A Rússia, entretanto, tem em seu currículo muitos reveses militares. O país perdeu a Guerra da Criméia de 1853-1856, o que “baixou a bola” dos russos em sua confiança “pós-napoleão” e permitiu a emancipação tardia dos servos. A Rússia também perdeu a Guerra Russo-Japonesa de 1904-5, e a Primeira Guerra Mundial, uma derrota que contribuiu com o colapso do regime imperial, e “perdeu” a Guerra Fria, uma derrota que levou ao colapso do poder soviético estabelecido em 1917.
Ao longo do tempo, o Kremlin tem sido assombrado por seu relativo atraso nas esferas militar e industrial, o que vez ou outra levou à defesa apaixonada de ciclos de desenvolvimento econômico enquanto solução final para os problemas russos. A geopolítica, entretanto, nunca foi deixada de lado, e como vimos, foi Putin quem a colocou novamente no topo das prioridades russas.
Com a dissolução da União Soviética em 1991, Moscou perdeu cerca de dois milhões de quilômetros quadrados de território, o que equivale a toda a União Europeia (1,7 milhões de milhas quadradas) ou a Índia (1,3 milhão). Além disso, a Rússia perdeu a parte da Alemanha que conquistou na Segunda Guerra Mundial e seus outros satélites na Europa Oriental, incluindo os Balcãs, a ponto de atualmente todos estes países estarem engajados em alianças militares ocidentais. Outras antigas possessões soviéticas, como o Azerbaijão, a Geórgia e a Ucrânia, cooperam estreitamente com o Ocidente em matéria de segurança. Apesar da anexação da Criméia, da guerra no leste da Ucrânia e da ocupação da Abcássia e da Ossétia do Sul, a Rússia ainda não “recuperou” sequer as fronteiras que tinha à época de Catarina, a Grande. Ademais, o país possui apenas umas poucas bases militares na Ásia Central.
O que pretendemos frisar, em termos concretos, é que a Rússia ainda é o maior país do mundo, mas é muito menor do que já foi e possui hoje um status reduzido em termos de uma potência global. Não é à toa, portanto, que Putin advoga a missão de restabelecer para a Federação Russa os ativos políticos e geoestratégicos da superpotência soviética.
O PIB russo atingiu seu pico em 2013, em pouco mais de US$ 2 trilhões. Em 2016 esse valor caiu para cerca de US $ 1,2 trilhão, devido à queda dos preços do petróleo e às taxas de câmbio do rublo. Em termos de paridade de poder de compra o declínio da economia russa não é tão acentuado, mas ainda assim em termos comparativos denominados em dólares a economia da Rússia equivale a apenas 1,5% do PIB global e equivale a apenas 1/15 do tamanho da economia estadunidense.
Não bastasse a economia em crise, o ambiente geopolítico tem se mostrado desafiador para a Rússia, com a supremacia global dos EUA e o crescimento do poder político, econômico e militar da China. Além disso, a propagação do islamismo político radical suscita preocupações, uma vez que cerca de 15% dos 142 milhões de cidadãos russos são muçulmanos e algumas das regiões predominantemente muçulmanas do país estão fervilhando. Desse modo, a situação é crítica para uma Rússia que se vê como tendo a tarefa vital de se igualar ao poder ocidental de modo a competir com a China e Estados Unidos na reivindicação da direção “trilateral” dos rumos do planeta.
