Talvez seja importante começar por ressaltar que esse texto fala de problemas da consciência no sentido de qualia, o que é chamado de "problema difícil" da consciência (o problema da experiência subjetiva em vez de meramente os processos físicos que a acompanham e as capacidades cognitivas que eles conferem), para o qual não se tem bem qualquer explicação ainda. Há problemas mais "simples" da consciência, que embora na realidade sejam tremendamente complexos, não enfrentam qualquer tipo de problema similar quanto a uma explicação evolutiva.
Tendo deixado isso claro...
O materialismo epifenomenalista: Nesse, a consciência (experiência subjetiva) é algo que emerge do cérebro, mas que não atua de volta sobre ele. Trata-se, a meu ver, de uma bizarrice epistemológica (esposada, a que sei, por uma minoria de materialistas). Esse sistema tem dois problemas: primeiro, se essa "consciência emergente" de fato não atuar de volta sobre o corpo, então ela viola a primeira lei da termodinâmica (a famigerada lei da conservação de massa e energia - na natureza nada se cria, nada se perde: tudo se transforma).
Non sequitur, a consciência "não atuar de volta sobre o corpo", da forma como é postulado, não diz nada sobre termodinâmica.
Seria como ter um computador executando um dado progrma que manda uma saída qualquer para um monitor desligado, ou simplesmente ignorado, ou ainda, cujas informações sejam expostas apenas à título de curiosidade, não para que se intervenha no decorrer da execução.
O fato dessa saída, que seria análoga ao qualia, não "atuar de volta sobre o corpo/programa", não faz com que ela viole qualquer lei física. O sinal ainda passa pelo cabo, energia é perdida em calor, etc.
De qualquer forma, os "equivalentes" físicos a essa transmissão do sinal de saída não são conhecidos no que se refere à qualia.
E segundo, por não atuar sobre o sistema, essa consciência não é essencial para a sobrevivência da espécie, e é portanto uma característica facultativa, e não obrigatória ou ubíqüa mesmo entre os seres humanos vivos (ou seja, a consciência, mesmo entre os humanos que você conhece, seria uma característica bem possivelmente rara!). Por esse modelo, espere bastantes zumbis à sua volta! (bem provavelmente a quase totalidade de pessoas que você conhece...).
Isso só seria verdade se supusermos que, o que quer que "gere" qualia, seja algo sujeito à variação individual significativa, o que pode simplesmente não ser o caso. Um contra-exemplo poderiam ser mamilos em machos; eles não são essenciais para a sobrevivência, são "portanto" facultativos, e no entanto, é raríssimo que existam machos sem mamilos.
Mamilos são ainda uma adaptação ao menos em fêmeas, e talvez qualia não seja nada disso, seja só um subproduto ou "perspectiva" da física de qualquer evento neuronal à eles correlacionado. Nesse caso, mesmo que qualia nunca tivesse surgido como adaptação, ainda não deveria se esperar essa "aleatoriedade" na sua presença, ou ausência por ser algo "facultativo" da mesma forma que simplesmente não esperamos que leis da física façam exceções por não serem biologicamente adaptativas em alguns casos. Por exemplo, talvez hajam estruturas sensíveis ao magnetismo em organismos que não "percebem", não usam isso para qualquer tipo de orientação; eles poderiam não ser mais afetados pelo magnetismo terrestre do que você é quando carrega muitas moedas no bolso. Mas não é por isso que o magnetismo deixará de atuar nesses casos.
Se isso estiver próximo da realidade, só se esperaria essa variação mais ou menos aleatória da presença de qualia se eles fossem correlacionados a presença de algo praticamente universal nos cérebros, ou cérebros de algumas espécies, mas em que variações ínfimas fossem capazes de determinar a ocorrência ou não de qualia.
O materialismo interacionista: esse é provavelmente o materialismo mais popular. Nele, a consciência (experiência subjetiva + auto-consciência) "emerge" dos estados neurais (na verdade, apenas de alguns estados neurais) e é idêntica a eles. É um modelo bonitinho e bem coerente. Mas ele tem, infelizmente, alguns probleminhas...
A primeira questão é, por quê a experiência subjetiva "emerge" de alguns estados neurais e não de todos? De quais estados neurais a experiência subjetiva emerge, e de quais ela não emerge, e por quê? Essa primeira questão é tão grave que já se chegou a dizer que o lado direito do cérebro não possui consciência (nas pessoas submetidas à cirurgia de seccionamento do corpo caloso - split brain patients - segundo relatado pelo físico Roger Penrose em "A Mente Nova do Rei", 1989, pg 427).
