Matérias Especiais - Antes De Assinar, Leia As Entrelinhas - O Caso Natividadpor: Carlos Almiron
Circula pela Internet uma petição contra um artista costarriquenho chamado Guillermo Varga Jiménez (mais conhecido pelo pseudônimo “Habacuc”). Dentre outras reivindicações, a petição pede a exclusão do artista da Bienal Centro-americana que acontecerá no ano que vem em Honduras.
Antes de assinar a petição, resolvi investigar o caso e o resultado é no mínimo interessante.
Em agosto deste ano, a Galeria Códice (localizada em Manágua, capital da Nicarágua) abrigou a instalação “Exposición nº 1” na qual um cão de rua foi exposto. No início de outubro começou a circular a notícia de que o cão havia morrido de fome e sede nesta exposição, fato que se espalhou rapidamente e causou grande repercussão entre os defensores dos animais.
Porém, informações desencontradas põem em dúvida a veracidade e credibilidade dos fatos. Pra isso a Internet é uma ferramenta indispensável para averiguar melhor esse caso.
As imprensas da Nicarágua e da Costa Rica tomaram conhecimento do fato a partir da “denúncia” feita e difundida através de blogs, porém trataram o caso superficialmente. Os principais e mais citados blogs são de
Jaime Sancho que reúne todo material até agora divulgado sobre o caso e o blog de
Rodrigo Peñalba única fonte que registrou e divulgou as fotos da exposição em questão. Aqui no Brasil a Folha de São Paulo publicou o fato na coluna
“Pensata” de João Pereira Coutinho. É possível encontrar outras fontes, mas boa parte apenas traduz ou reproduz as fontes já citadas.
O primeiro apontamento que faço é sobre essas mesmas fontes. É no mínimo constrangedor imaginar que os principais jornais envolvidos nem sequer cobriram a exposição e ainda por cima publicaram opiniões sem nem ao menos saber se o que aconteceu era verdade ou não.
Fonte impar no caso, a jornalista Marta Leonor Gonzalez, editora do caderno cultural “La Prensa Literária” é a única que confirmou a morte do cão. Mas o estranho é que no seu próprio suplemento não há menção alguma da exposição e pra piorar “ela própria não esteve na exposição” como me confirmou Rodrigo Peñalba. Ao blog dele é atribuído o registro fotográfico da exposição. Rodrigo Peñalba, 26, é escritor, artista visual, web editor e neto do renomado artista nicaragüense Rodrigo Peñalba (1908-1980). Outro fato curioso: nem o próprio Peñalba viu o cãozinho Natividad. As fotos no seu blog foram enviadas pela artista Delia Chévez.
Cabe ressaltar aqui o trabalho que Peñalba desempenha na divulgação cultural da América Central. Seu blog tem recebido inúmeras visitas por causa dessa polêmica. “É o mês mais visitado do site e é uma visita que não retornará” lamenta Peñalba. É a real, quem vê as fotos repassa o link e nem sequer se dá ao trabalho de conferir o restante do conteúdo. Curioso em ver as fotos? Para descongestionar e evitar excesso de tráfego, um novo blog foi criado
www.elperritovive.blogspot.com.
CASO NATIVIDAD
Antes de ser nome do vira-lata mais falado do momento, Leopoldo Natividad Canda Mairena era um nicaragüense de 25 anos que vivia ilegalmente há 9 anos na Costa Rica. Nati, como era conhecido nos diques de Cartago, saiu da casa dos pais do bairro Modesto Ramón Palma, em Chichigalpa, municipio do Departamento de Chinandega na Nicaraguá para buscar uma vida melhor nas ruas do pais vizinho. Terminou seus dias como mendigo e morando debaixo de uma ponte.
Na madrugada do dia 10 de novembro de 2005, Natividad acompanhado de um amigo saltou o muro da oficina mecânica “Romero” de propriedade de Fernando Zúñiga (localizada em Cartago, Costa Rica) e foi surpreendido e atacado por dois cães de guarda rottweiler. Seu amigo (cujo nome não foi divulgado pela investigação) conseguiu escapar do ataque e colaborou na reconstituição da tragédia. Natividad levou certa de 200 mordidas e teve múltiplas perdas de pele, músculos, tendões, artérias, veias e nervos dos braços e pernas. Conseguiu ser levado ainda com vida para o Hospital Max Peralta, onde passou por cirurgia e transfusão de sangue, ingressando na UTI. Porém horas depois, uma parada cardio-respiratória o levaria a óbito. Mórbida coincidência: “Hunter” era o nome de um dos cães de guarda.
A morte da Natividad trouxe a tona acusações de xenofobia, negligência, omissão de socorro, descumprimento do dever policial e tornou ainda mais tensas as relações diplomáticas entre os dois paises (existe uma disputa na corte Internacional de Haya pelo direito de navegação pelo rio San Juan).
Segundo a investigação feita pelo Organismo de Investigação Judicial, que cuidou do caso, dois agentes da Força Pública tiveram oportunidades de salvar Natividad ao disparar contra os cães de guarda e não o fizeram por oposição do dono da oficina. Os gritos de socorro durante o ataque, que durou aproximadamente 54 minutos, também foram ouvidos e presenciados pelo vigia noturno da oficina, pelos bombeiros e pela cruz vermelha.
Passado o calor do momento, após exaustivas investigações e acuações mútuas, surge a denúncia de que a empresa norte-Americana Bandeco ofereceu uma indenização à família de Natividad para esquecer e dar o caso por
encerrado.
O inquérito permanece aberto e é provável que os indiciados fiquem impunes.
