Vossa Senhoria certamente sabe que livros-textos de Geologia eram extremamente raros no início do século e algumas instituições sequer os usavam. Então o fato de Wegener não ser citado naqueles poucos livros-textos da época não está relacionado somente a sua não-aceitação.
Quem está falando em início do século? Estamos falando do período que vai desde a década de 40 a meados da década de 60:
Algumas interessantes particularidades podem ser observadas na literatura escrita nas décadas de 1940 e 1950. Havia um sistema eficiente de policiamento contra a divulgação da teoria. São raros os livros de Geologia ou de divulgação científica que citam Wegener ou suas ideias. [...] Vários pesquisadores, observando estas curvas, viam ali uma prova concreta da deriva dos continentes, mas até meados da década de 1960 não podiam expressá-lo claramente para não ser estigmatizados, especialmente nos Estados Unidos.
Estamos 'andando em círculos' com esta discussão, em parte por causa da falta de definição do período histórico a ser analisado, em parte por causa da falta de conhecimento geológico do início do século XX e também do que é um livro-texto.
Wegener publicou a sua hipótese em 1912 e ela só veio a ser aceita, com modificações, a partir de meados dos anos 60, quando foram unificadas as bases daquilo que se chamaria de Teoria da Tectônica de Placas. Para os leitores que não tem ideia dos motivos que levaram à não-aceitação da Deriva Continental no início do século, eu faço agora uma pequena digressão sobre o tema.
Há mais de 3.000 anos os naturalistas do meio físico observaram e descreveram feições que sugeriam que a parte externa da Terra apresentava sinais de movimentos. O sismólogo chinês Cheng Heng, em 132 dC, por exemplo, verificou que, após um terremoto, camadas haviam sido elevadas em alguns centímetros no sudoeste da China. Desde então, dezenas de autores fizeram observações de tais movimentos, aumentando gradativamente o arcabouço de conhecimento da Geologia, tendo destaque os europeus a partir do século XIII.
De 1000 aC até 1950 dC a maioria dos naturalistas físicos (dos quais uma parte hoje se chama de
geólogos), aceitavam que os movimentos verticais eram os únicos ou, pelo menos, predominantes na crosta, porque as feições observáveis sugeriam isto, incluindo a presença de conchas marinhas em estratos de rochas sedimentares à vários quilômetros de altura acima do nível do mar e a elevação de camadas após terremotos. Além disto, o fenômeno geológico da
isostasia. que se notabiliza pela predominância do movimento vertical, já era bem conhecido desde o início do século XIX.
Enfim o conjunto de conhecimentos teóricos e observacionais até o final do primeiro meado do século XIX desembocou na síntese geotectônica conhecida como Teoria Geossinclinal, de autoria de James Dana (1873), com grande contribuição proveniente do estudo de bacias sedimentares feito por James Hall (1853), ambos geólogos estadunidenses.
Esta teoria preconizava, dito muito simplificadamente, que as orogenias (isto é, a formação de montanhas) ocorriam pelo empilhamento de sedimentos provenientes de uma área fonte (geoanticlinal) em uma bacia sedimentar alongada (geossinclinal), resultando em um claro esforço vertical, e quando tal acúmulo atingia um dado limite, havia um movimento horizontal como resposta, fazendo com que os sedimentos fossem comprimidos e dobrados. Enfim, a Teoria Geossinclinal conseguia explicar praticamente todas as feições de campo para as rochas do Fanerozóico observadas nos continentes até então, incluindo os cinturões de montanhas, os dobramentos e os falhamentos em rochas sedimentares e a sequência estratigráfica.
Foi neste contexto de predomínio absoluto dos “movimentos verticais” na Geologia, é que Wegener lançou a sua hipótese “horizontalista”, no qual ele magistralmente fez uma re-interpretação dos dados já existentes. Mas esta hipótese necessitava de um mecanismo físico plausível para ser aceita como válida.
