Nenhum cientista admitirá que votar tenha sentido na matéria a que se dedica. Só os fatos, a lógica e a metodologia decidem — é o que nos diz o conto de fadas. Mas como decidem os fatos? Que função desempenham no avanço do conhecimento? Não podemos fazer nossas teorias deles derivarem. Não podemos
apresentar um critério negativo, dizendo, por exemplo, que as boas teorias são as teorias passíveis de refutação, mas não contraditadas pelos fatos. Um princípio de falseamento que afasta as teorias porque não se acomodam aos fatos teria de afastar a totalidade da ciência (ou teria de admitir que grandes porções da ciência são irrefutáveis). A sugestão de que uma boa teoria explica mais que suas oponentes também não é admissível. Certo: novas teorias predizem, com freqüência, coisas novas — mas quase sempre a expensas de coisas já conhecidas. Voltando-nos para a lógica, damo-nos conta de que nem mesmo seus mais simples requisitos
são satisfeitos pela prática científica e não poderiam ser satisfeitos, em razão da complexidade do material. As idéias de que os cientistas costumam valer-se para apresentar o conhecido e avançar rumo ao desconhecido raramente estão em estrita concordância com as injunções da lógica ou da matemática pura e a tentativa que se fizesse para levá-las a essa concordância roubaria da ciência a flexibilidade sem a qual é impossível alcançar progresso. Anotemos: só os fatos não bastam para levar-nos a aceitar ou rejeitar teorias científicas, pois a margem que deixam ao pensamento é demasiado ampla; a lógica e a metodologia eliminam demais, são demasiado acanhadas. Entre esses extremos situa-se o sempre cambiante domínio das idéias e dos desejos humanos.
Mais pormenorizada análise dos lances de êxito no jogo da ciência (‘de êxito’ do ponto de vista dos próprios cientistas) mostra, indubitavelmente que há uma larga faixa de liberdade a pedir multiplicidade de idéias e a permitir a aplicação de processos democráticos (apresentação-discussão-voto), mas que está obstruída pela
política e pela propaganda do poder. Esse o ponto em que o conto de ladas do método especial assume sua função decisiva. Oculta a liberdade de decisão que os cientistas criadores e o público em geral têm, mesmo
no que se refere às mais sólidas e avançadas partes da ciência, antepondo-lhes a repetição dos critérios ‘objetivos’ e assim protegendo os grandes nomes (os Prêmio Nobel; os chefes de laboratórios de organizações como a Associação Médica Americana, de escolas especiais; os ‘educadores’, etc.) contra as massas (os leigos;
os especialistas em campos não-científicos; os especialistas em outros ramos da ciência): só importam os cidadãos que foram expostos às pressões das instituições científicas (sofreram longo processo de educação), que sucumbiram a essas pressões (foram aprovados no exame) e que estão, agora, firmemente convencidos da
verdade do conto de fadas.
Dessa maneira os cientistas se iludiram a si próprios e aos demais com respeito à tarefa a que se dedicam,
sem, contudo, virem a sofrer qualquer real desvantagem: dispõem de mais dinheiro, mais autoridade e exercem maior atração do que merecem — e os mais estúpidos processos e mais risíveis resultados que alcançam em sua esfera de atuação vêm rodeados de uma aura de excelência. É tempo de reduzi-los às devidas proporções e
de atribuir-lhes mais modesta posição na sociedade. Essa advertência, que apenas alguns dos contemporâneos
mais bem preparados têm condições de aceitar, parece entrar em conflito com certos fatos simples e amplamente conhecidos. Não é certo que um médico disponha de melhores recursos para diagnosticar e curar uma enfermidade do que um leigo ou o feiticeiro de uma sociedade primitiva? Não é certo que as epidemias
e as doenças graves só desapareceram após a implantação da medicina moderna? Não temos de admitir que a tecnologia conseguiu enormes avanços após o surgimento da ciência moderna? E não são as viagens à Lua a prova mais impressionante e inconteste de sua excelência? Aí estão algumas das questões lançadas ao desafiador
impudente que ousa criticar a especial posição das ciências.
As questões só atingem o polêmico objetivo a que se dirigem se for presumido que os resultados da ciência, por ninguém negados, surgiram sem recurso a elementos não-científicos e que não podem ser aperfeiçoados sem interferência de tais elementos. Processos ‘não-científicos’, tais como o conhecimento de ervas, próprio
dos feiticeiros e curandeiros, a astronomia dos místicos, o tratamento de doenças em sociedades primitivas, são totalmente destituídos de mérito. Só a ciência nos oferece uma astronomia útil, a medicina eficaz, uma tecnologia digna de confiança. Importa admitir, ainda, que a ciência deve seu êxito a método correto e não a
um acidente feliz. Não foi uma afortunada antevisão cosmológica a responsável pelo progresso e sim manipulação cosmologicamente neutra de dados existentes. Tais os supostos que devemos admitir para emprestar às questões o vigor polêmico supostamente por ela englobado. Nenhum & tais supostos resiste a verificação mais.
cuidadosa.
