Feynmann e Cientista,
Por favor, expliquem melhor como é que é isso dos cientistas serem livres do método científico. Não tem essa frecura toda de ter que se pensar numa hipótese refutável, é isso? O cara é bam-bam-bam e não precisa se ater a esses detalhezinhos, sendo agraciado com o conhecimento como que por revelação? Sendo este conhecimento algo superior, transcendental, além do alcance das pífias tentativas de confirmação ou refutação por reles humanos?
Um pedaço de um artigo meu:
É muito difundida, mesmo por professores de ciência (Fernández et al., 2002), uma visão empirista que tende a se tornar um apanágio da pesquisa científica, onde esta se resumiria, basicamente, à observação, experimentação e medição. Estes, após a aplicação do método científico, levariam então o cientista a formular suas leis. Ou seja, um papel praticamente nulo é dado à livre construção de hipóteses e teorias pelo cientista que, efetivamente, seria simplesmente um organizador de dados advindos da natureza.
A concepção de que a ciência teria uma metodologia bem definida deve muito a Francis Bacon, para quem a perscrutação científica começaria com a pura observação, livre de pressupostos e preconceitos. Segundo Bacon, “o intelecto deve ser liberado e expurgado de todos eles, de tal modo que o acesso ao reino do homem, que repousa sobre as ciências, possa parecer-se ao acesso ao reino dos céus, ao qual não se permite entrar senão sob a figura de criança” (Bacon, citado em Silveira e Ostermann, 2002, p. 15). Apesar da eloqüência, estas palavras não encontram muito respaldo:
A observação não pode ser o ponto de partida para o novo conhecimento, pois observar implica dirigir a atenção para alguns aspectos da realidade. Desta forma, a observação pressupõe um sistema de expectativas, algo teórico que se antecipa e decide, a priori, em quais aspectos da realidade focar a atenção (Moreira e Ostermann, 1993, p. 114). Por exemplo, segundo o empirismo, Galileu teria concluído que todos os corpos caem com a mesma aceleração no vácuo, resultado obtido através de uma generalização de experimentos realizados em praça pública , como a célebre história da torre de Pisa. Mas um estudo mais aprofundado mostra que
a teoria dos movimentos de Galileu foi fortemente motivada por um problema teórico, qual seja o de dar suporte mecânico à teoria copernicana; os alegados experimentos, quando ocorreram, tiveram uma função diversa daquela propugnada pela história empirista (Silveira e Peduzzi, 2006, p. 36). Semelhantemente, os resultados negativos dos experimentos realizados por Michelson e Morley, sobre o vento de éter relativo ao movimento da Terra, costumam ser citados como decisivos para o descarte do éter e para os fundamentos da relatividade restrita (Silveira e Peduzzi 2006). Mas Einstein, que nem mesmo cita estes experimentos em seu artigo de 1905, onde são desenvolvidas as bases da relatividade restrita, adota a constância da velocidade da luz (supostamente obtida a partir dos experimentos de Michelson e Morley) como um postulado necessário à manutenção das leis do eletromagnetismo e da mecânica para diferentes referenciais. Ainda, para Einstein,
as bases axiomáticas da física não podem ser obtidas a partir da experiência, pois nenhum caminho lógico pode conduzir das percepções aos princípios de uma teoria. Os fundamentos de uma teoria científica são livres criações do espírito humano (Silveira e Peduzzi 2006, p. 40). É curioso que Michelson jamais tenha abandonado a hipótese do éter, apegando-se à idéia de que mesmo os resultados negativos de seus experimentos não tinham refutado sua existência. É digno de nota que, novamente,
a teoria da relatividade restrita foi motivada por um problema teórico: resolver uma inconsistência entre a mecânica e o eletromagnetismo. Os resultados negativos dos experimentos de Michelson-Morley, apesar de justificados teoricamente pela teoria de Einstein, não foram cruciais para a física clássica e, particularmente para Michelson (bem como para outros cientistas), não se constituíram em uma refutação da hipótese do éter (Silveira e Peduzzi 2006, p. 41). Segundo Lakatos, a relatividade restrita “predisse” e explicou os resultados dos experimentos de Michelson e Morley, não sendo obtida a partir destes. “Só então, vinte e cinco anos depois, veio a experiência de Michelson e Morley a ser encarada como “a maior experiência negativa da história da ciência”” (Lakatos 1979, p. 200). A visão empirista não é só difundida pelos professores: “esta visão de ciência vinculada ao aluno por autores e professores não é só deles: vem da própria ciência. Os cientistas, em geral, pensam que o conhecimento é tirado da natureza” (Moreira e Ostermann, 1993, p. 113). O que é resumido na provocativa sugestão de Lakatos de que “a maioria dos cientistas tende a entender um pouco mais de ciência do que os peixes de hidrodinâmica” (1979, pg. 182). Naturalmente, esta colocação precisa ser racionalizada com cuidado.