A defesa e sensação de que o país possui um lugar sagrado e uma missão especial de contrapeso moral ao ocidente contribuiu para o fracasso das alianças entre a Rússia e os organismos internacionais de modo tal que foi negado à Rússia uma posição de destaque. Como frisamos acima, isso leva o povo e os líderes russos a terem um marcante “ressentimento” contra o Ocidente, cujas ações são vistas como anti-russas e sentidas como verdadeiros ataques ao “orgulho” da “nação russa” etc. Assim, a alienação psicológica fundada na histeria de “missões especiais” do país face ao mundo se soma a um forte nacionalismo e à divergência institucional impulsionada por disputas econômicas, resultando num caldo político e ideológico conservador. Como resultado, os governos russos têm oscilado entre a procura de laços mais estreitos com algumas economias ocidentais e a fúria desenfreada contra os “inimigos”, legitimando, inclusive, o expansionismo russo enquanto modo de “defesa nacional”. Stephen Kotkin, em artigo publicado em junho de 2016 na Foreign Affairs, intitulado “A perpétua geopolítica da Rússia” (disponível aqui), faz uma boa reflexão acerca do tema:
Hoje, também, os países menores nas fronteiras da Rússia são vistos menos como potenciais amigos do que como potenciais cabeças de guerra para os inimigos. De fato, esse sentimento foi fortalecido pelo colapso soviético. Ao contrário de Stalin, Putin não reconhece a existência de uma nação ucraniana separada de uma russa. Mas, como Stalin, ele vê todos os Estados fronteiriços nominalmente independentes, incluindo agora a Ucrânia, como armas nas mãos de potências ocidentais com a intenção de brandi-las contra a Rússia. Um motor final da política externa russa tem sido a busca perene do país por um Estado forte. Em um mundo perigoso, com poucas defesas naturais, pensam, a única garantia para a segurança da Rússia é um poderoso Estado disposto e capaz de agir agressivamente em seus próprios interesses. Um Estado forte também tem sido visto como o garante da ordem doméstica, e o resultado tem sido uma tendência percebida no século XIX pelo historiador Vasily Klyuchevsky enquanto tendência milenar da história da Rússia: “O Estado fica gordo e as pessoas magras”. Paradoxalmente, porém, os esforços para construir um Estado forte levaram invariavelmente a instituições subvertidas e a um regime personalista. […] O personalismo desenfreado tende a tornar opaca e potencialmente caprichosa a tomada de decisões sobre a grande estratégia russa, pois acaba por confundir os interesses do Estado com as fortunas políticas de uma pessoa. O ressentimento anti-ocidental e o patriotismo russo parecem particularmente pronunciados na personalidade e nas experiências de vida de Putin, mas um governo russo diferente não dirigido por antigos membros da KGB ainda seria confrontado com o desafio da fraqueza em relação ao Ocidente e o desejo de papel especial no mundo. Em outras palavras, a orientação da política externa da Rússia é tanto uma condição quanto uma escolha.
Historicamente, o Ocidente desprezou algumas das aberturas russas para o diálogo e parcerias diplomáticas etc., mas frisar esse ponto é irrealista na medida em que minimiza a dinâmica interna da política e sociedade russas. Ou seja, Washington e a União Europeia exploraram o enfraquecimento da Rússia, mas a posição de Putin e da política externa do Estado Russo devem ser vistas menos como uma reação a movimentos externos do que como coerentes com um padrão histórico de raízes profundas, que se alimenta de fatores internos. O que impediu a Rússia pós-soviética de se juntar à Europa como apenas mais um país numa ampla aliança ou de formar uma parceria subordinada com os Estados Unidos foi o permanente orgulho “do país” e seu senso de missão especial – ambos enquanto expressão da ideologia hegemônica na Rússia, e não como teoria implantada pela mão de líderes megalomaníacos. A Rússia possui uma tendência estatista, mas tal tendência está presente em outras potências, como a China e mesmo a França ou Alemanha. O que lhe confere particularidade é a permanente defasagem entre suas aspirações e as capacidades reais do país, e a História mostra que esse quadro é perigoso.
A Rússia tem razão, portanto, quando acusa que o acordo pós-guerra fria foi injusto e desequilibrado, mas isso não se deu por conta de um sentimento internacional anti-russo e uma “traição” perpetrada por estrangeiros interessados em humilhar o país. O desequilíbrio se deu como resultado prático inevitável da vitória do Ocidente na disputa com a União Soviética. A retórica segundo a qual a Guerra fria não teve vencedores apenas joga água no moinho do rancor e ressentimento dos nacionalistas russos, impedindo que o país acerte suas contas com o passado e olhe adiante sem o apego ao que se imaginava ser o destino inevitável da URSS. O pior de tudo, para quem observa essas questões de um ponto de vista anticapitalista, talvez resida no fato de que o resgate ideológico da Rússia de hoje com respeito aos valores da URSS não toca nos pontos progressistas daquela fracassada experiência, e sim nos pontos mais nefastos, do nacional-bolchevismo, metamorfoseados: a ideologia de que o país possui uma missão especial, calibrada de modo a justificar tanto o imperialismo quanto o nacionalismo russos.
