Antes da leitura deste texto, é preciso salientar que o autor acredita na teoria do
gene egoísta, do biólogio britânico Richard Dawkins. Mais do que isso, o autor crê na possibilidade dos genes serem manipulados, para se obter melhores resultados do intelecto humano, conforme obra referenciada.
O único objetivo é expor as dificuldades dos argumento em favor do livre-arbítrio, e não discutir a teoria do gene egoísta.
Livre-arbítrio
Por Huáscar Terra do Valle
Quase todas as religiões, para ter coerência ideológica, dependem do livre-arbítrio, ou seja, da teoria de que nós somos absolutamente livres para tomar decisões.
Segundo as três religiões originárias do Oriente Médio – judaísmo, cristianismo e islamismo – Deus castiga aqueles que desobedecem as regras de boa conduta. Deus, Jeová ou Alá não poderiam castigar ninguém, se não houvesse o livre-arbítrio, porque então a culpa do erro seria do criador e não da criatura.
Se pecamos porque somos maus, é porque Deus nos fez maus. Deus, portanto, é injusto. Para resolver esse paradoxo, inventou-se o livre-arbítrio. Mas este não convence.
É fácil perceber que a idéia do livre-arbítrio é absurda e incompatível com o bom senso e com as descobertas da ciência.
A personalidade das pessoas, que determina suas decisões, é fruto da natureza e da criação. Como resultado da carga genética e de outros fatores, como, por exemplo, a alimentação da mãe durante a gestação, as pessoas já nascem com o comportamento determinado. Depois, com a socialização, com a educação e a transferência da cultura, além dos acontecimentos aleatórios, formar-se-á nossa personalidade. Cada decisão que vamos tomar em toda nossa vida dependerá destes incontáveis fatores sobre os quais não temos o menos controle.
O ambiente em que estamos, em determinado momento, também tem influência sobre nosso comportamento. O procedimento de uma pessoa dentro de uma igreja é completamente diferente do comportamento da mesma pessoa em uma situação de guerra ou em um lupanar. Seguimos diferentes códigos de conduta em diferentes ambientes e também com diferentes pessoas.
Não podemos comparar o comportamento moral de um menino mal-nutrido, criado nas ruas, viciado em drogas, convivendo com criminosos, com o com o de um menino de “boa família”, bem nutrido, que recebeu a melhor educação e viveu nos melhores ambientes.
Mesmo no campo filosófico, ou seja, em alto grau de abstração, o livre-arbítrio é impossível. Se admitirmos que fomos criados por um Deus, chegaremos à conclusão de que ele criou também todos os nossos defeitos. O criador é, obviamente, responsável pelos pecados da criatura.
Se, por outro lado, não aceitamos um Deus, nossos defeitos dependem de uma multiplicidade de fatores.
As conseqüências desse raciocínio, negando o livre-arbítrio, repercutem em inúmeras áreas, tais como a moral e o Direito. Se não existe punição divina para nossos descaminhos, a moral torna-se uma questão de responsabilidade pessoal. No entanto, é necessário uma referência. Qualquer código de moral necessita definir lealdades a algum princípio, por exemplo, a lealdade consciente aos objetivos dos genes (a sobrevivência da espécie).
Essa lealdade à espécie é instintiva, entretanto, ela pode habitar, naturalmente, o consciente das pessoas. Quem tem alto nível cultural pode, conscientemente, definir seu comportamento em harmonia com os anseios do inconsciente. Tal comportamento, ou seja, dos genes, sem perder de vista os objetivos somáticos.
A imensa maioria das pessoas é incapaz de agir integrando os objetivos do consciente e do subconsciente. Tal comportamento requer grande desenvolvimento emocional e cultural. Por isso são necessárias as religiões, que são alegorias baseadas na existência de deuses, anjos e demônios, para fazer chegar às pessoas de mentalidade simples os desígnios de nossos senhores, os genes. As religiões, além disso, permitem-nos preservar nosso orgulho de rei da criação, criado à imagem e semelhança de Deus, e ainda nos prometem o futuro em um paraíso, com o gozo eterno. Nada mau! Se pudéssemos escolher, sem dúvida, teríamos fé em uma religião qualquer. Da mesma maneira, se pudéssemos, acreditaríamos também em Papai Noel.
Voltando à questão do livre-arbítrio, concluímos que os humanos agem por uma série de motivações baseadas nos acontecimentos anteriores de sua vida. No entanto, devido ao excepcional desenvolvimento intelectual do Homo sapiens, quem sabe, podemos aspirar a conquistar o livre-arbítrio, que nos foi negado pela natureza? Creio que sim! Esse livre-arbítrio consiste em fazermos prevalecer a razão sobre o instinto, como no caso em pauta: a interferência da inteligência para conduzir os objetivos dos genes, visando não os objetivos imediatos do inconsciente porém os objetivos de médio e longo prazo. Seria a vitória final dos genes, otimizada pela inteligência, criada pelos mesmos genes, sempre tendo em vista a sobrevivência não só da espécie como também do indivíduo.
Podemos também aspirar a aumentar a duração da vida de nossas carcaças, que já nascem programadas para morrer. Já temos feito progressos nesse campo, descobrindo os mecanismos de descarte acionados pelo organismo. Pode ser que, no futuro, consigamos deter essa fatalidade biológica, ou pelo menos prolongar a juventude. Seria uma batalha do soma contra as células germinativas. Se o conseguirmos, será mais um motivo premente para envidarmos todos os esforços no sentido de reduzir a população do planeta, sob pena de aumentarmos ainda mais a explosão demográfica.
Referência:Huascar Terra do Valle - Tratado de teologia profana: a nova religião para o III milênio.
São Paulo: Alfa Omega, 1998.
349p.