http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9764III. Rebatendo Algumas Objeções
a) O Estado Brasileiro é laico
Já tive a chance de me deparar por duas vezes com o argumento de que o Estado brasileiro é laico e que portanto "não se pode aceitar como meio de prova fruto de determinada doutrina religiosa, em detrimento de toda uma diversidade de concepções religiosas ou não" (Roberto Serra da Silva Maia. A psicografia como meio de prova no processo penal). Em outra ocasião: "O Estado brasileiro é laico, e também por isso não pode referir-se normativamente à validade ou não de material psicografado como meio de prova" (Renato Marcão. Psicografia e prova penal).
Uma afirmação destas peca conceitualmente, pois se o fenômeno de psicografia é real ele não integra nenhuma doutrina religiosa. Psicografar, por si só, não faz parte de culto religioso, muito embora segmentos religiosos supostamente afirmem que alguns de seus membros psicografem. Psicografia, se realmente trouxer notas verificáveis, sugerindo alguma forma de obtenção de informação por via anômala, é mais que um mero movimento cultural, do que um dogma ou uma crença, merece, na realidade, tratamento científico para se perquirir a origem da mensagem, se de um morto, de outros vivos ou do próprio psíquico. Maia e Marcão, em que pese o ótimo conteúdo jurídico exarado em seus pareceres, parecem desconhecer a história das pesquisas psíquicas, uma vez que já partem do pressuposto que a hipótese "espíritos" seja realmente a única causa e, finalmente, confundem fato religioso com fato científico, enquanto o primeiro é não-verificável, apenas intuitivo e motivo de crença; o segundo pode ser examinado.
Exemplifiquemos. Uma carta supostamente psicografada por um médium, mas que não traz nenhum dado que se possa investigar a fim de lhe conferir autenticidade e que nem seja passível de reconhecimento grafotécnico, não é científica (ver a análise de Carlos Augusto Perandréa. A Psicografia à Luz da Grafoscopia). Não deve ser considerada sua validade. Embora o conteúdo possa ter sido escrito por força de uma entidade desencarnada, não se tem como averiguar. E mesmo que seja de origem espiritual, poderá haver falsidade ideológica pela possibilidade de interferência de outras entidades, como bem lembrou Maia, muito embora – em nossa opinião - a grafoscopia possa diminuir bastante a dúvida quanto à identidade. Por outro lado, se a psicografia indica o local da ocultação da prova empregada no delito, como uma arma de fogo, e a autoridade policial faz a busca e realmente a encontra, junto ou não com outras circunstâncias mencionadas, não há porque afirmar que a arma ou demais provas encontradas foram obtidas por meios ilícitos ou ilegítimos, uma vez que o contraditório pode ser estabelecido completamente em sede judicial, podendo o réu refutá-las. A psicografia hipoteticamente poderia também indicar apenas a autoria do delito, mas desde que associada com vestígios de materialidade delitiva, como fios de cabelo que possibilitam exame de DNA, chegar-se-ia ao bem provável sujeito ativo da ação criminosa. Pode ainda a mensagem descrever a execução do crime, fornecendo informações que se encaixam dinamicamente melhor no conjunto de evidências físicas. Igualmente, não haveria impedimento legal ao Ministério Público para, na formação de sua opinio delicti, fundamentar-se segundo essa outra reconstituição do crime. Neste último caso, a psicografia não funcionaria como meio ou prova em si, mas serviria como uma espécie de fundamentação para a denúncia, correlacionando intenções, motivos, provas e indícios para a incriminação de suspeitos ou indiciados, por exemplo. Poderia ainda servir de base para o desarquivamento de inquérito policial, desde que trouxesse notícia de novas provas físicas (súmula 524 do STF).