Qual a solução possível, se os próprios trabalhadores não reagem de modo progressista? Stephen Kotkin pontua uma das alternativas que a Rússia poderia seguir:
O país poderia tentar seguir algo como a trajetória da França, que mantém um sentido persistente de excepcionalismo, mas fez as pazes com a perda de seu império externo e sua missão especial no mundo, recalibrando sua ideia nacional para atender seu papel reduzido e unindo-se com poderes menores e países pequenos na Europa em termos de igualdade. Se uma Rússia transformada seria aceita e combinada com a Europa é uma questão aberta, mas o início do processo precisaria ter uma liderança russa capaz de fazer com que seu público aceitasse uma contenção permanente e concordasse em embarcar em uma árdua reestruturação interna. As pessoas de fora devem ser humildes ao contemplar o quão desagradável seria esse ajuste, especialmente sem uma derrota bélica e ocupação militar. A França e o Reino Unido demoraram décadas a renunciar a seus próprios sentidos de excepcionalismo e responsabilidade global, e alguns argumentariam que suas elites ainda não o fizeram plenamente. Mas eles têm PIBs elevados, universidades ranqueadas, poder financeiro e línguas globais. A Rússia não tem nada disso. Ela possui um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, bem como um dos dois arsenais mundiais do dia do juízo final e uma alta capacidade de colocar o mundo numa guerra cibernética. Além disso sua geografia única lhe dá uma espécie de alcance global. No entanto, a Rússia é a prova viva de que o poder rígido é frágil sem as outras dimensões que envolvem o status de uma grande potência. Por mais que a Rússia insista em ser reconhecida como igual aos Estados Unidos, à União Europeia, ou mesmo à China, ela não é, e não tem perspectiva de se tornar a curto ou médio prazo.
O autor explica que a Rússia tem uma longa presença no Pacífico, mas não é uma potência asiática, tendo no máximo certa predominância na região, já que nem se compara seu poder bélico com os dos antigos Estados soviéticos, hoje soberanos, mas a supremacia militar regional e certa supremacia econômica na Eurásia não conferem ao país o status de superpotência. A União Econômica Eurasiática, por exemplo, até agora não obteve o êxito que desejava, e mesmo que o fizesse, as capacidades econômicas combinadas dos membros da aliança ainda seriam relativamente pequenas. Economicamente a Rússia é, portanto, um grande mercado, e isso às vezes se mostra algo atraente a ponto dos países vizinhos aceitarem o jogo dos riscos e recompensas no comércio bilateral com o país. A Estónia, a Geórgia e a Ucrânia, por exemplo, em geral só fazem negócios com a Rússia se houver uma “âncora” no Ocidente. Outros Estados mais economicamente dependentes do país de Putin, como a Bielorrússia e o Cazaquistão, veem riscos na parceria com um país que não possui um modelo de desenvolvimento sustentado e, pior, depois do caso da Criméia, poderia cobiçar seus territórios. A “parceria estratégica” com a China existe, mas até aqui não resultou em investimentos chineses suficientemente grandes para compensar as sanções ocidentais, sem falar que a China tem sua própria agenda e está forjando sua própria Grande Eurásia, do Mar da China Meridional até a Ásia e a Europa, às vezes às custas e às vezes com a cooperação da Rússia. Moscou tem relações externas tensas com quase todos os seus vizinhos e mesmo com seus maiores parceiros comerciais, como por exemplo a Turquia e a Alemanha. Esta última, a mais importante parceira da política externa da Rússia e um de seus parceiros econômicos mais importantes, precisou dar um “basta” e apoiou sanções contra a Rússia mesmo com isso tendo um custo para sua própria situação interna.
