Desisto. Faço um post gigante, com números, argumentos embasados em evidências, vídeos. Recebo de volta Um argumento de Facebook, que ignora tudo o que eu postei, me chamando de comunista e comparando racismo com preconceito a baixinhos. Não vou perder meu tempo.
Pode desistir porque sua análise foi muito boa e não é necessário acrescentar mais nada.
Será que não? Um texto para pensar então:
Por José Maria e Silva. Mestre em Sociologia.
"As pesquisas indicam que a perseguição racial no Brasil é percebida como um fenômeno bastante minoritário, ainda que algumas de suas manifestações sejam intensas. O exemplo notório de uma dessas manifestações é a seleção, por agentes policiais, de jovens de pele mais escura como suspeitos prévios de atos ilícitos." Essa afirmação é de Demétrio Magnoli no momento mais infeliz das 400 páginas de Uma Gota de Sangue. Era de se esperar que um autor tão preparado não repetisse esse preconceito tacanho contra os policiais, acusando-os explicitamente de "perseguição racial". Por acaso, nossa polícia é constituída de gendarmes teutônicos que fazem do negro o seu judeu predileto?
Não passa pela cabeça da elite universitária que o trabalho da polícia é muito mais dinâmico do que sua burocrática atividade acadêmica e que um policial, em sua ronda noturna, elege o suspeito não por conta de um único fator, mas com base numa série de fatores, no mais das vezes, corretos. A suspeição não está na cor, mas no olhar, nos gestos, na linguagem, no andado, nas companhias, no local, no horário, enfim, num conjunto de sinais que o policial experiente sabe perceber e analisar com mais argúcia do que a de muitos semióticos das universidades.
Sem contar que a polícia acompanha a sociedade e o que ontem era fator de suspeição hoje não é mais. Na minha infância, todo e qualquer careca, se não fosse vestibulando ou recruta, tendia a ser egresso da cadeia, e a polícia – cumprindo seu dever – tratava-o como suspeito. A mesma coisa ocorria com os tatuados. Hoje, tatuagem e cabeça raspada – dois bárbaros costumes que nasceram nas penitenciárias – ganharam cabeça e corpo da população, e a polícia, obviamente, já não sai revistando todo tatuado e careca.
A acusação leviana de que a polícia é racista torna os intelectuais universitários ainda mais responsáveis pela tragédia do Rio de Janeiro, que não decorre da falta de Estado nas favelas, como dizem os acadêmicos, mas da falta de lei nas penitenciárias. O poder de fogo do tráfico só é possível porque os próprios presos controlam todas as penitenciárias do país. Nelas, sim, o Estado não entra. A partir das cadeias, inclusive as de segurança máxima, os presos deflagram as mais variadas ações criminosas, desde assassinatos por encomenda até a prostituição de meninas, passando por guerras urbanas como a do Rio de Janeiro, cuja topografia peculiar ajuda suas operações.
O outro lado do AfroReggae
A leniência do Estado com os bandidos foi reforçada pelo mito criado nas academias de que a polícia persegue os mais escuros. Grande parte das benesses concedidas pelo Estado aos presidiários decorre da tese de que eles foram presos por serem negros e pobres. No Rio de Janeiro, há toda uma cultura que reforça esse mito. Prova disso é que o abate do helicóptero pelos bandidos foi facilmente eclipsado pela morte de Evandro João da Silva, o líder do AfroReggae. Antes mesmo de qualquer investigação, já se tinha o culpado por essa morte – a polícia. Aliás, se há um suspeito de todos os crimes no Brasil, inclusive daqueles crimes que não comete, esse suspeito chama-se "polícia".
Diante de qualquer cadáver, o investigador deve fazer a pergunta básica: "A quem interessa o crime?" No caso de Evandro João da Silva, a resposta é óbvia: sua morte interessa aos bandidos. Justamente quando a ação mais cinematográfica dos traficantes ameaçava reverter-se contra eles (uma vez que a queda do helicóptero poderia levar a nação a exigir uma represália à altura), o líder do Afro-Reggae foi morto com a suposta cumplicidade de policiais, que, antes de qualquer investigação, foram tratados pelo próprio governador Sérgio Cabral como cúmplices do assassinato.