A astronomia moderna surgiu com a tentativa, feita por Copérnico, de adaptar as velhas idéias de Filolau às necessidades das predições astronômicas. Filolau não era um cientista preocupado com a precisão; era, como vimos (capítulo V, nota 25), um pitagórico desorientado e as conseqüências de suas doutrinas foram consideradas ‘incrivelmente ridículas’ por um astrônomo profissional como Ptolomeu (capítulo IV, nota 4).Mesmo Galileu, que se defrontou com a aperfeiçoada versão copernicana da doutrina de Filolau, diz: ‘Não tem limites meu
espanto quanto percebo que Aristarco e Copérnico foram capazes de fazer com que a razão dominasse os sentidos, de sorte que, em detrimento destes, a razão se tornasse a orientadora de suas convicções’ (Dialogue, 328). ‘Sentidos’, aqui, refere-se às experiências a que recorreram Aristóteles e outros, para mostrar que a Terra se encontrava em repouso. A ‘razão’, oposta por Copérnico a tais argumentos, é a mística razão de Filolau,
associada a uma fé igualmente mística (‘mística’ do ponto de vista dos racionalistas de hoje) no caráter fundamental do movimento circular. Mostrei que a astronomia moderna e a dinâmica moderna não poderiam ter progredido sem recorrer a essas idéias antediluvianas.
Enquanto a astronomia se beneficiou do pitagorismo e do amor de Platão pelos círculos, a medicina se beneficiou do uso de ervas, da psicologia, da metafísica, da fisiologia de feiticeiros, parteiras, curandeiros, boticários errantes. Sabe-se muito bem que a medicina dos séculos XVI e XVII, embora teoricamente hipertrofiada sentia-se inútil em face da doença (e assim permaneceu por longo tempo, após a ‘revolução científica’). Inovadores como Paracelso voltaram a idéias primitivas e aprimoraram a medicina. Em todos os pontos, a ciência se vê enriquecida por métodos nãocientíficos e resultados não-científicos, enquanto processos freqüentemente
vistos como partes essenciais da ciência foram abandonados ou contornados. O processo não se restringe à história inicial da ciência moderna. Está longe de ser simples conseqüência do primitivo estágio das ciências, nos séculos XVI e XVII. Ainda hoje, a ciência pode tirar e tira vantagem da consideração de elementos nãocientíficos.
Exemplo examinado acima, no capítulo IV, é a revivescência da medicina tradicional na China comunista. Quando
os comunistas, na década de 1950, forçaram os hospitais e escolas de medicina a transmitir as idéias e métodos registrados no Manual de Medicina interna do imperador Amarelo e a aplicá-las no tratamento dos pacientes, muitos especialistas ocidentais (entre eles, Eccles, um dos ‘Cavaleiros de Popper’) se horrorizaram e predisseram a derrocada da medicina chinesa. Ocorreu exatamente o oposto. A acupuntura, a moxa, o diagnóstico pelo pulso
conduziram a novas percepções, novos métodos de tratamento e colocaram novos problemas, tanto para o médico ocidental quanto para o chinês. E os que não apreciam ver o Estado imiscuir-se em questões científicas devem lembrar-se do acentuado chauvinismo da ciência: para a maioria dos dentistas, a frase ‘liberdade
para a ciência’ significa liberdade para doutrinar não apenas os que resolveram acompanhá-los, mas também resto da sociedade.
Claro está que nem toda combinação de elementos científicos e não científicos alcança êxito (exemplo: Lysenko). Todavia, também a ciência nem sempre é bem sucedida. Se importa evitar as misturas porque às vezes falham, também a ciência pura (se é que ela existe) há de ser evitada. (No caso Lysenko, o condenável não
é a interterência do Estado, mas a interferência totalitária, que destrói o oponente em vez de permitir-lhe seguir o próprio caminho.) Combinando essa observação com a percepção de que a ciência não dispõe de método especial, chegamos à conclusão de que a separação entre ciência e não-ciência não é apenas artificial, mas perniciosa para o avanço do saber. Se desejamos compreender a natureza, se desejamos dominar a circunstância física, devemos recorrer a todas as idéias, todos os métodos e não apenas a reduzido número deles. Assim, a
asserção de que não há conhecimento fora da ciência — extra scientiam nulla salus — nada mais é que outro e convenientíssimo conto de fadas. As tribos primitivas faziam classificações de animais e plantas mais minuciosas que as da zoologia e da botânica de nosso tempo; conheciam remédios cuja eficácia espanta os médicos (e a indústria farmacêutica já aqui fareja uma nova fonte de lucros); dispunham de meios de influir sobre os membros do grupo que a ciência por longo tempo considerou inexistentes (vodu); resolviam difíceis problemas por meios ainda não perfeitamente entendidos (construção de pirâmides, viagem dos polinésios). Havia, na Idade da Pedra, uma astronomia altamente desenvolvida e internacionalmente conhecida, astronomia que era factualmente
adequada e emocionalmente satisfatória, dando solução a problemas tanto sociais quanto físicos (o mesmo não se
pode dizer a respeito da astronomia moderna) e que foi submetida a testes por meios muito simples e engenhosos
(observatórios de pedra na Inglaterra e no Pacifico Sul; escolas astronômicas na Polinésia). (Para tratamento mais aprofundado e referências mais precisas, no que toca a todas essas afirmativas, cf. meu Einjührung in die Naturphilosophie.)
Continua...
Espero que estejam se divertindo como eu.
![Smile :)](../forum/Smileys/default/icon_smile.gif)