Percebemos, então, como fica fácil perpetuar os mitos da história da ciência, não dando a devida atenção ao seu caráter epistemológico. É irônico que cada uma das principais características da atividade científica propaladas nos livros didáticos sejam altamente discutíveis. Segundo Moreira e Ostermann (1993, p. 113), são elas:
1. o método científico começa na observação;
2. o método científico é um procedimento lógico, algorítmico, rígido; seguindo-se rigorosamente as etapas do método científico chega-se, necessariamente, ao conhecimento científico;
3. o método científico é indutivo;
4. a produção do conhecimento científico é cumulativa; linear;
5. o conhecimento científico é definitivo.
Como vimos, o método científico não começa pura e simplesmente com a observação livre de preconceitos. “Nem o mais puro, ou o mais ingênuo cientista, observa algo sem ter a cabeça cheia de conceitos, princípios, teorias, os quais direcionam a observação. O relato da observação também está impregnado de teoria” (Moreira e Ostermann, 1993, p. 113). O método científico também não apresenta uma série de estágios pontualmente definidos, nem um conjunto fixo de regras de procedimento.
“Fazer ciência é uma atividade humana, com todos os defeitos e virtudes que o ser humano tem, e com muita teoria que ele tem na cabeça. Conceber o método científico como uma seqüência rigorosa de passos que o cientista segue disciplinadamente é conceber de maneira errônea a atividade científica” (Moreira e Ostermann, 1993, p. 114). O método científico também não permite obter conhecimento simplesmente a partir de induções, uma vez que estas não validam enunciados universais. Todos os cisnes vistos podem ser brancos, mas isto não nos garante a brancura de todos os cisnes que existem (Popper, 1982). Ademais, observações de laboratório, que tão freqüentemente são usadas como símbolo da perscrutação científica, não permitem a obtenção de uma lei científica, uma vez que “um mesmo conjunto de pontos é compatível com um número infinito de funções” (Silveira e Ostermann, 2002, p. 23). As leis científicas são obtidas hipoteticamente com explicações muito mais abrangentes que a mera adequação com os dados de uma tabela. O método científico também não é cumulativo, no sentido de que o átomo atual não é uma simples evolução natural do átomo de Demócrito, e de que nosso universo atualmente conhecido é bastante diferente daquele pensado por Ptolomeu. Não houve um simples acúmulo de fatos, e sim uma constante alteração destes frente às novas explicações. “O conhecimento científico cresce e evolui não por mera acumulação, mas principalmente por reformulação do conhecimento prévio” (Moreira e Ostermann, 1993, p. 115). Finalmente, o conhecimento científico não é definitivo, como as considerações anteriores sugerem. “O conhecimento científico que temos hoje está baseado em modelos e teorias inventados e que podem estar equivocados ou apenas parcialmente corretos” (Moreira e Ostermann, 1993, p. 115).
FERNÁNDEZ, I.; GIL-PÉREZ ,D.; CARRASCOSA, J.; CACHAPUZ, A.; PRAIA, J. Visiones deformadas de la ciencia transmitidas por la enseñanza. Enseñanza de las Ciencias, 2002, 20 (3), 477-488.
LAKATOS, I. O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica. In: I. Lakatos; A Musgrave (Org.). A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento. São Paulo: Cultrix, EDUSP, p. 109-243. 1979.
MOREIRA, M. A.; OSTERMANN, F. Sobre o ensino do método científico. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v.10, n.2: p.108-117, ago.1993.
SILVEIRA, F. Lang. da; OSTERMANN, F. A insustentabilidade da proposta indutivista de “descobrir a lei a partir de resultados experimentais”. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 19, n. especial: p.7-27, jun. 2002.
SILVEIRA, F. Lang. da; PEDUZZI, L. O. Q.; Três episódios de descoberta científica: da caricatura empirista a uma outra história. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 23, n. 1: p. 26-52, abr. 2006. Popper, quando era professor de metodologia científica, costuma começar suas aulas assim: “Olá, serei seu professor de metodologia científica... só temos um problema: não existe uma metodologia científica” (Popper, “Autobiografia Intelectual”). O “Método Científico” acabou se tornando um apanágio onipresente da atividade científica, mas uma análise mais atenta mostra que um verdadeiro método científico está associado simplesmente à capacidade do cientista de discernir conhecimento justificado da hipótese injustificada. Neste sentido, concordo plenamente com o Cientista, quando coloca que o cientista não tem medo da realidade, no sentido de que suas conclusões devem, tanto quanto possível (e é aqui que podemos discutir muito mais pormenorizadamente sobre a atividade do cientista), perceber a improcedência de se sustentar uma hipótese que advém de sutilezas idiossincráticas sem um sincero compromisso de se correlacionar com a Natureza objetiva (aquela que, novamente, também pode ser discutida mais pormenorizadamente).
Não existe um método científico. Existem, isto sim, procedimentos que o cientista realiza para a obtenção de conhecimento justificado. E estes procedimentos não são de modo algum enumeráveis, como se esperaria de um suposto “método científico”. Naturalmente, não podemos confundir ausência de método com ausência de princípios gerais norteadores.