E foi isto que a “condenou” ao ostracismo por um certo período, pois os dois mecanismos propostos por ele (força gerada pela rotação da Terra e a força de atrito das marés) foram refutados nas duas décadas seguintes ao lançamento de sua hipótese, com base em cálculos baseados em dados geofísicos, geológicos e cosmogônicos. As feições que seriam decisavamente favoráveis a Wegener jaziam no assoalho oceânico e somente vieram ao conhecimento da comunidade científica após o início do segundo meado do século XX.
Além do problema do mecanismo físico da Deriva Continental, dois outros aspectos contribuíram para deixar como marginal a hipótese de Wegener. O primeiro foi a herança nefasta do
argumento de autoridade, muito comum desde as primeiras escolas de pensadores mas que chegou ao seu ápice com a influência escolástica na criação das primeira universidades sob influência da Igreja Católica. O segundo foi o nacionalismo, onde as opiniões de geólogos locais eram mais “relevantes” que os de geólogos de outros países, como foi o caso de Dana nos EUA.
E quanto a livros de Geologia do início do século (ou até bem antes):
Não estou me referindo aos livros e publicações de Geologia no “estado-da-arte” e sim aos seus livros-textos, ou seja, aqueles em que há uma compilação do conhecimento geológico já amplamente aceito pela comunidade acadêmica e voltado para os não-iniciados ou para os estudantes novatos em ciências da Terra.
No final do século XIX, por exemplo, eram poucos os livros-textos que mencionavam a Teoria Geossinclinal porque ela era, então, motivo de discussão e ainda não havia sido aceita de forma ampla pela comunidade. Esta situação apenas se inverteu a partir do final da primeira década do século XX. Em certa medida, o mesmo ocorreu com a hipótese de Wegener.
a) http://ia600204.us.archive.org/8/items/contributionstog00leai/contributionstog00leai.pdf (1833)
Este não é um livro-texto de Geologia. Ele traz informações para os iniciados sobre as rochas do Terciário e seus conteúdos fósseis em alguns estados do centro-leste do EUA.
b) http://ia700302.us.archive.org/21/items/elementarygeolo07hitcgoog/elementarygeolo07hitcgoog.pdf (1862)
Este é um livro-texto de Geologia estadunidense típico do início do segundo meado do século XIX e que inclui alguns capítulos sobre Geotectônica, Mineralogia, Petrografia, Estratigrafia, Geologia Econômica, Descrições Litológicas da América do Norte e Paleontologia. Foi idealizado para estudantes de Geociências.
c) http://ia600305.us.archive.org/35/items/manualgeology00hauggoog/manualgeology00hauggoog.pdf (1866)
Este livro-texto de Geologia é mais completo que o anterior, com um bom capítulo (para a época) de litoquímica. É de origem Irlandesa.
d) http://ia600208.us.archive.org/17/items/geology00bonngoog/geology00bonngoog.pdf (1874)
Este interessante livro-texto é inglês, e mostra um bom capítulo de Geologia Estrutural.
e) http://ia600309.us.archive.org/32/items/geology00geikgoog/geology00geikgoog.pdf (1884)
Este é um livro-texto voltado para a popularização do conhecimento geológico, acessível para a uma camada pouco letrada em Ciências.
f) http://ia700501.us.archive.org/23/items/geology00shal/geology00shal.pdf (1889)
Este texto é um “guia de campo” para principiantes em Geologia. Não é um livro-texto usado em sala de aula.
g) http://ia600704.us.archive.org/13/items/introductiontoge00scot/introductiontoge00scot.pdf (1907)
Este livro-texto estadunidense é excelente, com conteúdo estruturado muito próximo aos modernos livros-textos de introdução à Geologia.
h) http://ia600200.us.archive.org/7/items/causalgeology00schwuoft/causalgeology00schwuoft.pdf (1910)
Outro livro-texto, também britânico, com estruturação de conteúdo semelhante ao anterior.