b) A existência da pessoa natural extingue-se com a morte
Objeção fundamentada no art. 6º do Código Civil. A morte é causa extintiva da personalidade humana, quando o sujeito não pode ser mais titular de direitos e obrigações. Mesmo que a vida continue além da morte corporal, para o Direito, essa existência não seria reconhecida, portanto, existe morte jurídica, embora de fato possa haver sobrevivência. Em todo caso, mesmo que não seja permitido o reconhecimento judicial de permanência da personalidade após a morte física, isso não exclui o conteúdo do documento que por ventura traga informações cuja obtenção não seja explicável por meios normais. A norma legal em comento não tem repercussão em aspecto processual penal e eventual aceitação de prova obtida por psicografia não interfere na transmissão de direitos e obrigações relativos ao de cujus. Por último, repete-se o argumento de que existem interpretações não-espiritualistas para o fenômeno e que o escopo da discussão deve ser referente ao meio anormal de obtenção de uma evidência física, notadamente, em crimes transeuntes, que deixam vestígios.
c) Os Princípios da Ampla-Defesa e Contraditório (CRFB/88 art. 5º, LV)
O direito à prova encontra limites tanto nas exigências das normas legais e principalmente nas garantias constitucionais. No Estado Democrático de Direito, os fins não justificam os meios (Paulo Rangel. Direito Processual Penal). A prova obtida por meio ilícito é espécie de prova vedada, assim como a ilegítima, que fere aspectos processuais. Já se alegou que a psicografia violaria as garantias constitucionais do contraditório, diretamente, e da ampla-defesa, reflexamente, já que ampla-defesa abarca o conceito de contraditório, estabelecendo-se uma relação continente e conteúdo. O princípio do contraditório é o alicerce do confronto equânime entre as partes. Efetiva-se, segundo os dizeres de Vicente Greco Filho,
"pelo conhecimento da demanda por meio de ato formal de citação; pela oportunidade, em prazo razoável, de se contrariar o pedido inicial; através da oportunidade de produzir prova e se manifestar sobre a prova produzida pelo adversário; a oportunidade de estar presente a todos os atos processuais orais, fazendo consignar as observações que desejar; e pela oportunidade de recorrer da decisão desfavorável" (Direito Processual Civil Brasileiro. Vol. 1).
Às partes são garantidas, portanto, tanto as informações de todos os atos que lhes sejam articulados no processo, como a presença de meios que possibilitem condições concretas para poderem atuar na instrução processual em simetria de paridade de acordo com suas respectivas posições, autor ou réu. Não há porque se entender quebra de paridade por uma evidência descoberta através de informação obtida por psicografia tendo em vista haver possibilidade de refutação, em sede judicial, da própria prova material encontrada, sem violação de nenhum dos pressupostos principiológicos. O parapsicólogo renomado internacionalmente, Montague Keen, relata um interessante caso ocorrido no Reino Unido:
"Uma jovem mulher foi brutalmente assassinada e o corpo foi achado por um detetive de polícia que arrombou seu apartamento na zona oeste de Londres, em fevereiro de 1983. O policial passou cinco horas examinando e registrando todos os aspecto do corpo e o apartamento. Alguns dias mais tarde, acompanhado por um colega, visitou a casa de uma jovem irlandesa. Ela descreveu para os dois policiais como a mulher assassinada tinha sido atacada no final de semana, descrevendo o homicídio através de uma voz que se identificava como sendo a própria mulher assassinada, embora o seu nome de solteira não tivesse se tornado público. No curso da entrevista, ela deu cerca de 150 pistas de evidência, quase todos precisas, salvo por algumas questões em que os dados não eram prováveis, porém consistentes. Algumas das informações podiam ter sido tiradas da mente do policial cujas notas confirmaram a precisão de suas descrições. Algumas outras - a casa do amigo da vítima, seu divórcio pendente, a adaptação à depressão, a conduta do assassino no apartamento da vítima e sua fuga de carro depois do homicídio, o lapso de tempo que a vítima conhecia o assassino, as tatuagens no braço deste, a descrição de sua namorada, a reivindicação do prêmio de um seguro falso que ele recentemente fez etc - eram desconhecidas para os oficiais, embora subseqüentemente comprovadas. O assassino, uma insignificante criminoso conhecido pela polícia, não era um suspeito e tinha um álibi. Uma evidência proveniente de um médium a respeito de uma mulher assassinada não é admissível na Corte do Reino Unido. O caso estava arquivado até o ano 2000 quando avanços na tecnologia de DNA habilitaram a polícia a produzir evidência a qual determinou o destino do assassino, que agora cumpre uma longa sentença na prisão. A evidência crucial foi proveniente do pulôver descartado pelo assassino, resgatado numa lata de lixo pelo investigador de polícia somente em razão da precisão impressionante das informações da médium" (Montague Keen. Super-PSI or Survival? A Response to Prof. Stephen Braude).
