Houve a domesticação de animais, a criação da agricultura rotativa, novos tipos de plantas foram desenvolvidas e conservados puros graças a evitar-se cuidadosamente a fertilização cruzada, surgiram invenções químicas, ‘desenvolveu-se uma arte surpreendente, suscetível de ser comparada às melhores manifestações da arte
contemporânea. Por certo que não houve excursões coletivas à Lua, mas indivíduos isolados, desprezando grandes perigos que lhes ameaçavam a alma e a sanidade mental elevaram-se de esfera a esfera e finalmente encararam Deus em todo Seu esplendor, enquanto outros homens se transformavam em animais para depois
readquirir figura humana (capítulo XVI, notas 20 e 21). Em todos os tempos, o homem enfrentou a circunstância de olhos abertos, com inteligência viva; em todos os tempos, realizou descobertas incríveis; em todos os tempos, há ensinamento a colher em suas idéias. A ciência moderna, de outra parte, não é tão difícil e tão
perfeita quanto a propaganda quer levar-nos a crer. Uma disciplina,como a física, a medicina ou a biologia, só parece difícil porque é mal ensinada, porque as lições comuns estão repletas de material redundante e porque a ela nos dedicamos já muito avançados na vida. Durante a guerra, quando o exército norte americano urgentemente reclamava médicos, foi repentinamente possível reduzir o aprendizado médico a seis meses (todavia, os correspondentes manuais de instrução acham-se, de há muito, desaparecidos. A ciência pode ser simplificada durante a guerra. Em tempo de paz, o prestígio da ciência exige que se rodeie de complexidade maior). E não raro ocorre que o juízo afetado e orgulhoso do especialista seja reduzido a suas devidas proporções por um leigo. Numerosos inventores construíram máquinas ‘impossíveis’. Advogados têm demonstrado repetidamente que um especialista não sabe do que está falando. Cientistas, e especialmente médicos, chegam com freqüência a conclusões diferentes, de sorte que toca aos parentes da pessoa enferma (ou aos habitantes de certa área) decidir, por voto, qual o procedimento a ser adotado. Quão freqüentemente não é a ciência aprimorada e impelida a novos caminhos por influências não-científicas! Cabe a nós, cabe aos cidadãos da sociedade livre aceitar o chauvinismo da ciência sem contraditá-la ou subjugá-la pela força oposta da ação geral. Ação geral foi utilizada contra a ciência pelos comunistas chineses na década de 1950 e voltou a
ser usada, em circunstancias muito diversas, por algumas pessoas que se opunham à teoria da evolução, na Califórnia da década de 1970.
Acompanhemos esses exemplos e livremos a sociedade do aperto estrangulador de uma ciência ideologicamente petrificada, assim como nossos ancestrais nos livraram do aperto estrangulador da Religião Verdadeira e Única.
O caminho que leva a tal objetivo é claro. Uma ciência que insiste em ser a detentora do único método correto e dos únicos resultados aceitáveis é ideologia e deve ser separada do Estado e, especialmente, dos procesos de educação. Cabe ensiná-la, mas tão-somente àqueles que decidiram aderir a essa particular superstição. De outra parte, uma ciência que renuncie a essas pretensões totalitárias deixa de ser independente e autônoma e poderia ser ensinada sob diferentes combinações (mito e cosmologia moderna seria uma dessas combinações). Está claro que todo empreendimento tem o direito de exigir que os a ele devotados se preparem de maneira especial e pode, inclusive, impor a aceitação de certa ideologia. (Eu, por exemplo, sou contra a descaracterização dos assuntos, que se vão tornando mais e mais semelhantes entre si; quem não aprecie o catolicismo atual que o abandone e se torne protestante ou ateu, em vez de arruiná-lo com alterações despidas de sentido, como a da missa na língua nacional.) E isso é verdade em relação à física, tal como verdadeiro com respeito à religião ou à
prostituição. Contudo, essas ideologias especiais, essas capacitações especiais não encontram lugar no processo da educação geral, que prepara o cidadão para desempenhar seu papel na sociedade. Um cidadão amadurecido não é um homem que foi instruído em uma especial ideologia — como o puritanismo ou o racionalismo crítico — e que agora é portador dessa ideologia, como de um tumor mental; um cidadão amadurecido é uma pessoa que aprendeu a tomar decisões e que decidiu em favor daquilo que mais lhe convém. É pessoa de alguma solidez espiritual (não se apaixona pelo primeiro trovador ideológico que lhe cruze o caminho)e que, portanto, está apta a escolher conscientemente a tarefa que lhe pareça mais atraente, em vez de deixar-se dominar por ela. Preparando-se para essa escolha, a pessoa estudará as ideologias mais importantes em termos de fenômenos históricos, estudará a ciência como fenômeno histórico e não como o único e sensato meio de enfrentar um problema. Estudará a ciência a par de outros contos de fadas, tais como os mitos de sociedades ‘primitivas’, de sorte a contar com as informações necessárias para chegar a uma decisão livre. Parte básica de uma educação geral dessa espécie são conhecimentos dos principais propagandistas de todos os campos, de modo que o neófito possa desenvolver resistência contra todas as formas de propaganda, incluindo a propaganda que se denomina ‘argumento’. Somente após esse processo de endurecimento será ele chamado a pronunciar-se em face das questões racionalismo-irracionalismo, ciência-mito, ciência-religião e outras questões semelhantes. A decisão que tome em prol da ciência — admitindo que a tome — será muito mais ‘racional’ do que é, hoje, qualquer decisão em favor da ciência. Seja como for — a ciência e as escolas estarão cuidadosamente separadas, como estão, hoje em dia,religião e escolas. Os cientistas participarão, é claro, de decisões
governamentais, pois todos participam de tais decisões. Mas não lhes será dada autoridade dominante. Será o voto de todos os interessados que decidirá as questões fundamentais, referentes, por exemplo, a métodos de ensino utilizados, ou à verdade de crenças básicas, tal como a relativa à teoria da evolução ou à teoria quântica — o voto e não a autoridade dos importantes que se ocultam por detrás de inexistente metodologia. Não há a
temer que essa maneira de dispor a sociedade conduza a resul-tados indesejáveis. A própria ciência recorre ao método da discussão e do voto, embora sem claro domínio de seu mecanismo e utilizando-o de maneira fortemente tendenciosa. E a racionalidade de nossas crenças se verá consideravelmente acentuada.
FIM.
Último capítulo (ou apêncice, não lembro mais) de "Contra O Método", de Feyerabend.