Amigão, uma das coisas mais elogiáveis de nossa condição humana é o exercício da discordância e da multiplicidade de opiniões. Assim, enquanto você aprecia muito modestamente "Sunset Boulevard", do Wilder, eu incluo o filme em minha lista dos melhores de todos os tempos. Bastaria a cena final, com Norma Desmond/Gloria Swanson descendo as escadas, a imagem de uma vida de glória desfeita, para dar ao filme grandeza artística. Há ainda a frase fantástica: "Continuo grande. O cinema é que se tornou pequeno".
Também tenho amor pelo cinema, superado, no entanto, pela literatura. Leciono literatura espanhola na UFMG e literatura em geral numa escola secundária aqui de Belô. Brevemente a editora da universidade vai publicar um livro com poemas de Vicente Aleixandre, poeta espanhol ganhador do Nobel, com tradução e apresentação, ambas, a meu encargo.
Quase segui jornalismo e dentro dele a crítica de cinema. Jornalismo e literatura chegaram a mim pelo meu tio Salvyano Cavalcanti de Paiva. Meus pais não tinham nem têm tais interesses. Meu pai é um comerciante espanhol lá no Rio e minha mãe uma potiguar dona-de-casa. Salvyano era irmão de minha mãe e meu tutor intelectual. Na infância e adolescência, guiado por suas mãos, visitei redações de jornais e revistas, fui a cineclubes, onde assistia às produções de ponta, ignoradas pelo circuito comercial. Pensei naqueles momentos em ser jornalista e me tornar crítico de cinema de O Globo como meu tio. Mas descobri logo que jornalista vive sob muita pressão, é um pessoal estressado e cheio de manias. Desisti.
A literatura ficou como minha opção sem volta. Salvyano além de autor de uma tese Cinema e cultura brasileira, e de ter escrito os livros Aspectos do cinema americano, O gangster no cinema, História dos filmes brasileiros. (com o qual comprou uma briga com Glauber Rocha), publicou o roman à clef O mito em água e sal, que despertou animosidade entre alguns intelectuais que se viram descritos na estória. Meu tio, na verdade, é que me introduziu no mundo da literatura e do cinema. Com ele conheci o cinema de Hollywood, para Salvyano o melhor do mundo, o cinema francês, de Meliès a Godard ("Acossado" é o filme!), o italiano de De Sica (humanista até à medula), Pasolini (um cara que combinava delicadeza com a brutalidade do cotidiano), Fellini (tudo o que eu queria ser se tivesse talento para cineasta), e outras cinematografias europeias, como a polonesa (Wajda e seu maravilhoso "Cinzas e diamantes", Agnieszka Holland e seu filme-tributo à grande Rosa Luxemburgo), a russa (me curvei ao gênio de Pudovkin, à poesia etérea de Tarkovski, ao pessimismo de Mikhalkov, ao humor de Tigran Keosayan, ao trato delicado da condição feninina de Olga Preobrazhenskaya, ao intelectualismo de Ladislas Starevich e tantos outros diretores soviéticos). Sem falar que meu tio me apresentou artisticamente a Percy Adlon ("Bagdad Café" já o assisti uma dezena de vezes), Billy Wilder (de quem gosto de tudo, mas absolutamente de tudo), Altman ("Mash" e "Short cuts" são aulas de cinema & sociologia), Aldrich (vale o que disse sobre Wilder). Almodóvar (que até hoje não me convenceu que é um artista), Bogdanovich (grande no início e melancólico depois, vide "Texasville", com uma Sybill Shepperd sem o maravilhoso frescor de "A última sessão de cinema"), Fred Zinneman (gosto de tudo), o cidadão fascista mas artista excelente que é Eastwood ("Bird"), Bergman (o Diretor), e um etc multiplicado por um fator bem grande.
Tenho 30 anos de idade, nascido portanto numa época em que as novas gerações não tinham mais o privilégio de assistir a todos os filmes em tela grande (e cinema só é verdadeiramente cinema em tela grande), mas basicamente em vídeo. Para quem pensa como eu a esse respeito só restaram e restam os cineclubes (que também escasseiam) e festivais de cinema. Por sorte, algumas operadoras de tevê por assinaturas trazem uns canais onde se programam cinematografias fora dos esquadros comercias. Aqui em Minas temos alguns canais com programações ótimas. Isso já me proporcionou assistri a filmes romenos, filipinos, isralelenses, tchecos, escandinavos, e até um filme mongol, com uma trama engraçadíssima, um anjo que se prostitui e adota o sexo de acordo com a demanda do momento.
Na UFMG funciona há quase dez anos um cineclube, do qual sou um dos integrantes da diretoria, com uma programção ótima. Em 2011, tivemos uma mostra que já passara no Rio e em SP, organizada em torno da relação entre cinema e filosofia, num total de 40 filmes, com palestrantes ao fim de cada exibição, divididos por temas: “O Que é a Filosofia?” , “Morte e Finitude”, “Questões estéticas”, “O Existencialismo”, “O Fascismo hoje”, “Cinema e Revolução”, etc. Um dos palestrantes foi o filósofo mineiro Sebastião Trogo, um dos maiores conhecedores da obra de Sartre no Brasil.
Sou um entusiasta desse tipo de programação, especialmente o citado acima, pois juntamente com a literatura sou um apaixonado por filosofia, tanto que hoje curso o 3º ano.
É isso, amigão, me apresentei o suficiente, não é?
Damásio