Como se pôde depreender, a Corte Inglesa, como era de se esperar, não observou nenhuma violação ao princípio do contraditório, sendo perfeitamente lícita a utilização do pulôver como prova incriminadora. Ainda lembra-se que o momento de ser estabelecido o contraditório e a ampla-defesa é na fase processual, eis que em momento pré-processual, ou seja, durante o inquérito policial, vige o princípio inquisitivo. Todavia, toda produção probatória em sede policial deverá ser renovada no curso do processo para que haja oportunidade de contradizê-la perante o juiz natural da causa. No exemplo seguinte, nos Estados Unidos, a sra. Chua, médium em questão, ajudou a polícia a encontrar peças do crime após a acusação de um suspeito por parte do suposto espírito da falecida, Teresita Basa. A polícia de Chicago encontrou o produto do roubo e mais tarde o acusado, Allan Showery, confessou também o homicídio. As provas foram admitidas pela Corte americana, que não entendeu ofensa alguma ao princípio do due process of law, do qual a ampla defesa e o contraditório são corolários.
"O drama começou em 21 de fevereiro de 1977, quando a polícia de Chicago encontrou o corpo de Teresita Basa, de 48 anos de idade. Ela estava caída no chão de seu apartamento, no décimo quinto andar, morta a facadas e parcialmente queimada.(...) A polícia a princípio achou que podia ter sido morta durante uma briga com algum amante, mas afastou essa idéia depois de interrogar seu namorado. Mais uma vez a polícia ficou sem a menor pista. A alma, espírito, fantasma ou o que quer que fosse de Teresita Basa estava inquieto, tanto que outro ato do mistério ocorreu quatro meses mais tarde na casa do dr. e sra. José Chua. O dr. Chua era um médico filipino, cuja esposa trabalhava no Edgewater Hospital na época do homicídio. Ele ficou surpeendido certa noite, quando, estando os dois juntos em sua casa em Skokie, sua esposa entrou inexplicavelmente em um estado semelhante a transe, caminhou até o dormitório, deitou-se e começou a falar em sua língua natal. "Ela falava em Tagalong (um dialeto filipino), mas com um estranho sotaque espanhol", declarou ele posteriormente. "Ela disse: "Akoy" (eu sou) Teresita Basa." O médico admitiu ter ficado assustado, especialmente quando Teresita explicou que seu assassino era outro empregado do hospital. Ela acusou um enfermeiro chamado Allan Showery, cujo motivo fora o roubo de suas jóias. (...). Outro transe igualmente peculiar seguiu-se dias depois. Desta vez, a voz queixou-se de que Showery ainda estava na posse de suas jóias e havia dado seu anel de pérola a sua companheira. Poucos dias mais tarde, foi recebida uma terceira comunicação, após a qual o dr. Chua finalmente decidiu chamar a polícia. Os inspetores encarregados do caso, Joseph Stachula e Lee Epplen, mostraram-se céticos, mas estavam dispostos a seguir qualquer pista que lhes fosse oferecida. As fontes normais de informação não lhes haviam dado grande coisa com que trabalhar, por isso procuraram os Chua com esperança misturada a um traço de cinismo. Todavia, entregaram-se a seu trabalho com diligência profissional. Quando chegaram ao apartamento dos Chua, perguntaram inicialmente se "Teresita Basa" se queixara de estupro como parte do crime. O dr. Chua respondeu negativamente e explicou que a voz só dissera que Teresita fora assassinada. Os investigadores ficaram impressionados por essa resposta, pois sua pergunta aparentemente importante não passara de um truque. Eles sabiam pelo relatório da autópsia que a sra. Basa havia morrido virgem. (...) Em seguida, os Chua falaram a respeito de Showery e das jóias. (...) Trabalhando a partir dos indícios dados pelo dr. Chua e pelo pretenso fantasma de Teresita Basa, a polícia de Evaston começou a focalizar sua atenção em Showery. Uma busca em seu apartamento descobriu as jóias e o anel de pérola foi encontrado adornando a mão de sua companheira. Preso e confrontado com as provas, Showery assinou uma confissão admitindo o roubo e o homicídio. O caso foi finalmente encerrado em agosto." (Scott Rogo. Life After Death).