De fato, não é algo totalmente compreendido, e como tal, haverá muitas perguntas sem resposta, qualquer que seja a linha geral que se imagine poder responder. O único modo de fugir disso seria apelar à magia, sobrenatural, numa "resposta" que na verdade é só uma evasiva, dá tudo por triunfalmente "explicado", sem nunca ter explicado qualquer coisa.
Isso pelo menos até o aparecimento de um paciente cujo lado direito do "cérebro" (do córtex cerebral) dizia querer ser corredor automobilístico, enquanto o lado esquerdo alegava querer ser um "desenhista" ("draftsman" no original - breve relato disponível Neste Link).
Na verdade isso não diria necessariamente nada quanto a qualia. Poderia ser que os lados do cérebro tivessem "identidades" distintas, mas que um deles fosse um "zumbi filosófico" e o outro não. Aqui o autor se perdeu nos vários sentidos do termo "consciência". As duas diferentes "consciências" nesse caso são ainda aquelas dentro daquilo que se chama exageradamente de "problema simples" da consciência, não qualia e sua natureza, mas a parte processual/cognitiva.
Não que isso não cause complicações para o "problema difícil" e possivelmente várias linhas de tentativas de explicação; qualquer uma que cogite que qualia são emergentes de toda a cadeia de processos de uma "consciência simples" teria que tentar dar um jeito de explicar o que difere nessas duas consciências que faria a diferença, para que de uma pudessem emergir qualia, e da outra não. Mas o problema começa antes, a averiguação dessa experiência subjetiva nessas duas consciências para começar.
Qualquer dia vai aparecer alguém cujo cerebelo alega querer ser carpinteiro, a base cerebral alega querer ser violinista, as amígdalas cerebrais alegam querer ser assistente social, e os nervos do dedão do pé alegam querer ser auxiliar de babá em creche... Ou seja, a neurociência cognitiva está mais enrolada do que normalmente se imagina, e corre o risco de acabar se confundindo com alguma forma de pampsiquismo (de certa forma, os modernos conceitos de "multi-mind" e "society of minds", segundo relatados por Stan Franklin no livro "Artificial Minds" - 1995 -, bem como até mesmo a própria idéia dos memes, segundo Susan Blackmore, são conceitos que remetem a isso, ainda que de modo introdutório e não muito claro).
Aqui o autor só faz pouco caso de todo um campo de pesquisa (neurociência) que faz muito mais do que lidar com o problema difícil da consciência e que tem muito mais frutos do que vertentes teóricas/investigativas que ele esposa, junto com hipóteses que ele não se dá ao trabalho de tentar refutar e já classifica como "confusão", onde até faz uma misturada de memes com panpsiquismo, que não têm simplesmente nada a ver um com o outro.
Um segundo problema do materialismo interacionista é, já que a experiência subjetiva emergiu provavelmente através de processos evolutivos neo-darwinistas, qual a vantagem adaptativa que a experiência subjetiva confere? A primeira impressão é que na verdade a experiência subjetiva não confere absolutamente nenhuma vantagem adaptativa, e os sistemas poderiam viver muito bem sem ela, obrigado. Então por quê essa joça surgiu? Ou seja, aos materialista interacionistas cabe um enorme ônus de identificar e explicar qual a vantagem adaptativa da experiência subjetiva, se é que há alguma. Só aí poderemos falar em subjetividades para todos (uma espécie de Fome Zero materialista)! Se não houver tal vantagem adaptativa, então é bem provável que a experiência subjetiva seja facultativa, e rara, mesmo entre humanos.
Errado, como já anteriormente explicado. A evolução biológica não governa as leis da física, os organismos evoluem sujeitos a elas, façam ou não algum uso de todas suas particularidades.
Ainda assim, de qualquer forma, é possível que haja sim vantagens, e que tenha sido algo que evoluiu por ser adaptativo, ainda que talvez apenas dentro de um contexto histórico da evolução dos cérebros dos animais em que ocorra/se supõe que ocorra esse fenômeno -- algo que poderia não parecer exatamente útil da perspectiva de "invenção" que podemos acidentalmente assumir ao nos perguntarmos sobre adaptações biológicas. Uma comparação seria a exaptação do sistema excretor para o sistema reprodutivo, que não nos parece exatamente uma solução ideal quando pensamos como "criadores" e nossas próprias perspectivas do que seria ideal para nós. No decorrer da evolução real tudo que importa são vantagens conferidas por uma determinada variação naquele nicho, naquele contexto histórico, naquela conformação biológica anterior. Assim, o "uso" da consciência/qualia pode não ser talvez a melhor opção da perspectiva de "invenção" (hipótese que pode ser alvo de discussões intermináveis), mas ter calhado de ser útil para organismos dos quais descendem todos os animais que "usam" qualia no seu processamento cognitivo.