Analistas críticos das movimentações políticas e militares da Rússia têm defendido em periódicos de circulação europeia e estadunidense que a melhor maneira de fazer Putin “mudar de rumo” seria reverter a dinâmica política de sustentação de seu regime, transformando sua política externa, que hoje é a fonte mais poderosa da legitimidade e apoio popular do Kremlin, numa fonte de “dúvida, embaraço, humilhação e remorso”. Trata-se de um conselho bastante perigoso, afinal é justamente esta a gramática que alimenta o nacionalismo russo, e nada pode garantir que uma movimentação ocidental que leve a Rússia à “humilhação e remorso” não resultaria na mobilização popular em massa do povo russo para guerrear a guerra que o governo indicar como sendo “necessária”.
Tal como noutros casos nacionais, a história da Rússia é particularmente sugestiva no que diz respeito aos perigos dos grandes passos “patrióticos”. Neste país de proporções continentais algumas das mudanças de regime mais bruscas se deram na sequência de falhas na política externa e retrocessos militares. A revolução liberal a partir de cima foi lançada por Alexandre II depois da derrota na Guerra da Criméia (1853-1856). A revolução de 1905 explodiu na esteira da desastrosa Guerra Russo-Japonesa. A catastrófica campanha russa na Primeira Guerra Mundial contribuiu para que a revolução bolchevique de 1917 triunfasse. Nikita Khrushchev foi expulso em 1964 após o recuo da Crise de Mísseis de Cuba, em 1962. A perestroika de Gorbachev foi impulsionada, em grande medida, pelo atoladouro da guerra no Afeganistão (1979-88). Putin, no entanto, conhece a história de seu país. Ele é o maior estadista vivo e não está nem perto de ser um autocrata maluco que acredita na própria invencibilidade. Nesse sentido pode-se esperar que ele recue onde sentir a possibilidade de derrota ou de vitórias de Pirro com baixas acima do que os russos estão dispostos a tolerar, mas Putin, o estadista, é apenas o operador que maneja com certa coerência e habilidade os interesses do Estado russo, que num tecido social dominado por um perigoso nacionalismo se confundem com os interesses do “povo russo”, essa categoria que obnubila os matizes de classe e traz sempre consigo a semente fascista. Ora, uma vez fundidos os interesses do povo e do Estado em uma sociedade amarrada por uma espécie de “patriotismo militarizado”, pode-se prever os rumos da revolta do povo russo em face do que seria sentido como uma nova “humilhação” e ataque contra a pátria?
A prova de que o “conselho” dos ocidentais é demasiado perigoso já se coloca à mostra se observamos a forma como os russos têm reagido a certas notícias e fatos. Não importa o número de denúncias dos crimes de guerra na Ucrânia ou Síria, os custos políticos internos da política externa de Putin têm sido, até agora, nulos. Isso se deve não apenas ao fato de que Putin convenceu a população russa da necessidade de derrotar o Estado Islâmico (ISIS) e de que o principal objetivo do envolvimento russo na Síria é a restauração do governo legítimo de Assad, mas também ao fato de que a esquerda russa está desmantelada, ao ponto de que atos e manifestações contra as medidas do governo precisam ser autorizadas e militantes com frequência são perseguidos, presos, expulsos do país ou eliminados.
Do ponto de vista militar, encontramos nalguns artigos de Foreign Affairs ideias interessantes. A intervenção russa na Síria, por exemplo, poderia ser posta em cheque se se pressionasse o governo russo a escolher entre aumentar o apoio russo a Assad, colocando, portanto, mais russos na linha de frente, arriscando suas vidas e com isso levando a desgastes políticos domésticos, ou a reduzir tal apoio, se distanciando de Damasco sem grandes estardalhaços. O ex-conselheiro de Obama no Oriente Médio, Dennis Ross, defendeu no The New York Times que isso poderia ocorrer se os EUA usassem drones e mísseis de cruzeiro para acertar campos de aviação, bases e posições de artilharia dos militares sírios onde não há tropas russas presentes. Também na Ucrânia o Kremlin não vai parar a guerra a menos que os custos políticos domésticos comecem a aumentar significativamente, o que dificilmente vai ocorrer, já que é absurda a superioridade militar e de hacking da Rússia em face das forças de Kiev. Tal como no caso sírio, analistas ocidentais sugerem ações que forcem a Rússia a fazer a escolha entre aumentar o contingente militar e os riscos de desgaste interno ou acelerar as negociações de paz que restabeleceriam a soberania ucraniana sobre suas fronteiras. Para isso os EUA deveriam enviar armas defensivas anti-tanque e antiaéreas para a Ucrânia e radares sofisticados capazes de identificar as posições russas de artilharia e tanques, de modo a reforçar a capacidade de defesa de Kiev tanto no campo de batalha quanto na esfera das comunicações. Ao que tudo indica esta seria a posição de uma Hillary Clinton Presidente, e não à toa os russos comemoraram desavergonhadamente a vitória de Trump, havendo indícios, inclusive, de interferência russa no processo eleitoral estadunidense.
