Tô achando curioso acompanhar um bafafá que tá tendo lá em Portugal por conta de um juiz que se negou a aceitar um documento oficial redigido por um subordinado, por este estar redigido em acordo com o Acordo Ortográfico de 1990 (que lá já entrou em vigor oficialmente). Ou seja: o juiz se negou a aceitar um documento escrito na única variável do idioma considerada "legal" porque prefere que os documentos continuem sendo redigidos numa variável que hoje é considerada "ilegal" por lá.
Recebeu uma punição administrativa, não sei bem que consequências vai sofrer, e virou pauta de capa de tudo que é jornal do país.
Até aí, nada de curioso, apenas um ser humano pegando carona em um tema polêmico para ganhar seus 15 segundos de famosidade por lá, quem sabe virar uma subcelebridade intelectual ou um político.
Mas o que me chamou a atenção foi:
1- Uma frase de efeito utilizada pelo juiz na justificativa, que foi quotada na matéria: "Nos tribunais, pelo menos neste, os
factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar,
os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada
até ordem em contrário". Estranhei que um sujeito de tão alta patente e na condição de quem faz uma defesa tão ardorosa do idioma tenha derrapado tão feio nele (por coesão e coerência textual, não por ortografia), as três vezes negritadas, em uma única frase. Acontece que factos e fatos são palavras com significados diferentes (os nossos fatos e os nossos ternos, respectivamente) e continuam sendo escritas do modo que sempre foram por lá; cágado e cagado também são coisas distintas e continuam sendo escritas de modo distinto tanto lá como cá; e "a ordem em contrário" já fora dada fazendo com que o "até" não tenha nenhum significado no texto.
2- Os comentários no site do Público.pt e no Facebook são quase exclusivamente falando sobre como Portugal tem sido vítima (e vítima passiva) do imperialismo brasileiro e sobre como este novo herói da pátria se tornou um baluarte da defesa de um idioma puro e intocado (acho engraçado: os portugueses parecem realmente em geral acreditar que falam um idioma puro e imaculado: não devem estar habituados aos textos antigos).
Acho que 1 em cada 20 comentaristas (mesmo considerando os contrários ao AO) são mais moderados. A imensa maioria é na base do "ESTES BRASILEIROS FILHOS DA PUTA QUE NÃO SABEM ESCREVER QUEREM IMPOR SUA CULTURA SEUS MODOS SUA SELVAGERIA!!!!!!!VIAVA CAMÕES!!!!VIVA A LUSOFONIA!!!" (mentira, ao contrário do que se costuma ver no Brasil, os portugueses comentam em caixa baixa e com algum respeito às pontuações, mas o espírito dos comentários é por aí mesmo).
Enfim, talvez nem seja, mas achei divertido/curioso. Eu nem sou favorável ao AO1990 (não que eu seja contra, estou mais pro lado do "muito pelo contrário") e até entendo que Portugal em peso seja contra (até porque se eu já não sou fã da idéia de ter que escrever ideia imagino eles que parece que tiveram maiores modificações e em termos de uso mais tradicional). Mas foram as categorias dos "argumentos" tanto do meritíssimo quanto do populacho que acompanha o Público.pt que que me chamaram um pouco a atenção.
http://www.publico.pt/sociedade/noticia/acordo-ortografico-custa-processo-disciplinar-ao-juiz-rui-teixeira-1629711