Como se isso não fosse o bastante, há de fato alguns indícios de que a experiência subjetiva não serve para nada, constituindo tais indícios em um terceiro problema para o materialismo interacionista. Me refiro a situações como as relatadas por Susan Blackmore em OBE (out-of-body experiences, experiências fora do corpo), onde por vezes a "consciência" (experiência subjetiva) se percebe "deixando o corpo" mas vê o corpo atuando normalmente (conversando, etc).
Isso simplesmente não quer dizer que "não sirva para nada". É petição de princípio.
Só partindo da assunção de que essa "saída do corpo" foi um fenômeno real, e não uma ilusão, e que então o corpo estava de fato lá, agindo normalmente como um zumbi filosófico. E essa assunção é simplesmente incompatível com 99,9% de quaisquer hipóteses materialistas, então não pode ser usada como incongruência ou evidência contrária.
É meio como dizer, "a evolução é a luta pelo mais forte, então há muitos indícios de que seja falsa, como seres claramente projetados para nós como o gado que nos dá leite e carne, e as bananeiras que nos dão bananas perfeitamente adaptadas para serem comidas por nós". Já assume a veracidade de toda uma outra teoria e simplesmente se ignora qualquer outra explicação proposta por aquela linha que se pretende refutar.
Na fenomenologia mediúnica isso também ocorre por vezes. Há também o altamente similar estado de mindfulness, conforme descrito por Benjamin Libet (em Editors' Introduction: The Volitional Brain Towards A Neuroscience of Free Will - Journal of Consciousness Studies, 6, No. 8-9, 1999, pp. ix-xxiii Benjamin Libet, Anthony Freeman and Keith Sutherland). E há também os bizarros e perturbardores fenômenos estudados e relatados pelo próprio Libet (no mesmo artigo acima) implicando na possível não existência de livre arbítrio, ou seja: a experiência subjetiva se percebe desejando, optando, e deflagrando o exercício da opção; mas o corpo já acionou o exercício da opção antes mesmo da "consciência de fato se sentir atuando". Em resumo, a experiência subjetiva não serviria para nada e, conseqüentemente, seria facultativa à luz da hipótese materialista evolutiva (zumbis por todos os lados! Esse Universo é um verdadeiro Quilombo).
Já explicado. É realmente uma possibilidade que a consciência não exerça qualquer influência na vontade, apenas se torne passivamente consciente dela, mas isso não quer dizer nada sobre sua inexistência, mesmo se supusermos também que essa seria a única função adaptativa possível. Nenhum fenômeno físico que seja irrelevante para os organismos deixa de acontecer apenas por isso.
Esses dados aproximam o materialismo interacionista do materialismo epifenomenalista, e remetem também a possíveis violações da primeira lei da termodinâmica. Costuma-se dizer nos meios céticos mal informados que o espiritualismo viola a primeira lei. Isso é falso. Na verdade, é o materialismo que potencialmene a viola (mas cá para nós; eu não tou nem aí com a primeira lei!).
Mas não acabou ainda. Mesmo que se consiga mostrar uma utilidade evolutiva para a experiência subjetiva, ainda haverá um quarto problema para o materialismo interacionista, que é o que eu costumo chamar dos "Qualia Ocultos" (Hidden Qualia). Aparentemente, além do estado de consciência normal, possuímos vários outros onde inclusive brotam experiências (qualia) absolutamente sem função e/ou vantagem evolutiva (presumivelmente). Libet, no artigo dele citado acima, narra uma esperiência mística desse tipo vivenciada por Krishnamurti. Kenneth Ring comenta sobre pacientes que tiveram NDE (e também pessoas em estado meditativo) onde relatam terem visto em todas as direções ao mesmo tempo (omnidirecional e 360 graus - descrito no livro "Mindsight", 1999, pg. 161-162 - um paciente disse: "Three hundred and sixty degree spherical vision. And not just spherical. Detailed!"). Pra que diabos serve uma coisa dessas dentro do paradigma materialista interacionista? Penrose narra, em "A Mente Nova do Rei", pg. 468, casos de um globalismo de experiência subjetiva extrema, envolvendo criações (ou descobertas) matemáticas de Poincaré e também criações musicais de Mozart. Deveríamos inclusive lembrar o intrigante fato de que muito disso que se encaixa no que eu chamo de Hidden Qualia fornece paralelos justamente com a mecânica quântica, conforme relatado e analisado por Fritjof Capra em "O Tao da Física". Ora, mas uma vivência da mecânica quântica está muito além da nossa experiência de vida conforme o esperado pelo materialismo interacionista evolutivo! Pra que servem então esses Hidden Qualia? Resposta: para nada!
Ok, mesmo aceitando tudo isso como tal, sem qualquer exame, muito bem, podem não servir para nada, ser só meio como o reflexo do "chute" que temos ao receber uma pancadinha no joelho, que não refuta a função do sistema nervoso.