Pessoal, aqui vai um trecho do livro "A Ditadura Escancarada" de Elio Gaspari, onde ele comenta as causas por trás do declínio vertiginoso dos grupos armados de esquerda à partir do fina de 1970.
Nota: o termo "tigrada" refere-se á porção linha-dura e frequentemente indisciplinada das Forças Armadas envolvida diretamente com as atividades de repressão e que defendia sempre mais e mais endurecimento do regime.
Página 196:
"O porão respondeu à crise da esquerda armada transformando-se em seu empresário. A máquina montada pelos generais atacava duas frentes: numa, o que restava do inimigo. Na outra, combatia quem dizia que desse inimigo restava pouco. Assim como à esquerda se desenvolvera a idéia segundo a qual o dever do revolucionário era fazer a revolução, criou-se à direita o entendimento de que os revolucionários de 1964 tinham o dever de erradicar o terrorismo, a subversão e até mesmo aquilo que denominavam (sem terem conseguido jamais definir) de “contestação ao regime”.
As organizações envolvidas na luta armada, com suas teorias de focos, guerrilhas urbanas e vanguardas combatentes, entraram em
colapso porque tinham a repressão atrás e nada pela frente. Até o início do segundo semestre de 1970 assaltaram cerca de trezentos bancos, carros-fortes e empresas. Conseguiram graus variáveis de prosperidade. As “expropriações” renderam-lhes por volta de 1,7 milhão de dólares, e a VAR-Palmares ficou milionária com os 2,6 milhões do cofre de Adhemar de Barros.1 Valiam-se de conexões externas, ora em Cuba, ora na Argélia, e também na China. A ALN mandou a Havana o equivalente a um terço de seus quadros.2 Tiveram o dinheiro, o suporte e o sonho comum do foco rural.
Enquanto chineses e cubanos estabeleceram suas bases rurais tomando a terra em combates, as siglas brasileiras estabeleceram-se no campo pela via legítima da propriedade fundiária, comprando fazendas com o dinheiro arrecadado nos assaltos. Fora desse padrão, ficaram apenas o brizolismo, em Caparaó, e o PC do B, no Araguaia.3 Nele ficaram o MR-8 no Paraná, a VAR no vale do Ribeira, e a ALN no sul do Pará, Goiás e Maranhão. Chegou a haver um engarrafamento de projetos guerrilheiros na região do Bico do Papagaio, para onde confluíram o PC do B, a ALN e a VAR Palmares. Essa coincidência, com todos os tumultos e dificuldades que produziu, levou o PC do B a atravessar o rio Araguaia, afastando-se da sua margem goiana e do entroncamento rodoviário de Imperatriz, no Maranhão. Por essa cidade passaram pelo menos quatro organizações com seus projetos de foco rural.4 Com exceção de algo como setenta quadros que o PC do B manteve espalhados na região, todas as outras bases foram desbaratadas ou neutralizadas pela simples chegada das tropas. Entre maio de 1970 e agosto de 71, sem um tiro, três expedições dissolveram pelo menos seis bases da ALN e da VAR, prendendo, por baixo, 39 pessoas.5
Seria exagero atribuir exclusivamente aos torturadores o fechamento do caminho rural. Pelo medo que espalhou, a tortura seccionou a solidariedade que o radicalismo chique do Rio de Janeiro e São Paulo oferecera ao movimento estudantil em 1968 e aos primeiros
ativistas armados, mas ele é insuficiente para explicar por que todo o movimento armado caiu prisioneiro da rotina do gato-e-rato. Como escreveu Renato Tapajós, da Ala Vermelha do PC do: “O gesto ficou congelado”.6
O obstáculo que barrou o progresso das organizações armadas foi político. A violência do aparelho do Estado pode destroçar seus
adversários, mas não destroça necessariamente seus objetivos. Os páraquedistas do general Massu venceram a Batalha de Argel, mas a França perdeu a Guerra da Argélia, entregando o poder aos combatentes que encarcerara. A “tigrada” brasileira ganhou tanto as batalhas do Rio de Janeiro e São Paulo como a guerra. Primeiro, porque os trabalhadores não se alistaram na revolução popular.Marcelo Ridenti mostrou que mais da metade das 2592 pessoas com ocupação conhecida processadas judicialmente por quaisquer tipos de relação com organizações armadas vinham das camadas médias intelectualizadas da sociedade. Na ALN, para 237 estudantes, professores e cidadãos com diplomas de curso superior, havia apenas 68 trabalhadores manuais urbanos. Na VPR havia catorze professores para treze trabalhadores manuais urbanos.7
A luta armada fracassou porque o objetivo final das organizações que a promoveram era transformar o Brasil numa ditadura, talvez
socialista, certamente revolucionária.8 Seu projeto não passava pelo restabelecimento das liberdades democráticas. Como informou o PCBR: “Ao lutarmos contra a ditadura devemos colocar como objetivo a conquista de um Governo Popular Revolucionário e não a chamada‘redemocratização’”9. Documentos de dez organizações armadas, coletados por Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá, mostram que quatro propunham a substituição da ditadura militar por um “governo popular revolucionário” (PC do B, Colina, PCBR e ALN). Outras quatro (Ala Vermelha, PCR, VAR e Polop) usavam sinônimos ou demarcavam etapas para chegar àquilo que, em última instância, seria uma ditadura da vanguarda revolucionária. Variavam nas proposições intermediárias, mas, no final, de seu projeto resultaria um “Cubão”.
Ao contrário do que sucedeu nas resistências francesa e italiana ao nazismo e até mesmo na Revolução Cubana, onde conservadores e
anticomunistas se integraram na luta contra a tirania, as organizações armadas brasileiras não tiveram, nem buscaram, adesões fora da esquerda. A sociedade podia não estar interessada em sustentar a ditadura militar, mas interessava-se muito menos pela chegada à ditadura do proletariado ou de qualquer grupo político ou social que se auto-intitulasse sua vanguarda. A natureza intrinsecamente revolucionária das organizações armadas retirou-lhes o apoio, ainda que tênue, do grosso das forças que se opunham ao regime. Elas viam na estrutura da Igreja católica e na militância oposicionista de civis como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães um estorvo no caminho da revolução. Eles, por seu lado, viam na luta armada um estorvo para a redemocratização."