Agora com mais tempo...
Pois é, eu acho que o principal ponto daquele vídeo da garçonete canadense (nunca lembro o nome dela, deve ser resultado da minha postura machista de menosprezar as mulheres olhando-as apenas pelas vantagens dos serviços que trazem sem considerar suas humanidades exatamente
) em que ela fala sobre iinuits e macacos sul-americanos (e que acabou se perdendo na questão da biologia das diferenças anatômicas, no outro tópico) é apontar que os cenários sociológicos humanos são contextuais e os contextos mudam.
O que é estranho, porque uma das críticas dela (e sua) é o contexto em que o feminismo emerge.
Que nem sempre algo que é profunda injustiça e desigualdade num contexto x é profunda e indiscutível injustiça e desigualdade num contexto y.
Concordo que o principal ponto dela era esse, mas baseado na exceção (inuits) para justificar a regra (patriarcado).
Então essa resposta de certo modo é uma das resposta que falei que não tava conseguindo fazer lá no outro tópico.
Um dos problemas do feminismo é que ele emerge num núcleo industrial e abastado e sempre se manteve em núcleos assim. O típico feminista (a típica voz ativa do feminismo, o típico produtor de artigos feministas para os jornalões, o típico palestrante em simpósios feministas da Escola de Filosofia da USP) é um ser-humano do século XX ou XXI morador de um bairro nobre em uma cidade industrial com um emprego típico das classes mais abastadas. Ele é um sociólogo morador do Leblon e professor da UNIRIO, é uma advogada formada pela FGV de Botafogo, é a filha deste casal que estuda Direção Teatral na ECo.
Eles carrregam como livros de bolso e cabeceira textos de autores cujas idéias emergiram exatamente dos caráteres profundamente "industrializados" e cosmopolitas de uma Toronto, de uma Frankfurt, de uma Nova York e de uma Londres (filósofos da indústria cultural e primeiros autores do feminismo teórico).
E ao praticarem sua abordagem eles o fazem com o vício de olhar para os seus umbigos e arredores e tentarem criar uma percepção universal a parrtir destes (seus umbigos e arredores).
Isso diz mais sobre o contexto do que sobre o feminismo. Não só o feminismo, mas diversos “ismos”, muitos problemas e soluções da humanidade, emergem do mesmo núcleo industrial e abastado. E não, não se mantém apenas nesses núcleos. Maria da Penha, licença maternidade, aposentadoria precoce e outros privilégios que o digam. Do que, não custa repetir, eu também discordo.
Toda vez que ouço um feminista vociferendo sobre os anos de patriarcado e sobre como as sociedades dos séculos passados eram opressoras me passa algo muito próximo do que a Joãozinho da Cozinha canadense falou. Será que esse povo alguma vez se coloca na pele de um lavrador do século XVII no Brasil, se coloque Doubt... agora você é um lavrador, senhor Austragésilo Silva, casado com a dona Julieta Silva, ambos por volta dos 35 anos, pais de 7 rebentos vivos mais 3 mortos, e você é muito moderno e nada patriarcalista e você andou tendo umas ideias e vai compartilhá-las com a dona Julieta quando chegar em casa...vai dizer pra ela que você andou tendo umas ideias... que tá pensando em chamar de feminismo... e que por estas suas ideias você vai ficar metade do tempo em casa cuidando das crianças para que ela fique metade do tempo capinando... diz, vá lá dizer pra Julieta que em plena sociedade do século XVII, numa área rural localizada no que hoje é o bairro de Madureira no Rio (sem anticoncepcionais e sem vacinas e antibióticos de modo que o controle de natalidade nem é possível nem desejado, sem Ninho Fases nem NAN de modo que biologicamente os filhos dependem da presença integral da mãe por muito tempo, sem empregos com ar refrigerado com berçário para as mamães...) você quer que homens e mulheres dividam igualmente responsabilidades e direitos e que quem for contra isto naqueles arredores e naquele tempo é patriarcalista, chauvinista, machista safado... vai levar uma porrada bem dada no meio dos olhos com o pouco de força que restou à dona Julieta depois de 10 gravidezes.