i) http://ia700204.us.archive.org/19/items/textbookofgeolog01grabuoft/textbookofgeolog01grabuoft.pdf (1920-1921)
Este livro-texto traz uma enorme quantidade de informações, resultado dos grandes avanços no conhecimento geológico do início do século XX.
j) http://ia600306.us.archive.org/31/items/historicalgeolog029841mbp/historicalgeolog029841mbp.pdf (1933)
Este não é um livro-texto de Geologia, mas um livro de Geologia Histórica, isto é, ele procura mostrar as mudanças da crosta ao longo do tempo geológico. Ele traz uma menção a Wegener na página 27, em que ele é apresentado como sendo o autor da hipótese dos “Continentes Flutuantes”, cinco anos depois de seus mecanismos de afastamento continental terem sido refutados.
k) http://ia700307.us.archive.org/25/items/sourcebookingeol031874mbp/sourcebookingeol031874mbp.pdf (1939)
Este livro é um compêndio de obras de diversos autores naturalistas, iniciando com Leonardo da Vinci. Não é um livro-texto no sentido moderno.
Então vamos aguardar mais um tempo, digamos uns 100 anos, para verificar se estas "evidências" se convertem em "provas" irrefutáveis.
Aí, se você ainda estiver vivo - o que duvido, mas sabe-se lá o avanço da medicina - vai dizer que as evidências estão "obsoletas". O fato é: os casos que citei são clássicos e terão que ser abordados em qualquer trabalho sobre o tema, seja daqui a 1000 ou 1 milhão de anos. O livro publicado esse ano pela Springer, por exemplo, diz sobre a médium Piper:
Mrs. Leonora Piper is probably the most studied medium and one of those who produced more evidence suggestive of an actual communication of a deceased personality. Literally, thousands of pages were published with reports of her séances and analysis performed by a wide range of high level scientists (Hodgson 1892, 1898 , Lodge 1909 ; Hyslop 1905a ; Sidgwick 1915 )
Em Geologia, os trabalhos clássicos são abordados apenas como retrospecto histórico pois estão ultrapassados, via de regra. O mesmo não se aplica para a parapsicologia, que precisa manter vivo um estudo de caso, que dificilmente obteria sucesso hoje.
E para que fique claro, a minha estimativa de 100 anos foi basicamente retórica e irônica, porque eu entendo que não haverá caso algum “comprovado” nos próximos 100 anos.
Sim, mas a controvérsia era enorme na época. Hoje, decorridos 152 anos da publicação da TE, ela é um amplo consenso e há abundantes evidências que a corroboram. O mesmo não pode ser dito da parapsicologia e de seus propalados fenômenos.
Com relação às abundantes evidências, para os casos que citei, pode sim.
Não. Não podem, pois são casos ocorridos há muito tempo. Se hoje fossem submetidos aos modernos controles e metodologias, eu duvido que eles sobreviveriam.
Quanto ao "amplo consenso", certamente não, mas isso também porque ainda há o "policiamento ideológico", medo de perder "status", tal qual o que ocorreu com relação às ideias de Wegener.
Não compare os dois casos, a não ser por um certo conservadorismo acadêmico em ambos. Wegener juntou muitas evidências e re-interpretou feições da Natureza, materiais, observáveis e palpáveis. Os alegados casos de parapsicologia não possuem evidências semelhantes, nem em quantidade e nem em qualidade.
Enfim, a história se repete. Só que no caso da Parapsicologia a tarefa é mais ingrata porque estamos lidando com o próprio ser humano.
Exatamente. As experiências pessoais dos pesquisados são carregadas de imprecisões e de subjetivismo, sendo quase impossíveis de serem falseadas.
Até para admitir que o morcego tinha um sentido além dos 5 habituais levou 150 anos, apesar das provas esmagadoras,
[...]
E qual é o sentido adicional que o morcego tem? Espero que você não esteja se referindo à ecolocalização, pois ele não é um sentido adicional e sim o refinamento da audição.
