Auto-sugestão. Eu fui criado no espiritismo quando criança, freqüentei um centro espírita até cerca de 12 anos. Os espíritas dizem que todo mundo é médium, mas uns são mais e outros são menos. Não preciso nem dizer que níveis elevados de mediunidade significam também um status elevado dentro do grupo...
No meu centro espírita havia uma menina, só um pouco mais velha do que eu, que toda semana aparecia com uma história nova para contar sobre os espíritos que ela viu durante a semana, o que eles fizeram, o que eles falaram, naturalmente a garota era o centro das atenções, todo mundo ficava admirado com seu alto grau de mediunidade, todo mundo - eu inclusive - queria ser igual a ela. Se bem que eu tinha um pouquinho de medo dessas coisas também... Mas invejava a garota, invejava o quanto todo mundo dava atenção a ela.
Na verdade eu era muito medroso quando criança, e em parte o espiritismo é um grande responsável por isso. Eu tinha medo de dormir no escuro, porque tinha medo de algum espírito aparecer. Claro que se existissem realmente espíritos e um deles quisesse aparecer para mim, não seria uma lâmpada acesa que iria lhe impedir, mas de certa forma eu me sentia mais seguro na claridade. Uma certa noite eu tive dificuldades em conseguir dormir, tive uma insônia. Fiquei na cama, de olhos abertos, morrendo de sono, mas sem conseguir dormir.
Não tenho certeza se finalmente adormeci e sonhei ou se minha imaginação me pregou uma peça, mas tive a impressão de que apareceu um livro no teto, fixo, como se grudado na parede. O livro se abriu e as páginas começaram a passar, mas estava muito longe e as letras eram muito pequenas para eu identificar o que estava escrito. A única coisa que reconheci foi uma ilustração em uma página, era a inconfundível foto de Allan Kardec, igualzinha à que aparecia na contra-capa da edição de "O Livro dos Espíritos" que meus pais tinham em casa. Surpreendentemente, porém, aquilo não me causou estranheza nenhuma, enquanto durou aquela cena eu não me dei conta de que livros no teto não são coisas comuns. Eu demorei um pouco para me dar conta de que tinha alguma coisa estranha acontecendo. Quando me dei conta disso eu só virei para o lado e dormi.
A princípio eu não acreditava que aquilo que vi naquela noite tivesse algum significado. Só depois que acordei que, no dia seguinte, que me lembrei daquilo e vi que tinha uma história poderosa nas minhas mãos... No próximo Domingo cheguei todo orgulhoso ao Centro Espírita, era o meu dia de glória, era a minha vez de aparecer com uma história para contar, era a minha vez de ser admirado pelo grupo. Contei a história toda. Aumentei um pouquinho também... Cheguei a me convencer de que o que se passara foi um contato com o mundo dos espíritos, e não obra de sonho ou imaginação. Ao final do meu relato minha "professora" me disse que provavelmente aquilo teria sido um sinal, que um dia talvez eu psicografaria livros. Fiquei radiante, todo mundo me olhando... Acabara de subir na hierarquia social.
Os espíritas formam um grupo altamente "meritocrático". Todos acreditam que reencarnaram centenas ou milhares de vezes e que carregam consigo toda uma bagagem evolutiva. Infelizmente nós não nos lembramos das encarnações passadas, não sabemos o quão evoluídos nós somos. O que sabemos é que somos seres humanos imperfeitos. Há toda uma pressão social, uma hierarquia invisível na qual você não sabe em que ponto da pirâmide exatamente você está. Todos ao seu redor estão jogando um jogo de aparências, querem parecer o mais evoluídos possível. Não sabemos os podres dos outros, mas os nossos podres nós sabemos. Naturalmente, então ficamos em uma posição de desvantagem, todos parecem perfeitos, exceto nós mesmos... Eu sabia de todas as coisas ruins que eu tinha feito, de todos os pensamentos ruins que tinha tido, e isso só me fazia me sentir inferiorizado, inseguro, tímido...
Ter um dom, uma mediunidade, por outro lado, muda as coisas de figura. Se você é médium é porque você é especial. As pessoas já te olham de outro jeito, já te respeitam como se você fosse um intermediário entre Deus e eles - e para os espíritas é isso mesmo que você é. Lá fiquei eu então, esperando o meu dom se manifestar, esperando a mediunidade aparecer, esperando... esperando... Mas ela não vinha. Àquela altura eu acreditava que o vi naquela certa noite tinha sido obra de espíritos, mas me batia uma ponta de dúvida se não teria sido um sonho afinal.
