil não é cortar os gastos do governo. Mas fazer reformas para que o dinheiro público chegue aos mais pobres
GUILHERME EVELIN
Uma voz importante se levanta contra a tese de que o Brasil precisa cortar os gastos públicos e baixar impostos para crescer mais. É a do economista americano Jeffrey Sachs, nome freqüente nas listas das personalidades mais influentes do mundo. O prestígio de Sachs, acadêmico com carreira em duas das mais importantes universidades do mundo, Harvard e Colúmbia, ambas nos Estados Unidos, vai além das salas de aula e dos centros de pesquisa. Ele ganhou aura de herói por sua pregação de combate à pobreza e à epidemia de aids na África. Alcançou o status de líder de causas humanitárias na esteira do trabalho que exerceu como conselheiro especial de Kofi Annan, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), e como comandante do Projeto do Milênio, um conjunto de metas para a redução da pobreza no mundo até 2015. Nesta entrevista, Sachs ataca o receituário defendido pelos economistas liberais. "A questão é reformar, não cortar gastos per se", diz Sachs. "Muitos dos gastos sociais no Brasil não atingem as partes mais pobres da população e favorecem os setores de renda mais alta."
No passado, Sachs já se tornara famoso como conselheiro de terapias de choque heterodoxas para países em crise econômica, como Rússia ou Bolívia. Recentemente, ele voltou a soltar diatribes contra os economistas liberais. Em artigo para a revista Scientific American sobre o sucesso econômico da Suécia e de outros países, Sachs disse que ele é a prova de que "Von Hayek estava errado". Referia-se a Friedrich Von Hayek, economista austríaco, prêmio Nobel em 1974, inspirador das reformas feitas por Margaret Thatcher na Inglaterra. Segundo Sachs, "um Estado de bem-estar social generoso não é um 'caminho para a servidão' (título de uma obra clássica de Von Hayek), mas para a justiça, a igualdade econômica e a competitividade internacional".
ÉPOCA -
O senhor escreveu que o exemplo da Suécia* - com 5,6% de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) entre junho de 2005 e junho de 2006- prova que os neoliberais estão errados.E que um Estado de bem-estar social pode levar a uma economia competitiva internacionalmente. Essa tese pode ser aplicada também a um país como o Brasil?
Jeffrey Sachs - Em um país como o Brasil, os principais papéis econômicos do Estado incluem os seguintes: primeiro, assegurar o funcionamento da infra-estrutura (estradas, energia, portos, proteção ambiental). Segundo, assegurar educação de qualidade para todos. Educação é essencial para o desenvolvimento econômico de longo prazo. Terceiro, aumentar o financiamento para a pesquisa e o desenvolvimento, a ciência e a educação superior, de modo que o Brasil possa se transformar em uma economia baseada no conhecimento e na ciência. Quarto, assegurar o acesso universal aos serviços essenciais de saúde. Quinto, manter um ambiente favorável aos negócios, com estabilidade macroeconômica, redução da burocracia e leis claras e estáveis. Tudo isso deve ser feito de forma transparente e justa, com o mínimo de desperdício possível. O Brasil gasta muitos recursos públicos com as aposentadorias e pensões de uma parcela de trabalhadores, entre eles funcionários públicos, que ganham muito e com subsídios a pessoas que já estão bem de vida, enquanto os pobres continuam a ser ignorados.
ÉPOCA - Os gastos públicos têm crescido no Brasil em razão da distribuição de benefícios sociais. A carga tributária chega hoje a quase 40% do PIB. A pobreza caiu, mas o crescimento econômico tem sido medíocre. Muitos economistas culpam o tamanho do Estado por esse desempenho e pregam o corte nos gastos do governo e nos impostos como o caminho para maior crescimento. Eles estão errados?
Sachs - Sim, estão errados. O Brasil não deve cortar a arrecadação de impostos como um porcentual do PIB, mas deve cortar os subsídios aos ricos e poderosos. Os recursos públicos devem ser usados para fortalecer a saúde, a educação e a ciência e para beneficiar toda a população. O sistema tributário deve ser moderadamente progressivo, mas não a ponto de virar punitivo. O coração de um sistema tributário deve ser os impostos sobre mercadorias, serviços e folhas de pagamento, e não os impostos sobre capital. Um imposto corporativo baixo é importante para atrair investimentos de longo prazo. Uma redistribuição fiscal deve dar maior ênfase à despesa do que à arrecadação de impostos. Impostos devem promover a competitividade. Os gastos públicos devem promover o acesso universal à saúde e à tecnologia.
ÉPOCA - Os gastos com previdência social no Brasil chegam a 8% do PIB, embora a população ainda seja, na maioria, jovem. O dinheiro público no Brasil é escasso para, ao mesmo tempo, bancar o aumento das despesas sociais e fazer investimentos para melhorar a infra-estrutura. Como resolver essa equação?
Sachs - O governo deveria assegurar acesso universal à educação e à saúde e um piso básico e geral de aposentadoria, mas não deveria prover de benefícios generosos os privilegiados. A questão é reformar, não fazer cortes per se. Muitos dos gastos sociais no Brasil não atingem as partes mais pobres da população e favorecem os setores de renda mais alta.
ÉPOCA - A China e a Índia crescem rapidamente, mas nenhum dos dois países se destaca pelo desempenho na área social. O Brasil deve ou não invejá-los como exemplos?
Sachs - A China e a Índia estão enfrentanto crises sérias na saúde pública e grandes desequilíbrios regionais de renda e bem-estar que criam turbulências políticas. Os dois países estão tentando agora conseguir avanços em seus sistemas de educação e saúde. Eles estão também buscando avidamente investimento estrangeiro e colocando ênfase em tecnologia. O Brasil deveria fazer o mesmo.
ÉPOCA - O presidente Lula ganhou um segundo mandato por causa, em parte, do sucesso do programa Bolsa-Família, que garante uma renda mínima para famílias pobres. Qual é o valor de programas como esse e quais são seus limites na redução da pobreza?
Sachs - Acredito que o Bolsa-Família deveria ser combinado com iniciativas de desenvolvimento regional para levar o setor privado e empregos internacionalmente competitivos para regiões de baixa renda. Isso significa aumentar os investimentos públicos em infra-estrutura, pesquisa e desenvolvimento e em outras áreas, para promover a agricultura, o agronegócio, o turismo, as manufaturas, os serviços baseados em tecnologia da informação no Nordeste e em outras regiões economicamente deprimidas do Brasil.
ÉPOCA - Lula ganhou muitos votos também com críticas às privatizações. Apesar de algumas melhorias econômicas, as privatizações são muito impopulares na América Latina. Qual é a razão para isso?
Sachs - Acho que as privatizações devem ser justas, no sentido de que elas devem assegurar o acesso dos pobres ao atendimento de suas necessidades básicas: à água, ao saneamento, à energia, às estradas etc. Muitas privatizações olham apenas para o lado da melhoria da infra-estrutura, mas não para o acesso dos pobres. Privatizações combinadas com medidas especiais para assegurar o acesso universal (por exemplo, o acesso livre e gratuito a um consumo mínimo e inicial de água, energia etc.) podem ser muito mais justas e sustentáveis.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR75706-6009,00.html*País com carga tributária de 54% do PIB.