Olá,
Não me convenço com a proposta de que os “homens da Idade do Bronze” liam os sues mitos cosmogônigos como metáforas. Ou que a bíblia seja, preferencialmente, um livro de alegorias - em especial o Gênesis.
Se é fato que os mitos relcionavam-se concretamente a festivais, não se pode deduzir daí que esses mitos serviam apenas para ordenar esses festivais.
Ademais, as relações dos deuses com os homens na antiguidade no Crescente Fértil eram muito concretas (nada metafóricas ou simbólicas). Os deuses providenciavam as chuvas, a cheia do rio e a vitória nas batalhas.
Esse... digamos, utilitarismo divino, reduzia a necessidade de metáforas e abstrações na relação dos homens com os deuses que inventavam.
É bom lembrar que se Karen Armstrong não é mais freira, ela ainda é teísta, e seus livros tentam pintar uma imagem bonita e sofisticada das crenças religiosas. E essas crenças nem sempre são assim. O livro de gênesis é um desses casos. Hoje em dia alguns teístas tentam emprestar a ele sentidos alegóricos que ele originalmente não tinha.
Além disso, a ausência de coerência nos textos cosmogônicos não pode ser reduzida a um eventual sentido alegórico que eles possuiriam, afinal, mesmo alegorias precisam de um encadeamento que faça sentido, sem “furos”.
Mas o caminho para entender esses furos é, mesmo, tentar entender o contexto da produção desses textos.
É importante lembrar que antes de serem escritos, esses mitos foram
transmitidos oralmente por gerações. Apesar da transmissão oral poder ser confiável, ela implica em um modo específico de transmissão – a fala.
Quando contamos uma estória para alguém, não nos preocupamos muito com os detalhes. O que importa é o sentido da coisa. Assim, nem sempre as narrativas são lineares ou coerentes.
Também havia narrativas cosmogônicas concorrentes que coexistiam.
Vemos isso claramente no texto bíblico, em que há dois relatos da criação do homem.
O primeiro, no Gên., cap. 01, v.26-28, em que o homem e a mulher são criados ao mesmo tempo. E no capítulo 2 do Gênesis há outro relato, em que o homem é criado primeiro e a mulher depois.
Quando os escribas resolveram colocar os relatos orais de criação por escrito, acabaram reunindo duas versões diferentes do mesmo relato.
A tentativa de unir estórias que originalmente não eram narradas juntas também ajuda a aumentar as incoerências do texto.
E como essas narrativas não apenas explicavam a origem do mundo mas também a origem das condutas humanas (porque sacrificar ovelhas

e não vegetais, por exemplo), mais importante que um relato coerente, era enfatizar o que se queria.
Por isso muitos desses relatos repetem alguns modelos e temas, ao mesmo tempo em que apresentam flagrantes contradições e “buracos”.
Durante a narração, a entonação da voz, as pausas e mesmo os gestos garantiam que o sentido que o narrador queria dar seriam entendidos pela audiência. Daí a existência de “buracos” não ser muito importante.
É bom lembrar que durante séculos, mesmo com esses mitos escritos, era mais comum que alguém os lesse para uma audiência. A leitura solitária e em silêncio (no Ocidente, pelo menos) é uma invenção da Modernidade. Assim, esses mitos mesmo em versão escrita, mantinham muitas das incoerências só possíveis em relatos plenamente orais. (Walter Ong os define como de “oralidade secundária”, por isso)
Assim, os homens e mulheres da antiguidade, quando ouviam esses mitos, não duvidavam de sua veracidade factual. Não os entendiam metaforicamente. Na visão deles, estes eram relatos confiáveis que explicavam como eram as coisas no mundo. Mas os “furos” não eram importantes, afinal, o sentido da estória era mais importante que seus detalhes. E o narrador garantia que as inconsistências passassem despercebidas.
Mas, sejamos condescendentes, em
alguns círculos muito restritos, leituras metafóricas podiam até ser feitas. Mas essas não eram as leituras dominantes. Muito parecido com hoje em dia, até.
É possível que Bento XVI, Edir Macedo, alguns cardeais, bispos etc. leiam a bíblia de modo metafórico.
Mas a D. Maria, beata que frequenta a igreja de São Serafim da Coisinha (ou o templo da reunião dos 333,33 pastores) aqui perto de casa, jamais será capaz de entender o que significa a palavra metáfora. Do mesmo modo que as “donas marias” e "seus josés" da Idade do Bronze também não eram.
E como, no fundo, a religião não é um fenômeno dos teólogos, mas um fenômeno das massas, não podemos acreditar que a leitura literal dos mitos seja uma realidade apenas de hoje em dia.
Mas a contradição do relato bíblico tem outras fontes.
Todos os povos são etnocêntricos. Seu povo sempre é melhor que o povo vizinho.
Por isso os mitos cosmogônicos antigos, de modo geral, retratam o surgimento da
sua cidade, do
seu rio, do
seu povo.
O “universo” na mentalidade de pastores antigos não ultrapassava as montanhas no horizonte.
Assim, mais que um mito que narre a origem de toda a humanidade, o relato bíblico trata da origem
dos hebreus.
Note-se que todos os três filhos de adão e eva são homens – numa sociedade patriarcal, as mulheres entram para as famílias dos homens e não o contrário. Assim, os filhos de adão e eva podiam casar e ter filhos com quaisquer mulheres que isso não romperia sua linhagem e seu pacto com Javé.
Aqui é importante lembrar que antes de ser o deus único, javé foi o mais forte dos deuses (todo povo acha que seu deus é mais forte que o deus do vizinho).
Não importava, para os hebreus, de onde vieram ou como foram criados os outros povos. O que importava é que eles descendiam de Adão e Eva, que foram criados pelo deus deles.
A questão é: com o passar do tempo, javé deixou de ser um deus superior para ser o deus único. Mas o relato de criação manteve-se inalterado, trazendo para uma nova concepção de deus um relato produzido ainda em uma concepção mais antiga.
Bem, mitos são tentativas de explicar a realidade.
Na ausência de instrumentos ou evidências consistentes, os mitos tornam-se mais próximos das fantasias que da realidade.
Adão e Eva não passam de fantasias que, hoje em dia, podem muito bem ser descartados – tanto sua leitura literal quanto uma eventual leitura metafórica, afinal, temos Lucy, análise de DNA mitocondrial e outros balangandas.