Dona Julieta talvez não precise ir para o campo para dar valor ao trabalho de seu Austregésilo, mas o oposto é verdadeiro ainda hoje. É aí que está o chauvinismo. Ela não fica em casa apreciando a paisagem enquanto ele trabalha, mas no final do mês os esforços dele se materializam em rendimentos, enquanto os dela não. Eles dividem sim igualmente as responsabilidades - porque o serviço doméstico, quanto mais com criança na história, é estressante e extenuante - mas não dividem os mesmos direitos, porque não é um serviço de valor, que gera rendimentos. O papel da mulher é inglório no patriarcado (e não só) porque não tem reconhecimento.
Vou te propor outro exercício. Você agora é dona Julieta. Acorda às cinco, uma hora antes dos outros para preparar o café da manhã já que não tem padaria na esquina. A família vai levantando e se acomodando em volta da mesa. Você serve a todos, inclusive o marido e enquanto se fartam, aproveita para trocar o bebê e amamentar. Quando seu Austregésilo parte para o campo, você troca os lençóis, esvazia os penicos, arruma a bagunça da meninada, varre a casa, o quintal, tira a poeira e tal. Lava a louça do café e começa a preparar o almoço. Enquanto as panelas estão no fogo, você vai para o tanque, lavar um balde de fraudas sujas. Interrompe a tarefa no meio para trocar novamente o bebê e amamentar.
Vamos fingir, para facilitar, que as crianças se cuidam sozinhas, não precisam de ajuda para se limpar, não aprontam, não gritam, não brigam, não se metem em enrascadas, não brincam com faca ou fogo, não se machucam, não adoecem, mas são todas quietas, obedientes, tranquilas.
Enquanto estende as fraudas no varal, seu Austregésilo chega para o almoço. Você serve a todos, inclusive o marido e novamente, enquanto se fartam, aproveita para dar um banho no bebê e almoça enquanto amamenta. Seu Austregésilo tira uma pestana antes de voltar para a labuta, enquanto você lava a louça do almoço. Quando ele parte, você volta para o tanque, agora para lavar os lençóis e as roupas imundas que os meninos usaram ontem. Mal termina de estender tudo no varal, já está na hora do lanche. Volta para a cozinha, serve a todos, amamenta o bebê, lava a louça do lanche. É hora do banho. Esquenta a água, lava, seca, veste e penteia as crianças. Ufa! Agora pode sentar um instante e aproveita para costurar uma ou outra peça gasta pelo uso e dar um pouco de atenção para a meninada. Seu Austregésilo chega, exausto de um dia de trabalho e vai tomar um banho, a água já está quente em cima do fogão, você volta para a cozinha, para preparar o jantar e leva a criançada junto, para dar um instante de sossego ao marido. Serve a todos, amamenta, janta e vai lavar a louça enquanto seu Austregésilo fuma um cigarrinho de palha, contando casos para distrair a meninada. Aproveita o intervalo para tomar um banho. Seu Austregésilo, mal se aguentando de pé, vai para a cama, porque amanhã o dia começa cedo. Você recolhe a roupa do varal, põe as crianças na cama, amamenta e vai se deitar também, porque daqui a pouco tem que amamentar novamente, com sorte, apenas uma vez, para às cinco começar de novo. Inclusive aos domingos, enquanto seu Austregésilo aproveita seu merecido dia de descanso. Ou parte dele, depois de fazer os concertos na casa.
O exercício não é propor a troca de funções. Você é uma mulher do seu tempo, dá valor ao trabalho do marido e sequer questiona a divisão de papeis. É apenas fazer com que o marido possa reconhecer seus esforços e dar o devido valor ao seu trabalho, entender que vocês dividem sim igualmente as responsabilidades, embora em papéis distintos, porque você pode até não trabalhar tão pesado, mas trabalha tanto ou mais do que ele, sem sequer um merecido dia de descanso e merece dividir com ele as honras. Mostrar a ele que, apesar dos resultados do seu trabalho não poderem ser convertidos em moedas no final do mês, tem grande valor, exige grande sacrifício e você também merece o respeito dele. Que se ele não quer correr o risco de criar filho dos outros, o que é justo, você também não quer correr o risco de ser trocada por outra com bucho cheio e sete crianças para cuidar.