Bom, passou bastante tempo e minha mediunidade não se manifestou, e enquanto isso eu começava a me interessar por outras coisas. Assistia O Mundo de Beakman, lia Superintessante (naquele tempo ela ainda tinha qualidade) e comecei a me interessar pelos livros e pelo pensamento de Carl Sagan. Aprimorei meu raciocínio crítico, descobri o que era o ceticismo, o que era ciência e o que era pseudociência - e começava a encontrar no espiritismo cada vez mais sintomas de pseudociência. Tinha chegado à conclusão de que a minha ilusão com um livro não foi nada mais do que uma ilusão provocada pelo sono e que o único motivo que tinha me levado a pensar outra coisa foi minha vontade de me sentir especial. Tinha também começado o processo irreversível que me levaria ao ateísmo.
Antes disso, porém, o efeito imediato desse banho de ciência e racionalismo foi eu me tornar mais questionador, fazia muitas perguntas incômodas e freqüentemente deixava os palestrantes do grupo de jovens sem respostas. A coisa que eu mais ouvia deles era que nós, humanos, não somos evoluídos o suficiente ainda para entender os desígnios de Deus. Claro que essas respostas não me satisfaziam e cada vez mais eu comecei a achar que o espiritismo não tinha as respostas que eu queria, que era apenas uma fé arbitrária, que mesmo que os espíritos existissem e se comunicassem com os médiuns, quem poderia garantir que eles não estavam mentindo? Quem poderia grantir que os médiuns não estivessem mentindo?
Em um certo momento eu acreditava em Deus, mas não mais no espiritismo. Falei para minha mãe que não queria mais voltar ao centro espírita. Ela não gostou da minha decisão, mas por duas semanas não precisei ir até o centro. Não me lembro bem o que foi que aconteceu, mas acho que fiz alguma cagada nesse meio tempo e minha mãe me disse que isso era porque eu tinha deixado de ir ao centro e que eu ia ter que voltar. Ela teve uma conversa com o palestrante do grupo de jovens antes e na semana seguinte, quando eu voltei parecia que ele tinha preparado algo especial para mim... Parecia que ele queria me provar que o espiritismo era verdadeiro e com isso me dar provas bem concretas. Bom talvez aquilo não tivesse sido programado para mim, eu não sou tão importante assim, mas naquele dia e ainda hoje me parece que foi por minha causa que ele propôs uma atividade bem especial: os quase 100 membros do grupo de jovens se dividiriam em grupos de 10 e nesses grupos cada um relataria todas as experiências espirituais, de mediunidade, que já tiveram. No final as histórias mais impressionantes de cada grupo seriam relatadas para todos.
Não me lembro se para participar da brincadeira eu contei a minha história do livro ou se me limitei a encher o saco de todo mundo. O fato é que todo mundo em meu grupo tinha uma história. Alguns falavam meio constrangidos, como se eles mesmos duvidassem do que contavam, mas não quisessem passar pelo vexam de não ter nada para contar. Outros conseguiam disfarçar melhor, falar com desnvoltura, com convicção. As histórias contadas, porém, deixaram muito a desejar.
Eram todas histórias altamente questionáveis. Eram relatos de momentos em que a pessoa se sentia observada, e estava convicta de que a sensação era provocada por algum espírito. Relatos de pessoas que ouviam vozes. Relatos da visão de vultos na janela, que quando a pessoa olhava esses vultos sumiam. A história mais interessante que ouvi em meu grupo foi de alguém que falou sobre uma porta que bateu e um copo que caiu (aparentemente sem motivo) e se quebrou. Mas todos, todos eles juravam que suas experiências tinham sido provocadas por espíritos. Quando eu fazia perguntas sobre se aquelas manifestações não poderiam ter sido causadas pelo vento ou se as vozes e os vultos avistados não poderiam pertencer a pessoas vivas meus interlocutores ficavam irritados. Houve apenas uma pessoa entre as dez que reconheceu que nunca lhe tinha acontecido nada de sobrenatural. Uma em dez, e a definição de sobrenatural ali incluía até portas batendo!
Na seleção dos melhores entre os melhores fenômenos sobrenaturais ao fim da primeira etapa a situação não melhorou muito. Só houve uma única história interessante com visão direta de espíritos, mensagens do além, materialização, objetos se mexendo... Enfim, uma verdadeira superprodução de Hollywood. Mas aquela pirotecnia não me convenceu. Eu já tinha tirado uma conclusão. As pessoas queriam acreditar que eram médiuns. Acima de tudo, elas queriam que os outros acreditassem nelas. Alguns até acabavam se convencendo, da mesma forma que eu, por algum tempo, tinha me convencido de que eu também tinha tido meu contato com o além. O tiro que me deram saiu pela culatra, pois eu saí dali naquele dia disposto a nunca mais voltar. O espiritismo para mim acabou ali.