Os analistas que sugerem tais medidas não são inocentes a ponto de ignorar os riscos de que tais medidas poderiam agravar as relações dos EUA com a Rússia e até provocar respostas à altura. No entanto, defendem que a conjuntura impõe a escolha entre confrontar Putin agora ou vê-lo encorajado a desestabilizar ou mesmo invadir diretamente um Estado membro no flanco oriental da OTAN. Em síntese, se a atual combinação de sanções econômicas moderadas e pressão diplomática não tem sido suficiente para mudar a estratégia de política externa de Putin resta constranger seu apoio interno aumentando os custos de sua política externa. Ou seja, a tarefa fundamental dos EUA na relação com a Rússia seria forçar Putin a mudar os fundamentos da legitimidade do seu regime do externo para o interno: desbaratar uma política externa cada vez mais perigosa em pró de uma política interna voltada para o crescimento econômico russo através de reformas institucionais que iriam melhorar o clima de investimento e diminuir as tensões com os Estados Unidos. Como vimos na parte segunda desta séria, essa opção, entretanto, não está dentre as preferidas nem de Putin, nem da elite russa e nem mesmo dos trabalhadores russos.
Stephen Kotkin, no trabalho supracitado, nos fornece uma visão mais complexa e que nos parece bastante realista acerca das opções “ocidentais” face ao desafio posto pela política externa russa atual:
[…] o que representa uma ameaça existencial para a Rússia não é a OTAN ou o Ocidente, mas o próprio regime russo. Putin ajudou a resgatar o Estado russo, mas o colocou em uma trajetória de estagnação e possivelmente fracasso. O presidente e sua camarilha têm repetidamente anunciado a extrema necessidade de priorizar o desenvolvimento econômico e humano, mas eles se esquivam da profunda reestruturação interna necessária para fazer isso acontecer, em vez de derramar recursos na modernização militar. O que a Rússia realmente precisa para competir eficazmente e garantir um lugar estável na ordem internacional é um governo transparente, competente e responsável; um verdadeiro serviço público; um Parlamento de verdade; um poder judicial profissional e imparcial; mídia livre e profissional; e uma repressão vigorosa e não-política sobre a corrupção. A liderança atual da Rússia continua a fazer com que o país carregue os fardos de uma política externa truculenta e independente que está além dos meios do país e produziu poucos resultados positivos. […] Quais são as implicações disso para a política ocidental? Como Washington deve gerenciar as relações com um país com armas nucleares e ciber armamento cujos governantes buscam restaurar sua dominação perdida? Neste contexto, é útil reconhecer que nunca houve um período de boas relações sustentadas entre a Rússia e os Estados Unidos. […] Isso não se deveu a mal-entendidos, má comunicação ou sentimentos feridos, mas sim a divergentes valores fundamentais e interesses de Estado tal como definidos por cada país. Para a Rússia, o maior valor é o Estado; para os Estados Unidos, é a liberdade individual, a propriedade privada e os direitos humanos, geralmente estabelecidos em oposição ao Estado. Portanto, as expectativas devem ser mantidas em cheque. Igualmente importante, os Estados Unidos não devem exagerar a ameaça russa nem minimizar suas próprias vantagens. A Rússia hoje não é um poder revolucionário que ameaça derrubar a ordem internacional. Moscou opera dentro de uma escola familiar de relações internacionais entre potências, que prioriza a margem de manobra sobre a moralidade e assume a inevitabilidade do conflito, a supremacia do poder duro e o cinismo nas motivações dos outros. Em certos lugares e em certas questões, a Rússia tem a capacidade de frustrar os interesses dos EUA, mas nem de longe isso chega ao ponto da ameaça representada pela União Soviética, portanto não há necessidade de responder a ela com uma nova Guerra Fria. O verdadeiro desafio hoje se resume