Rodrigo Constantino
A menina de apenas nove anos que havia sido estuprada pelo padrasto em Pernambuco e engravidado de gêmeos, realizou um aborto na manhã de quarta-feira. Membros da Igreja Católica tentaram impedir o aborto. O advogado da Arquidiocese de Olinda e Recife, Márcio Miranda, afirmou que vai denunciar o caso ao Ministério Público de Pernambuco. Ele afirmou que a Constituição prevê o princípio da dignidade do ser humano. Resta perguntar: qual ser humano?
Alguns religiosos estão tão imbuídos de sua cruzada moral que passaram a ignorar o próximo de carne e osso. A sensação de regozijo do membro da cruzada contra qualquer tipo de aborto, mesmo em casos absurdos como este, supera a própria empatia que ele poderia sentir pela pobre garotinha estuprada pelo padrasto e com apenas nove anos. Ele se sente moralmente superior aos demais, defendendo “a vida” a todo custo, mesmo que seja a vida de um feto precariamente formado, sem sensações ou sistema nervoso, enquanto a vida de uma pobre menininha é jogada em segundo plano.
Sam Harris, autor de Carta a uma Nação Cristã, escreveu sobre Madre Teresa de Calcutá: "A compaixão de madre Teresa estava muito mal calibrada, se matar um feto no primeiro trimestre a perturbava mais do que todo o sofrimento que ela testemunhou nesta Terra”. Creio que o “amor” dessas pessoas pelo feto de poucos milímetros supera bastante qualquer possibilidade de empatia pelos seres humanos concretos. É mais ou menos como Nelson Rodrigues falava: “Amar a Humanidade é fácil; difícil é amar o próximo”. Infelizmente, muitos “humanistas” acabam assim, apaixonados por uma causa mais abstrata, que lhes fornece uma entorpecente sensação de superioridade moral, enquanto seus próximos sofrem as conseqüências.
Um bom exemplo disso foi Rousseau. O pensador se proclamava o mais virtuoso dos homens, e se dizia amigo de toda a humanidade, mas colecionou inúmeros desafetos ao longo de sua vida. Rousseau ficou famoso como “educador” das crianças através de seus livros, mas na prática abandonou todos os seus cinco filhos. O filósofo David Hume descreveu-o como um “monstro que se via como o único ser importante do universo”. Diderot considerou-o um “enganador, vaidoso como Satã, mal-agradecido, cruel, hipócrita e cheio de maldade”. Estes foram amigos dele durante algum tempo. Para Voltaire, ele era “um poço de presunção e vileza”. Sophie d’Houdetot, quem ele mesmo considerou seu único amor, julgou-o, quando mais velha, como “repulsivo”, uma “figura patética” e um “louco interessante”. Mas Rousseau mergulhou numa verdadeira cruzada moral, e se colocava acima de todos, apesar dessa análise bem diferente dos mais próximos.
Muitos comunistas abraçam a cruzada da Utopia também, e em nome da causa toleram as maiores atrocidades do mundo. Foi assim que muitos defenderam assassinos como Stalin, Fidel Castro, Mao Tse Tung e Pol-Pot. Eram apenas ditadores cruéis, responsáveis pela morte de milhões de inocentes. Mas os comunistas estavam acima dessas questões “burguesas”, e acreditavam que seus fins utópicos justificavam tais meios. Quando Che Guevera mete friamente uma bala na cabeça de alguém cujo “crime” foi discordar da revolução, os comunistas não se importam, pois a revolução vale mais que a vida de simples indivíduos. O sofrimento de pessoas de carne e osso passou a ser insignificante perto da grandeza de suas metas.
Na mesma linha da frase de Nelson Rodrigues, Charles Schulz afirmou ironicamente que amava a humanidade, mas eram os homens que ele não suportava. Até quando esse grupo de religiosos mais fanáticos irá amar a “vida”, mas ignorar o sofrimento das pessoas vivas ao lado? Quando o código moral chega ao ponto em que uma menininha com apenas nove anos, vítima de um estupro do próprio padrasto, deve atravessar essa gravidez não importa seu sofrimento ou riscos, está na hora de mudar urgentemente de código. E em hipótese alguma esse código perverso merece o nome de “ética da vida”. Está mais para “ética do sofrimento”.
http://rodrigoconstantino.blogspot.com/2009/03/o-aborto-de-uma-crianca.html