O morto era amigo da bandidagem dos morros, prova disso é que andava sozinho, altas horas da madrugada, em plena guerra do tráfico. Deve ter reagido por achar impensável ser morto por pessoas que provavelmente o conheciam. (Aliás, a imprensa, que condena apressadamente a reação de qualquer vítima, não condenou a dele.) Qualquer polícia do mundo, na primeira entrevista à imprensa sobre o caso, aventaria a hipótese de que o crime pode ter sido encomendado pelos chefões do tráfico para acuar o Estado. Mesmo se ficasse comprovada a participação dos policiais, essa hipótese não poderia ser descartada, uma vez que também há policiais na folha de pagamento dos traficantes.
Mas o que jamais poderia ocorrer acabou ocorrendo -- o crime dos bandidos contra a população do Rio foi totalmente eclipsado pelo crime dos policiais contra um membro do AfroReggae. E nem há certeza de que eles realmente cometeram o crime de omissão de socorro de que estão sendo acusados. Eles podem não ter visto mesmo o corpo agonizante de Evandro ou podem tê-lo confundido com um morador de rua bêbado. Talvez os policiais estejam falando parcialmente a verdade, omitindo apenas o fato de que roubaram os bandidos. Mas esse é um crime quase normal, levando em conta que o Rio é uma terra sem lei, onde policial bom é policial morto.
Senão vejamos. Em 7 de maio de 2006, a Folha de S.Paulo publicou reportagem sobre a visita que 21 membros do Comitê de Jovens Empreendedores da Fiesp fizeram a favelas do Rio. A convite de José Júnior, líder do AfroReggae, eles visitaram alguns dos famosos redutos do narcotráfico – Vigário Geral, Cantagalo, Complexo do Alemão e Parada de Lucas. No morro do Cantagalo, foram recebidos num prédio de 40 andares, onde funciona uma espécie de "ongolândia", segundo Laura Capriglione, autora da reportagem. Ela observou que os moradores da favela estão tão acostumados com celebridades subindo e descendo o morro que nem ligaram para os jovens da Fiesp.
"Os visitantes notaram a profusão de tênis lindos, novíssimos e custando até R$ 700 nos pés dos favelados, que também tinham `bombetas´ (bonés) e camisas Nike. Enquanto isso, o diretor do Comitê de Jovens Empreendedores da Fiesp, Ronaldo Koloszuk, tinha um mero All Star de R$ 54 nos pés", contou a repórter. Depois, os jovens da Fiesp foram levados para o Complexo do Alemão, sendo recebidos por crianças: "Meninos risonhos fazem gestos estranhos com os dedos da mão direita. Parece um `V´ da vitória que cai de lado e volta a ficar de pé." Um cicerone esclareceu aos visitantes: era o "CV" de Comando Vermelho.
Mas o pior vem a seguir: "Os paulistas descem das vans. Um deles vê uma fila bem organizada e, paulista que é, entra nela, imaginando ser a fila para entrar no baile funk que todos sabiam ser o destino do passeio. Logo, nota que entrara na fila de uma barraca de cocaína, onde garotos esticavam caprichosamente carreiras de pó, para consumo de narizes vorazes. `Proibido fotografar´, avisa o produtor JB, do AfroReggae, ele mesmo ex-traficante, vinculado ao CV."
E tem mais: "A passeatinha de paulistas vai andando pela rua principal e trombando com dezenas de favelados que despejam – sem economizar – cocaína em cima de folhas de papel, depois enroladas como canudos que serão vertidos diretamente nas narinas dos usuários. Droga demais. O cigarro de maconha normal, lá, não pode ser apelidado de `fininho´. Com diâmetro de 1,5 cm e comprimento de 10 cm, a brasa grande brilhando na escuridão, parece um charuto".
O passeio dos jovens da Fiesp nos morros controlados pelo narcotráfico teve até um carro desfilando devagar, com oito fuzis apontados em suas janelas abertas. "Os traficantes queriam ser vistos", conta a repórter. Tudo isso, é bom lembrar, sob a coordenação do AfroReggae, criado em 1993 com o objetivo de valorizar e divulgar a cultura negra, segundo informa a página do grupo na internet. Se esse cenário descrito pela repórter fosse de fato "cultura negra", Demétrio Magnoli não poderia se queixar de racismo caso a polícia fizesse a pergunta óbvia: "De que lado está o AfroReggae? Da lei ou do crime?"
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Jornalista e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_fabricacao_do_racismo