Estou lendo um livro muito interesante. "The History of God", de Karen Armstrong,
uma ex-freira.
A autora mostra que os mitos da criação de povos da Mesopotâmia, como sumérios, assírios
e babilônios não eram interpretados por estes povos como histórias reais. Havia ritos
e festivais sagrados onde tais mitos eram celebrados e reencenados mas entendia-se
perfeitamente que estes eram simbólicos e representavam a relação dos deuses com os
homens. Tais mitos eram representações alegóricas dos conceitos relacionados aos
deuses e todos estavam perfeitamente cientes disto.
Sendo o mito da criação hebraico originário da mesma região é plausível que não tenha
sido escrito para ser interpretado literalmente, mesmo pelos homens da sua época. Na
verdade o relato já existia muito antes de ser escrito e sua origem deve ser mais ou
menos contemporânea com outros mitos de outros povos da região.
O fato de que é uma alegoria se torna claro até mesmo com uma análise superficial
do texto. O autor não teve a menor preocupação com a verosimilhança. Há várias
passagens pouco críveis como quando Deus leva Adão para dar nome a todos os animais
da Criação. Mesmo um homem rude da Idade do Bronze perceberia que isto deixaria
Adão ocupado por muito, muito tempo.
Podemos notar também que Adão e Eva tiveram apenas dois filhos, ambos do sexo masculino,
e ainda assim deram origem a toda raça humana. Mas quando Caim mata Abel e é expulso se
lamenta "óh, qualquer um que me ache irá me matar", mas, qualquer um quem? E Caim conhece
a sua mulher, lá pelas terras de Node. Mas de onde ela veio?
E é dito que Enoque, neto de Adão, edifica uma cidade. Curioso que já na terceira
geração existisse gente bastante para habitar uma cidade.
Ora, um homem vivendo há 3.000 anos poderia ser menos instruído, mas definitivamente
não era menos inteligente que qualquer um de nós. É evidente que estes furos chamariam
atenção até de uma criança, mas o autor não teve a menor preocupação porque estava
claro para qualquer um que tudo não passava de fantasia. Ele não se dá ao trabalho
sequer de dar uma explicação sobre se a mulher de Caim era ou não sua irmã, sabendo
que o incesto não era aceito pela sua religião. Não havia esta necessidade
simplesmente porque ninguém estava interpretando que aquela história fosse uma verdade
literal.
Quando comparamos o texto de Gênesis com o de Êxodus (que também é puramente inventado)
vemos uma diferença muito grande. Apesar da narrativa mencionar acontecimentos sobrenaturais
o autor de Êxodus se preocupou com a consistência lógica, porque esta era uma história
onde se pretendia que as pessoas cressem como verdadeira. Êxodus foi escrito para reforçar
o sentimento de identidade do povo e o orgulho nacional, é metade religião, metade
propaganda. Gênesis foi composto como mito mesmo e muito posteriormente outras histórias
tiveram que ser acrescentadas à tradição judaica para remendar as omissões e as
contradições do texto.
É irônico que agora, no século 21, muitos estejam lendo estes textos como se fossem
livros de História e de Ciências enquanto os homens analfabetos da Idade do Bronze
compreendiam perfeitamente que tudo não passava de fantasia.