...imagina admitir sentidos como a telepatia ou clarividência no ser humano...
É impressionante como as pessoas querem buscar capacidades extraordinárias para firmar o ser humano como o ápice biológico terrestre. É uma faceta do antropocentrismo.
Sim, é riquíssimo de referências e quase todas em prol da Igreja Católica. Mas há vários livros que contestam esta "culpabilidade" de Galilei, entre os quais A Filosofia Medieval (DE Libera, 2004), no qual ele mostra que Galileu, sob influência de Nicolau Oresme, "arruinou a imagem do mundo fundada na separação radical do mundo sublunar e do mundo supralunar" (isto é, o mundo físico terrestre dos "céus teológicos").
Trinta e cinco crateras da Lua foram descobertas por cientistas e matemáticos jesuítas, dos quais receberam o nome. John L. Heilbron. da Universidade da Califórnia em Berkeley, comentou que “durante mais de seis séculos – desde a recuperação dos antigos conhecimentos astronômicos durante a Idade Média até o lluminismo – a Igreja Católica Romana deu mais ajuda financeira e suporte social ao estudo da astronomia do que qualquer outra instituição e, provavelmente, mais do que todas as outras juntas”.
Vossa Senhoria somente reforçou o que eu escrevi: A Igreja somente admitia a Ciência e a Filosofia desde que estas não ameaçassem a teologia.
Não é isso. É que Galileu queria interpretar as Escrituras à sua maneira, ou seja, ele queria ensinar a missa ao vigário. Interpretar - ou reinterpretar - as Escrituras era tarefa dos membros da Igreja. Esse foi o problema.
Vossa Senhoria parece ignorar a influência que a Igreja Católica exerceu no Ocidente, que começou de forma consistente a partir da chegada do cristianismo ao poder com Constantino I, por volta de 317 dC. Mas a partir do século VIII até meados do século XIX, o pensamento cristão foi avassalador, controlando toda a vida das principais sociedades européias e, posteriormente, também das americanas.
Se da Igreja não se pode negar o mérito de ter, por exemplo, criado as universidades e de ter apoiado vários ramos do saber dito científico; também não se pode negar o fato de que tal saber tinha de estar submisso aos pensamentos teológico e metafísico, que nada mais são do que o pensamento religioso re-organizado em uma roupagem mais “intelectual”. Quem ousasse não seguir os ditames da Igreja corria o risco de se tornar um pária social.
A influência e o controle da Igreja podem ser observados em duas das referências sobre livros-textos apresentados por Vossa Senhoria. Eis o primeiro:
[...]
Part III
Connection Between Geology and Natural and Revealed Religion
[...]
O autor passa dezesseis páginas tentando conciliar exegese bíblica e metafísica cristã com o conhecimento geológico, em um claro e patético ato de submissão aos ditames religiosos.
E eis o segundo autor, que já no prefácio mostra qual é o conhecimento mais importante para ele:
[...]
And finnaly allege of my view of Creation is essentially Anthropomorphic, and that I represent the Creator as having set about thje formation of the world, much in the fashion in which na intelligent shoemaker would make a pairo f shoes.
My apology for taking the Anthropomorphic, instead of Pithecomophic view of nature, is that I am a Man, and not a Ape, and therefore cannot help doing so; and I admit that my Idea of Creator is perhaps clumsy as the illustration supposes, and that I can no more imagine an abstract Creator à la Lamarck or à la Darwin...
[...]
Mais um exemplo conspícuo do pensamento
Sapientia Dei. Scientia Mundi que permeou e infestou a Ciência por mais de seis séculos, até que os grilhões fossem quebrados no alvorecer do século XX. Aliás é marcante o fato de que há uma queda abrupta na influência religiosa cristã na medida que se ruma para o século XX, ao ponto de todos os livros após 1889 não terem uma só citação sobre cristianismo, deus ou bíblia; o que mostra a necessária e salutar separação entre o saber científico e o saber mágico.