ao desejo de Moscou de reconhecimento ocidental de uma esfera de influência russa no antigo espaço soviético (com exceção dos países bálticos). Este é o preço para chegar a um acerto com Putin – algo que os defensores de tais acomodações nem sempre reconhecem com franqueza. Foi este ponto crítico que impediu a cooperação duradoura depois do 11 de setembro, e continua a ser uma concessão que o Ocidente nunca deveria conceder. No entanto, o Ocidente não é capaz de proteger a integridade territorial dos Estados dentro da esfera de influência desejada por Moscou. E blefar não funcionará. Então o que deve ser feito? Alguns invocam George Kennan e clamam por um revival da contenção, argumentando que a pressão externa manterá a Rússia na baía até que seu regime autoritário seja liberto ou colapse. […] Adotar esse pensamento agora implicaria manter ou intensificar as sanções em resposta às violações russas do direito internacional, fortalecer politicamente as alianças ocidentais e melhorar a prontidão militar da Otan. Mas uma nova contenção poderia tornar-se uma armadilha, elevando a Rússia ao status de superpotência rival, ajudando a Rússia a chegar onde ela pretendia. Mais uma vez, a melhor solução é ser paciente. Não é claro por quanto tempo a Rússia pode jogar a sua mão fraca em oposição aos Estados Unidos e à UE, assustando seus vizinhos, alienando seus parceiros comerciais mais importantes, devastando seu próprio clima de negócios etc. Em algum momento, os sensores serão colocados para algum tipo de reaproximação, assim como a fadiga das sanções acabará por entrar em cena, criando a possibilidade de algum tipo de acordo. Dito isto, também é possível que o atual impasse não termine em breve, uma vez que a busca da Rússia por uma esfera de influência euro-asiática é uma questão de identidade nacional que não é facilmente suscetível a cálculos de custo-benefício materiais. O truque será manter uma linha firme quando necessário – como recusar reconhecer uma esfera russa privilegiada, mesmo quando Moscou é capaz de decretar uma militarmente –, oferecendo negociações somente a partir de uma posição de força e evitando tropeçar em confrontos desnecessários e contraproducentes na maioria dos outros problemas. Algum dia, os líderes da Rússia podem chegar a um acordo com os limites flagrantes de se levantar para o Ocidente e procurar dominar a Eurásia. Até então, a Rússia não será mais uma cruzada necessária a ser conquistada, mas um problema a ser gerenciado.
As ideias destes analistas são interessantes e me parece que são em grande medida realistas, no estreito ângulo de visão que centra suas atenções nas relações internacionais entre países e chefes de Estado (com suas cúpulas de dirigentes). Ora, me parece que o ponto fulcral para qualquer projeção dos rumos futuros da Rússia, seja em termos da “escalada conservadora”, da economia e da geopolítica imperialista, reside antes nas relações sociais internas ao país, mais precisamente, à luta de classes na Rússia de Putin, do que propriamente nas questões de política externa etc. Ora, o que me deixou particularmente horrorizado, nestes 100 anos da Revolução de 1917, foi o fato de que procurei as forças sociais progressistas, que estão enfrentando dentro da Rússia, de um ponto de vista anticapitalista, tais tendências nefastas. E não encontrei.
Fontes
Sobre a Rússia ser ou não uma superpotência, há abundante material, inclusive em português. Foi-nos particularmente útil o citado artigo de Jonathan Adelman, “Pensando no impensável: a Rússia re-emergiu como uma potência” e o ótimo trabalho de Stephen Kotkin, “A perpétua geopolítica da Rússia”. Contra a ideia de uma “nova guerra fria” ver o texto de Tomasz Konicz “Farinha do mesmo saco. Nova Guerra Fria uma ova: Rússia e China são parte integrante do capital mundial”. Além destes trabalhos me baseei em informações de artigos citados nas partes anteriores desta série.
http://passapalavra.info/2017/04/111607