Autor Tópico: Avaliando a habilidade científica de pensar  (Lida 96329 vezes)

0 Membros e 1 Visitante estão vendo este tópico.

Offline DDV

  • Nível Máximo
  • *
  • Mensagens: 9.724
  • Sexo: Masculino
Re: Avaliando a habilidade científica de pensar
« Resposta #275 Online: 02 de Junho de 2010, 23:06:43 »
Houve a domesticação de animais, a criação da agricultura rotativa, novos tipos de plantas foram desenvolvidas e conservados puros graças a evitar-se cuidadosamente a fertilização cruzada, surgiram invenções químicas, ‘desenvolveu-se uma arte surpreendente, suscetível de ser comparada às melhores manifestações da arte
contemporânea. Por certo que não houve excursões coletivas à Lua, mas indivíduos isolados, desprezando grandes perigos que lhes ameaçavam a alma e a sanidade mental elevaram-se de esfera a esfera e finalmente encararam Deus em todo Seu esplendor, enquanto outros homens se transformavam em animais para depois
readquirir figura humana (capítulo XVI, notas 20 e 21). Em todos os tempos, o homem enfrentou a circunstância de olhos abertos, com inteligência viva; em todos os tempos, realizou descobertas incríveis; em todos os tempos, há ensinamento a colher em suas idéias. A ciência moderna, de outra parte, não é tão difícil e tão
perfeita quanto a propaganda quer levar-nos a crer. Uma disciplina,como a física, a medicina ou a biologia, só parece difícil porque é mal ensinada, porque as lições comuns estão repletas de material redundante e porque a ela nos dedicamos já muito avançados na vida. Durante a guerra, quando o exército norte americano urgentemente reclamava médicos, foi repentinamente possível reduzir o aprendizado médico a seis meses (todavia, os correspondentes manuais de instrução acham-se, de há muito, desaparecidos. A ciência pode ser simplificada durante a guerra. Em tempo de paz, o prestígio da ciência exige que se rodeie de complexidade maior). E não raro ocorre que o juízo afetado e orgulhoso do especialista seja reduzido a suas devidas proporções por um leigo. Numerosos inventores construíram máquinas ‘impossíveis’. Advogados têm demonstrado repetidamente que um especialista não sabe do que está falando. Cientistas, e especialmente médicos, chegam com freqüência a conclusões diferentes, de sorte que toca aos parentes da pessoa enferma (ou aos habitantes de certa área) decidir, por voto, qual o procedimento a ser adotado. Quão freqüentemente não é a ciência aprimorada e impelida a novos caminhos por influências não-científicas! Cabe a nós, cabe aos cidadãos da sociedade livre aceitar o chauvinismo da ciência sem contraditá-la ou subjugá-la pela força oposta da ação geral. Ação geral foi utilizada contra a ciência pelos comunistas chineses na década de 1950 e voltou a
ser usada, em circunstancias muito diversas, por algumas pessoas que se opunham à teoria da evolução, na Califórnia da década de 1970.

Acompanhemos esses exemplos e livremos a sociedade do aperto estrangulador de uma ciência ideologicamente petrificada, assim como nossos ancestrais nos livraram do aperto estrangulador da Religião Verdadeira e Única.
O caminho que leva a tal objetivo é claro. Uma ciência que insiste em ser a detentora do único método correto e dos únicos resultados aceitáveis é ideologia e deve ser separada do Estado e, especialmente, dos procesos de educação. Cabe ensiná-la, mas tão-somente àqueles que decidiram aderir a essa particular superstição. De outra parte, uma ciência que renuncie a essas pretensões totalitárias deixa de ser independente e autônoma e poderia ser ensinada sob diferentes combinações (mito e cosmologia moderna seria uma dessas combinações). Está claro que todo empreendimento tem o direito de exigir que os a ele devotados se preparem de maneira especial e pode, inclusive, impor a aceitação de certa ideologia. (Eu, por exemplo, sou contra a descaracterização dos assuntos, que se vão tornando mais e mais semelhantes entre si; quem não aprecie o catolicismo atual que o abandone e se torne protestante ou ateu, em vez de arruiná-lo com alterações despidas de sentido, como a da missa na língua nacional.) E isso é verdade em relação à física, tal como verdadeiro com respeito à religião ou à
prostituição. Contudo, essas ideologias especiais, essas capacitações especiais não encontram lugar no processo da educação geral, que prepara o cidadão para desempenhar seu papel na sociedade. Um cidadão amadurecido não é um homem que foi instruído em uma especial ideologia — como o puritanismo ou o racionalismo crítico — e que agora é portador dessa ideologia, como de um tumor mental; um cidadão amadurecido é uma pessoa que aprendeu a tomar decisões e que decidiu em favor daquilo que mais lhe convém. É pessoa de alguma solidez espiritual (não se apaixona pelo primeiro trovador ideológico que lhe cruze o caminho)e que, portanto, está apta a escolher conscientemente a tarefa que lhe pareça mais atraente, em vez de deixar-se dominar por ela. Preparando-se para essa escolha, a pessoa estudará as ideologias mais importantes em termos de fenômenos históricos, estudará a ciência como fenômeno histórico e não como o único e sensato meio de enfrentar um problema. Estudará a ciência a par de outros contos de fadas, tais como os mitos de sociedades ‘primitivas’, de sorte a contar com as informações necessárias para chegar a uma decisão livre. Parte básica de uma educação geral dessa espécie são conhecimentos dos principais propagandistas de todos os campos, de modo que o neófito possa desenvolver resistência contra todas as formas de propaganda, incluindo a propaganda que se denomina ‘argumento’. Somente após esse processo de endurecimento será ele chamado a pronunciar-se em face das questões racionalismo-irracionalismo, ciência-mito, ciência-religião e outras questões semelhantes. A decisão que tome em prol da ciência — admitindo que a tome — será muito mais ‘racional’ do que é, hoje, qualquer decisão em favor da ciência. Seja como for — a ciência e as escolas estarão cuidadosamente separadas, como estão, hoje em dia,religião e escolas. Os cientistas participarão, é claro, de decisões
governamentais, pois todos participam de tais decisões. Mas não lhes será dada autoridade dominante. Será o voto de todos os interessados que decidirá as questões fundamentais, referentes, por exemplo, a métodos de ensino utilizados, ou à verdade de crenças básicas, tal como a relativa à teoria da evolução ou à teoria quântica — o voto e não a autoridade dos importantes que se ocultam por detrás de inexistente metodologia. Não há a
temer que essa maneira de dispor a sociedade conduza a resul-tados indesejáveis. A própria ciência recorre ao método da discussão e do voto, embora sem claro domínio de seu mecanismo e utilizando-o de maneira fortemente tendenciosa. E a racionalidade de nossas crenças se verá consideravelmente acentuada.