E este deslocamento do discurso feminista não é só temporal, ele é espacial, demográfico também.
Mas de que eu estou falando, diabos? Da sua (e dos feministas) interpretação de que a estatística que aponta diferença de horas trabalhadas em casa seja prova de um cenário universalmente injusto e que deva ser universalmente mudado porque localmente e no melhor dos mundos (digo, numa casa ampla no bairro da Urca) este cenário seria (se não fosse fictício) injusto e teria que ser mudado.
Digo: é óbvio que se uma moça de 30 anos professora de economia da FGV por uma carga semanal de 30 horas cujos dois filhos são atendidos por duas babás chega em casa depois de sua extenuante tarefa de discutir textos de Adam Smith e Karl Marx com dezenas de jovens cheirando a Azzarro e Kenzo e logo depois chega seu marido atuarista da PwC com mesma carga horária da sua extenuante tarefa de designar tarefas e fazer leituras de planilhas e gráficos em uma sala com ar-condicionado e aroma de Bon Air eu espero que ambos dividam em igual suas atividades domésticas (se não tiverem mais empregadas pra isso) e isso JÁ ACONTECE nestes cenários (o IBGE indica isso ao demonstrar que quanto maior é a participação feminina no trabalho remunerado em determinada faixa da população maior é a participação do homem da mesma classe estatística nos serviços domésticos).
A não ser que eu tenha feito uma leitura errada das estatísticas (como você recomendou), as mulheres, em média, trabalham mais horas totais, mesmo (ou principalmente) quando os homens trabalham mais horas remuneradas. E mesmo quando as horas remuneradas se equiparam ou mesmo a remuneração, elas, em média, continuam trabalhando mais horas totais. Ou não? Ah, não. É verdade. Serviço doméstico não é trabalho, é só tarefa.

O busilis é que nem todo mundo exerce cargos de nível superior em empresas de referência e com altíssimos rendimentos. Por mais que ninguém sonhe e os intelectuais feministas do IFCS nem imaginem tem gente no mundo sem ensino médio completo, morando em favelas nos cocorutos das metrópoles, trabalhando em cargos pouco orgulháveis, com remuneração baixíssima, e com 3 filhos pra criar. Estes também entram, muito, nas estatísticas, e para estes, por mais que as professoras de sociologia do IFCS vociferem (digo, repitam com voz amena para parecerem intelectuais) a opção que resta costuma ser deixar o homem se fudendo de trabalhar mais de 55 horas por semana para conseguir ganhar seus incríveis dois salários mínimos enquanto a mulher se limita a dar uma ajudinha vendendo uma Avon ou trabalhando meio expediente na mercearia do bairro por meio salário mínimo para poder ficar mais tempo em casa cuidando da prole e "lavando as cuecas furadas do marido".
Cuidar da prole e “lavar cuecas furadas” também é trabalho embora o demérito queira dizer o contrário. Só não é remunerado.
E isto não é um cenário onde as mulheres só percam e os homens só ganhem meu nobre, isto não é o jogo do Adam Sandler, não é mesmo.
Por que não perguntamos a dona Julieta o que ela acha dos ganhos de trabalhar fora para contribuir com o sustento da família, papel antes tradicionalmente masculino, saindo cedo junto com o marido, não sem antes preparar o café da manhã, deixando as crianças aos cuidados de estranhos, para na volta assumir o papel tradicionalmente feminino até a hora que for preciso, já que o tempo de prole e “cuecas furadas” foi reduzido, porque o marido continua trabalhando tanto quanto na época do campo? Não sei, mas algo me diz que ela vai querer privilégios.

Desculpe Donatello, mas ainda mantenho a mesma opinião. Se o feminismo é uma !@#$%, o masculinismo (ou como queira chamar) é duas !@#$%.