A HOMENAGEM DE HABACUC
A idéia de Habacuc não era só homenagear Natividad, mas trazer para uma exposição artística um elemento urbano, cotidiano. Causou grande repercussão por se tratar de um vira-lata doente, exposto num ambiente em que se espera encontrar obras de arte. É claro que não foi considerado arte por muitos que assinaram a petição. Crueldade ou manifesto político?
Alguns elementos da instalação remetiam diretamente ao caso Natividad: na entrada lia-se a frase “és o que lês” escrita com ração e culminava com a exposição do cão sarnento. Significados? A frase nada mais é do que isso mesmo: Natividad foi comida pra cachorro e o cão representava o próprio Natividad, que neste momento servia como objeto para revelar a hipocrisia humana: enquanto está na rua, o cão passa despercebido, não sensibiliza ninguém, mas quando está numa galeria de arte ganha o foco das atenções. Talvez isso explicasse as enigmáticas declarações do artista, que se negava a responder se o cão havia sido alimentado, se havia morrido e porque não permitia que o público libertasse o animal. Talvez sua crítica fosse de que assim igualmente ocorreu com Natividad, que nunca fora notado nas ruas e que no momento da sua morte poderia ter sido salvo, mas que ninguém fez nada pra isso, permaneceram como meros expectadores.
DECLARAÇÕES
Mediante a pressão pública e a crescente adesão à petição a Galeria Códice, membros do jurado Bienarte 2007 e o Museu de Arte e Desenho Contemporâneo da Costa Rica (sede da Bienarte 2007 que classificou Habacuc para a Bienal Honduras 2008) divulgaram notas sobre a polêmica.
Coube à Galeria Códice confirmar o período da estadia do cão em suas instalações (3 dias) sendo que ele era alimentado regularmente pela ração que o próprio Habacuc levara.
Inesperadamente, o cão teria fugido da Galeria durante a limpeza do pátio interior, local onde o cão ficava solto enquanto não participava da exposição. É a palavra da Galeria contra a jornalista Marta Leonor.
Já os membros do jurado da Bienarte 2007 acrescentaram esclarecendo que as obras apresentadas por Habacuc eram inéditas e sem relação alguma com a “Exposicion Nº1”. Ainda na nota, rechaçaram a "campanha midiática que se orquestrou pretendendo desqualificar e amedrontar, manipulando a informação e promovendo interesses obscuros, de caráter fascista, incluindo um chamado para a violência e o crime".
Por sua vez, o Museu de Arte e Desenho contemporâneo da Costa Rica aclarou não ter influência na representação da Costa Rica na Bienal Honduras 2008, atuando apenas como "facilitador e sede da seletiva de obras realizada pelo jurado internacional" e que as obras de Habacuc que foram classificadas e que estão expostas no museu são outras. A "Exposicion Nº 1" não participou da seletiva pra Bienal e portanto não está vinculada nestes eventos.
Um ponto em comum nas três declarações, além de não aprofundarem ou quererem levar adiante o caso, é a questão da censura e do próprio limite do que viria a ser arte.
Nesse foco o comunicado do Museu é interessante quando relembra que em 1966, durante a Guerra do Vietnã, Peter Brook estreou em Londres o espetáculo “US”. Nele um ator fazia um monólogo sobre o uso e efeitos do Napalm. Para sensibilizar a platéia, no final da atuação, o ator que tinha uma borboleta viva presa entre o polegar e o indicador, tirou do bolso um isqueiro e tacou fogo nas suas asas. Chocante, não? O ator teve que pedir desculpa diante do protesto e indignação da platéia. Mas antes de deixar a cena, o ator fez notar sua estranheza, já que o mesmo público que se indignava com a sorte da borboleta, até o momento, havia permanecido indiferentes aos vietnamitas queimados pelo Napalm. Na época ninguém ousou por em dúvida se Peter Brook era ou não artista.
O mesmo comunicado do museu também serve para encerrar a discussão sobre o veto da participação do artista na Bienal de 2008, o que frustra uma das reivindicações da petição on-line.
QUAIS CONCLUSÕES PODEMOS TOMAR?Enquanto o próprio Habacuc não vem a público dar sua versão, nunca se ouvirá falar tanto nos personagens dessa noticia. Se dar o que falar e o que pensar era sua intenção, conseguiu em partes. Mesmo que o artista prossiga normalmente com seu trabalho, utilizando ou não objetos do cotidiano, sempre será lembrado por essa polêmica ou cairá no esquecimento quando outro artista for o mais novo alvo do sensacionalismo.
Tudo isso poderia ter sido evitado se as partes envolvidas dessem maior atenção a sua assessoria de imprensa, evitando declarações infelizes. De certo a galeria Códice não imaginava que daria todo esse reboliço, mas não custava nada explicar ao público visitante que Natividad receberia os devidos cuidados, afastando qualquer hipótese de maus tratos. Pelo menos assim ocorreu com o Museu Oscar Niemeyer (Curitiba/PR) durante a exposição
“Revolver” do trio Jum Nakao, Kiko Araújo e Julio Dojcsar, na qual havia a participação de 3 esquilos da Mongólia e deixava claro no realese que tipo de materiais foram utilizados e que tratamento lhes era dado. Essa polêmica também serviu para escancarar ainda mais como a juventude atual nem sequer presta atenção no que lê, muito menos questiona antes de aderir uma causa ou reproduzir uma “notícia”. E por fim, mesmo que a obra da Habacuc tenha ferido artigos da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, o que podemos esperar de um mundo onde não se respeita sequer os Direitos Humanos?
Carlos Almiron, 25, Graduado em História e apresentador do Programa Mundo Caos na PunkRadio.http://www.zonapunk.com.br/ver_materia.php?id=123