Bom texto do Ghiraldelli argumentando, contra o Pondé, as semelhanças entre o PT e o Partido Democrata, discutindo também políticas igualitaristas:
Pondé, não deu, meu Obama ganhou!
Obama eleito muda algo para o Brasil? Muda tudo! Primeiro, porque cada um de nós pode apostar que os ventos na maior democracia do mundo sopram de modo a manter equilibrada a balança entre conservadores e liberais, e isso tem um reflexo positivo imediato no ânimo de todos os liberais de todas as democracias do mundo. Segundo, porque a política de Obama é de geração de empregos e de liberdade, e isso tem um enorme peso nas decisões jurídicas que correm nos Estados Unidos, todas no sentido de privilegiar o Brasil como parceiro em vários setores, inclusive o da entrada individual de cada brasileiro naquele país, de um modo menos burocrático que o atual. Terceiro, porque é ótimo que parte de nossa população que tem simpatias por um governo onde liberdade e igualdade são mais bem equacionadas, tenham feedback positivo, deixando de lado modelos esquerdistas que, para falar em igualdade necessitam sempre advogar a supressão ou diminuição de liberdades individuais.
Esses três pontos são desconsiderados ou, melhor dizendo, execrados pela direita brasileira (e não comentados pela esquerda, claro!). Não falo da direta de rosto fascista. Não, nada disso. Falo da direita, digamos assim, filosófica. Aquela direita de rosto libertário, que gostaria de ser identificada antes com Nozick do que com qualquer figura que lembre Mussolini. Nozick é aquele que, contra um Proudhon, o homem do libertarismo à esquerda que talvez tenha dito que “a propriedade é um roubo”, defendeu algo como “o imposto estatal, mesmo à serviço dos pobres, é um roubo”. Muita gente pensa assim, nos Estados Unidos e no Brasil. Ou seja, muita gente entende que a proposta de John Rawls não é a melhor, ou seja, que liberais estão errados ao assumir que a desigualdade só é justificável se ela é feita de modo a favorecer os que se encontram em desvantagem econômica, sócio-cultural ou étnica. Pessoas que pensam assim, como Rawls, são liberais (no vocabulário não americanizado seríamos social-democratas lights?) e, desse modo, rejeitam a fórmula de Luiz Felipe Pondé, que iguala Obama a qualquer populista latino-americano.
Em artigo na Folha de S. Paulo (A inveja infantil), meu amigo Pondé acertou em cheio ao dizer que muitos de nós, no Brasil, reclamamos dos Estados Unidos antes por inveja e incompetência próprias que por qualquer outra coisa que se possa chamar de “imperialismo”. Mas penso que ele errou ao assimilar os Estados Unidos que ele tem na cabeça aos Estados Unidos de hoje. Agora, com a vitória de Obama, designado para mais um mandato, todos nós vamos ter de ver que o americano médio é muito mais aquilo que o filósofo John Dewey dizia que ele era, no começo do século XX: o americano hifenado, ou seja, o ítalo-americano, o nipo-americano, o afro-americano etc. Agora, mais do que nunca, o americano é também o latino-americano. A América continua sendo o imã do mundo e o melting pot está funcionando até melhor do que antes, quando já era uma solução ao menos para alguns grupos, não para todos.
Pondé não é daqueles conservadores que gostariam de “provar” que Obama “não é americano”. Muito menos Pondé é daqueles, penso eu, que não ridicularizaria os grupos que compram armas agora, com a vitória de Obama, para se defender “por conta própria” do “governo dos negros e da escória”. O que Pondé faz, que julgo errado, é assimilar a esquerda americana representada por Obama a grupos de intelectuais que seriam parecidos com a nossa esquerda, que ele e o PSDB chamam de populista.
Nossa política de esquerda não é totalmente populista, mas ela tem uma tradição populista na sua cola, difícil de ser superada. Em um país como o nosso, com demandas sociais enormes e ao mesmo tempo inflacionado no tempo (mas não em qualidade de propostas) por eleições, o populismo não pode mesmo ir embora. Tudo é feito visando o voto do ano seguinte e, então, tudo é feito em favor do pobre de maneira pobre. Tudo é feito às pressas para comprar o pobre e comandá-lo, e então nada tem o caráter social democrata, no campo econômico, ou o mesmo o caráter de ação afirmativa, no campo político, que não possua forte apelo populista. Temos de superar isso. É tarefa nossa irmos para uma estado de justiça social sem que ele tenha a eterna marca de Vargas (ou de Peron na Argentina etc etc.). Mas, no caso de Obama, as propostas de um estado regido pelos liberais ou, se quisermos usar a terminologia europeia, um estado social democrata, estão bem longe do populismo nosso.
Por que eu posso dizer isso? É simples e eu explico de modo rápido.
A diferença entre nós e os Estados Unidos, nesse quesito, é que a cultura americana é altamente meritocrática e o mercado americano muito competitivo. Desse modo, as medidas em favor de igualitarismo social jamais tiram daquela sociedade seu ímpeto de manter na linha do horizonte o modelo do sucesso individual pelos esforços próprios. O Self Made Man não é algo que saia da vista americana só porque uma pessoa optou por ser liberal ou mais à esquerda. Aquilo que a direita nossa acusa como sendo o populismo, ou seja, de que algo como o programa “bolsa família” só ajuda o pobre a ter mais filhos e não a trabalhar (o que é uma mentira estatística), é impensável nos Estados Unidos a não ser em comédias. Aquilo que a direita nossa diz sobre o estudante que entra na universidade por meio da política de cotas, que ele não “mereceu” ter entrado, é impensável nos Estados Unidos, porque estar entre os bolsistas, seja lá por qual via, é embrenhar-se num ritual terrível de prestação de contas e de performance. A sociedade americana é vacinada em termos de ideário contra o populismo. A nossa não é. Isso não significa que Pondé e o PSDB, no Brasil, estariam certos ao atacar a nossa política de justiça social. Não, também aqui eu avalio que estão errados – e por isso o PSDB perde eleições sucessivamente. Mas Pondé comete um equívoco específico, que é o de pensar que o Partido Democrata americano funciona no esquema do PT brasileiro, quando este vai para as periferias entregar benefício de modo tão igual ao que o sistema de coronelato promovia, e que Vargas fez crescer, ganhando um novo arranjo institucional.
A competição americana não é eliminada por políticas igualitaristas americanas. Seria uma loucura dizer que Dewey (nos anos vinte) e Rawls (nos anos setenta), bem como Rorty (após os anos 80), foram filósofos americanos promotores de uma filosofia cujo pé político estaria no regime de “fim do mérito” e desdém ao “individualismo”. Melhorando o emprego e a vida do pobre (um pobre que ganha mais que a nossa “nova classe média”), Obama vai fazer o mercado americano crescer e, então, retomar o que já vem sendo feito, que é a busca de uma economia que possa consumir o que consumia, o quase isso. Fazendo assim, os Estados Unidos aumentarão o emprego em todo o resto do mundo. Internamente, isso não é dizer para o pobre: “fique em casa que o governo o sustenta”. Isso é o que pensa a direita a respeito de políticas de justiça social. Mas, ao contrário, sabemos bem – agora até por experiência própria – que isso amplia a competição e o mérito. Obama nada tem de populista ou de alguém que poderia ser colocado junto dos “idiotas”, “fracotes” e “ressentidos” que Pondé adora encontrar – e encontra mesmo, com razão – na esquerda brasileira.
Vida longa a Obama. Sucesso presidente Obama.
Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.