Ruídos na mudança de rota na reforma da previdênciaCausa estranheza, preocupação e problemas o primeiro recuo do governo na reforma da Previdência determinado pelo presidente Michel Temer. Servidores estaduais e municipais, que já possuem um regime próprio, algo como 5,1 milhões de funcionários públicos - 86% do total -, ficarão fora das novas regras que o Congresso vai definir. Antes que a reforma comece a ser debatida para valer, começa a ruir um de seus princípios, o de aproximar os regimes do funcionalismo público e dos trabalhadores da iniciativa privada. Estrategistas do governo dizem que o passo atrás facilitará a aprovação das mudanças. Mas é uma manobra de alto risco, com grandes chances de insucesso.
A pressão política de deputados e alguns governadores, por meios diferentes, deu resultado e abriu um precedente perigoso. Para se livrarem do ônus de sancionar uma reforma que dificulta as condições da aposentadoria em relação a regras atuais, congressistas indicaram ao Planalto que seria melhor devolver a responsabilidade - e o desgaste potencial - aos governadores e Assembleias Legislativas. O rombo previdenciário não mudará de tamanho - R$ 89,6 bilhões nas previdências estaduais, 20,3% do rombo total de R$ 305,4 bilhões - mas as chances eleitorais de deputados e senadores não pioram.
Outro motivo, que poderia passar por sabedoria política, teria sido o de evitar o prosseguimento de protestos insuflados por alguns governadores de oposição, que fretaram ônibus para servidores criticarem a reforma em manifestações na Esplanada. Talvez tenha sido relevado o fato de que Brasília é uma cidade de funcionários públicos, que terão exigências maiores para se aposentar que seus colegas que não trabalham para a União, se as mudanças forem aprovadas. O recuo presidencial dá alento e pretexto para que a pressão do funcionalismo da União, sempre poderosa, se intensifique de agora em diante. A nata do Judiciário já havia encaminhado emendas para passar ao largo das mudanças, um privilégio que será dado a seus pares nos Estados.
A história das reformas da Previdência pode, então, se repetir. Grupos com maior poder de pressão tendem a se impor. O déficit dos regimes do funcionalismo da União e dos Estados, incluindo militares, é o maior problema - representa 54,6% do rombo total.
O sinal emitido pelo Planalto foi ruim e, ao procurar evitar o "risco da judicialização" ao supostamente ferir a autonomia dos Estados, pode incorrer em dificuldades legais maiores. A Constituição, em seu artigo 40, parágrafo 4º, reforçado pelo artigo 201, dispõe que é vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos servidores públicos de União, Estados e municípios, exceto em atividades exercidas sob condições especiais "que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência".
A saber, não só a reforma original proposta não fere autonomia como não pode ignorar a determinação constitucional, que uniformiza as condições gerais da previdência do funcionalismo, como idade mínima, cálculo de benefícios etc. O atalho seguido pelo Planalto tornaria regras de acesso e condições para se aposentar diferentes para um mesmo servidor, dependendo de se ele contribuiu para a União ou para os Estados e até mesmo em municípios vizinhos, se o servidor contribui o uma prefeitura que tem sistema próprio de previdência ou não.
O presidente Temer disse ter o aval da Fazenda para a concessão, que, consultada, lhe teria dito que os efeitos sobre o ajuste fiscal seriam nulos. Não é bem assim. A Previdência dos Estados é um descalabro e uma das principais fontes da calamidade financeira decretada por alguns Estados e está absolutamente fora de controle. Os Estados quebrados foram pedir socorro à União, que com eles negocia suspensão de pagamento de dívidas por até seis anos, tendo como contrapartida ajustes que relutam em aceitar.
Há pouca dúvida de que, mantido o status quo nos Estados e em várias capitais, mais governadores baterão às portas do Tesouro. A performance fiscal contou até há pouco tempo com superávits fiscais dos Estados que não devem se repetir. Caberá à União um esforço maior de economia ou uma redução ainda mais gradual do déficit público. Outro sinal ruim foi que o anúncio de que a maioria do funcionalismo foi "liberada" de uma reforma vital foi feito apenas um dia antes de o ministro da Fazenda sinalizar que vem aumento de impostos por aí.
http://www.valor.com.br/opiniao/4912344/ruidos-na-mudanca-de-rota-na-reforma-da-previdencia