Neste último exemplo, ocorrido na Pensilvânia, Estados Unidos, o médium fora o próprio pai da vítima. A forma usual também fora a psicofonia, onde não se pode sequer haver submissão a exame grafotécnico. Não obstante, mais uma vez a justiça americana reconheceu a licitude das provas obtidas por meio de comunicações anômalas, algo que, apesar de raro – mas já estatisticamente significativo - não engendra maiores dificuldades aos juízos estadunidenses.
"O sr. Romer Troxell, morador de Livittown, na Pensilvânia, chegou a Portage, em Indiana, para receber o corpo de seu filho assassinado. A ´´voz´´ do rapaz assassinado permaneceu insistindo na mente do sr. Troxell desde o momento em que ele e sua esposa chagaram de carro à cidade. Contou ele à polícia que a voz de seu filho levou-o ao assassino quando rodava pela cidade à procura do carro roubado de seu filho. A voz lhe disse exatamente onde ir e ele logo localizou o veículo. Fiz uma volta e segui o carro, um quarteirão atrás mais ou menos", explicou ele. "Queria abalroar o carro amarelo, mas Charlie me aconselhou a não fazê-lo". Por isso, ele se limitou a seguir o carro até o motorista parar e descer. Então, enfrentou o homem, enquanto outro parente corria a chamar a polícia. Os policiais prenderam mais tarde o motorista com base em suas próprias informações confidenciais... informações de que nunca haviam falado ao sr. Troxell. Charlie deixou-me depois que apanhamos o assassino", disse o sr. Troxell. "Charlie está agora em paz. A polícia estava atrás do assassino, porém. Percebi isso quando eles me mostraram mais tarde o que haviam descoberto em sua investigação. Mas quando ouvi meu filho guiando-me, eu agi. Talvez o Senhor quisesse que fosse assim." (ibidem)
Relembrando o que já se salientou, reafirmamos que não importa a espécie de manifestação do fenômeno, muito embora, a maneira escrita, possa: a) esclarecer a dúvida quanto à origem fenomenológica, se de natureza espiritual ou psi, ou, no mínimo, facilitar uma interpretação espiritualista, eis que não se tem entendido como razoável que percepção extra-sensorial seja capaz de transmitir ao agente psi aquisição de habilidades motoras, como tocar piano ou escrever e assinar igual outra pessoa, ainda mais imitar a grafia de um morto; b) bem como fornecer suporte para testar a identidade da possível entidade comunicante através da grafoscopia. Apesar destas peculiaridades, a psicografia, como meio de obtenção de provas, juridicamente, não se distinguiria de qualquer outro tipo de fenômeno anormal, já que todos não seriam provas em si, mas veículos de captação de vestígios incriminadores ou absolutórios. Igualmente, não é relevante discutir a natureza da causalidade. As duas diferenciações supracitadas só assumem relevância quando se pretende embasar, na denúncia ou defesa, o texto psicografado como prova propriamente dita.