Flor. Esse foi o nome do coelho da minha mãe.
Quando minha mãe pegou ele jovem para criar, pegou junto com um coelho branco de olhos vermelhos. Flor era marrom.
Minha mãe achou que Flor fosse fêmea, por isso deu esse nome e os dois coelhos viviam juntos. Depois que os coelhos foram crescendo e o coelho branco passou a agredir o Flor invés de tentar cruzar com ele, minha mãe começou a perceber que tinha algo estranho. Depois de alguns meses com o Flor crescendo e apanhando do coelho branco dentro da gaiola de 1,5 m² em que eles viviam, minha mãe percebeu que Flor também era macho, e algum tempo depois arrumou outro dono para o coelho branco.
A princípio minha mãe disse que também arrumaria outro dono e outro nome para Flor, mas já estava apegada a Flor e gostava demais do nome para mudar. Flor viveu sozinho na gaiola desde então.
Uma gaiola com chão de plástico, aonde Flor tinha que dormir e caminhar em meio à própria urina e fezes até algum de nós ter tempo disponível para limpar. Ele comia ração, folhas de alface, e não sei se mais algo, além de tomar água. Minha mãe gostava de conversar com Flor, e de vez em quando fazia algum carinho nele.
Essa gaiola fica junto à garagem e ao quintal, e Flor era o único animal de estimação nosso que vivia preso. Era por proteção, porque alguns dos nossos gatos adultos já tentaram atacar ele, e também para protetê-lo contra os gatos da vizinhança. Meu cachorro, que tem porte pequeno, chegava a latir para Flor e já correu atrás dele, mas já fazem alguns meses que tinha se acostumado.
Hoje meu expediente era para ter sido apenas até as 16:00. Minha líder resolveu me botar para cuidar do fechamento do expediente no lugar dela, e saiu mais cedo no meu lugar. Desde a hora em que ela me deu essa noticia passei o resto do dia com desgosto, porque já sou encarregado disso durante metade dos dias da nossa escala, e porque eu queria aproveitar o sol para fazer alguma coisa em casa, invés de chegar tarde e já cansado.
Minha mãe apareceu de surpresa no meu serviço pouco depois das 16:00 para me levar para casa, e tive que contar a ela que ainda poderia levar mais de três horas para eu poder sair. Quando tudo terminou e pude sair já estava escuro, eram 19:10.
Ao chegarmos em casa, abri o portão, e a boxer que minha mãe recentemente pegou para ajudar a cuidar da segurança da casa estava solta. A cachorra saiu pelo portão e tentou correr atrás de um dos nossos gatos menores, aí agarrei ela pela coleira e trouxe para dentro. Minha mãe entrou com o carro e não encontrou o coelho na gaiola. Minha irmã pegou uma lanterna para ajudar a procurar o coelho, aí meu cachorro a guiou e mostrou aonde o coelho estava. Morto. No quintal.
Após minha irmã contar que o coelho estava morto, minha mãe segurou meu cachorro pelo pescoço e ficou gritando e batendo nele. Passo pouquíssimo tempo em casa para saber, mas pelo que minha irmã disse meu cachorro tem o costume de ajudar a boxer a se soltar para os dois brincarem juntos. A boxer já tinha tentado atacar o coelho e os gatos antes, se jogando contra a gaiola do coelho, e da outra vez em que fez isso o coelho fugiu da gaiola e correu para um canto entre um móvel e as paredes da garagem, a tempo da gente segurar a boxer. Mas dessa vez não estávamos em casa, e o coelho, que não tinha a liberdade nem a mesma capacidade de fuga que os gatos, morreu. Tanto quanto tristeza, minha mãe ficou com raiva dessa situação toda, e já gritou com todo mundo aqui.
Meu ponto é que esse finado coelho levou uma vida de sofrimento. Completamente privado da autonomia que poderia ter tido e impossibilitado de ter uma vida diferente. Ele não pôde ter escolhas. Passei meses comentando, tentando argumentar com minha mãe que Flor merecia uma vida que não tínhamos condições de dar. Ele morreu sem passar por algo na vida além do que passava naquela gaiola. E é assim que fui criado.
Tenho um medo mortal de passar o resto da minha vida com minha família. Tenho minha própria cota de desastres previsíveis para acontecer quando minha mãe não estiver mais presente, e ela não me dá autonomia. Na eventualidade de acontecer alguma coisa com ela posso quase certamente dar adeus a tudo. Não tenho margem de manobra -- amigos, família, ou um emprego que me dê independência.
Eu tenho medo de um dia não valer mais a pena eu viver. E sou capaz de passar por cima do que quer que seja, nem que seja por cima de mim mesmo, para poder evitar isso.
Minhas mãos ainda estão com cheiro dos pêlos do coelho morto, que tive que enterrar. Eu tinha que desabafar essa m* em algum lugar, agora vou me limpar.