FIM.

Último capítulo (ou apêncice, não lembro mais) de "Contra O Método", de Feyerabend.
Não acredite em quem lhe disser que a verdade não existe.

"O maior vício do capitalismo é a distribuição desigual das benesses. A maior virtude do socialismo é a distribuição igual da miséria." (W. Churchill)

Offline Geotecton

  • Moderadores Globais
  • Nível Máximo
  • *
  • Mensagens: 28.345
  • Sexo: Masculino
Re: Avaliando a habilidade científica de pensar
« Resposta #276 Online: 02 de Junho de 2010, 23:07:14 »
DDV

Por mim está ótimo. :ok:
Foto USGS

Offline Feynman

  • Nível 32
  • *
  • Mensagens: 2.273
Re: Avaliando a habilidade científica de pensar
« Resposta #277 Online: 04 de Junho de 2010, 12:41:37 »
Um cidadão amadurecido não é um homem que foi instruído em uma especial ideologia — como o puritanismo ou o racionalismo crítico — e que agora é portador dessa ideologia, como de um tumor mental; um cidadão amadurecido é uma pessoa que aprendeu a tomar decisões e que decidiu em favor daquilo que mais lhe convém. É pessoa de alguma solidez espiritual (não se apaixona pelo primeiro trovador ideológico que lhe cruze o caminho)e que, portanto, está apta a escolher conscientemente a tarefa que lhe pareça mais atraente, em vez de deixar-se dominar por ela. Preparando-se para essa escolha, a pessoa estudará as ideologias mais importantes em termos de fenômenos históricos, estudará a ciência como fenômeno histórico e não como o único e sensato meio de enfrentar um problema. Estudará a ciência a par de outros contos de fadas, tais como os mitos de sociedades ‘primitivas’, de sorte a contar com as informações necessárias para chegar a uma decisão livre. Parte básica de uma educação geral dessa espécie são conhecimentos dos principais propagandistas de todos os campos, de modo que o neófito possa desenvolver resistência contra todas as formas de propaganda, incluindo a propaganda que se denomina ‘argumento’. Somente após esse processo de endurecimento será ele chamado a pronunciar-se em face das questões racionalismo-irracionalismo, ciência-mito, ciência-religião e outras questões semelhantes. A decisão que tome em prol da ciência — admitindo que a tome — será muito mais ‘racional’ do que é, hoje, qualquer decisão em favor da ciência.

Pôxa, isso é muito bom!!!
"Poetas dizem que a Ciência tira toda a beleza das estrelas - meros globos de átomos de gases. Eu também posso ver estrelas em uma noite limpa e sentí-las. Mas eu vejo mais ou menos que eles?" - Richard Feynman

Offline Moro

  • Nível Máximo
  • *
  • Mensagens: 20.984
Re: Avaliando a habilidade científica de pensar
« Resposta #278 Online: 04 de Junho de 2010, 16:11:51 »
Muito ruim!!!. Ao final uma ideologia influencia e impacta exatamente nossa liberdade de escolher, inclusive de escolher ideologias.  Me parece que ele enquadra a ciência como mais uma ideologia e não como um ferramental para analisar exatamente as evidências e proposições para avaliar as afirmações, na maior parte descabidas, das ideologias/religiões.

No mais, eu lí o texto postado pelo DDV e achei ruim mesmo.
“If an ideology is peaceful, we will see its extremists and literalists as the most peaceful people on earth, that's called common sense.”

Faisal Saeed Al Mutar


"To claim that someone is not motivated by what they say is motivating them, means you know what motivates them better than they do."

Peter Boghossian

Sacred cows make the best hamburgers

I'm not convinced that faith can move mountains, but I've seen what it can do to skyscrapers."  --William Gascoyne

 

Do NOT follow this link or you will be banned from the site!