Caso de menina ignorada após atropelamento desafia moral chinesaMedo de perda financeira e cultura que preza pouca compaixão por estranhos explicariam descaso de 7 minutos por criança que morreuO caso da pequena Yue Yue, de 2 anos, que morreu na sexta-feira após oito dias internada no hospital vítima de atropelamento, depois do qual ficou sem socorro por sete minutos, exibiu ao mundo uma face cruel que perpassa a sociedade chinesa contemporânea: a carência de valores éticos e morais.
A menina foi atingida por uma van dentro de um mercado na cidade de Foshan, sul da China. Poucos minutos depois, outro veículo atropelou a criança, que permaneceu no chão, apesar de câmeras de segurança terem registrado a passagem de 18 pedestres pelo local. Todos ignoraram a vítima, finalmente socorrida pela catadora de lixo Chen Xianmei.
As imagens logo chegaram à internet. Em uma tarde, o tema estimulou mais de 150 mil posts no Weibo, o microblog estilo Twitter da infosfera chinesa. O vídeo com as fortes imagens do acidente (veja abaixo) – e que expõe o descaso dos pedestres – contabilizou mais de 1 milhão de acessos em um único dia no Youku, espelho do Youtube na China. As reações dos internautas iam de indignação a tentativas de explicar a frieza com que Yue Yue foi tratada. Triste, no entanto, foi o fato de muitos chineses terem expressado que teriam a mesma atitude.
Na quinta-feira, o
China Daily, jornal oficial do governo chinês em língua inglesa, trouxe uma enquete na qual 64,8% afirmaram que ajudariam idosos em caso de acidentes ou incidentes na rua. Outros 26,9% disseram que dependeria da situação, enquanto 8% afirmaram que não ajudariam.
Entre as justificativas para o descaso, 7,2% apontaram o fato de não ter nada a ver com a situação, enquanto 5,3% disseram que a falta de conhecimento sobre primeiros socorros seria predominante na decisão de não prestar auxílio. A grande maioria, 87,4%, respondeu que o medo de se envolver em "problemas" os impediria de ajudar as vítimas.
E que problemas seriam esses? Um caso de 2006 é recente na memória dos chineses. Naquele ano, Xu Shuolan, então com 65 anos, caiu e quebrou a bacia ao tentar embarcar em um ônibus na cidade de Nanjing, capital da Província de Jiangsu, perto de Xangai. Um pedestre, Peng Yu, então com 26 anos, auxiliou a mulher e a levou ao hospital, onde esperou pelos parentes da vítima. Como agradecimento, recebeu da idosa um pedido de indenização na Justiça no valor de cerca de US$ 18 mil. Num caso que ficou conhecido por todo o país, a corte exigiu que o rapaz pagasse US$ 6 mil. A alegação de Xu era de que ela havia sido empurrada contra o ônibus pelo homem que a ajudou.
A falta de cuidado com as evidências sobre o incidente e a repetição de casos semelhantes em cortes chinesas provocaram um fenômeno já discutido no país: pouca gente presta auxílio a quem se acidenta ou sofre problemas nas ruas. Por quê? Eles teriam medo de desembolsar grandes quantias em dinheiro, muitas vezes em julgamentos ineficientes.
Um dos motoristas que atropelaram a menina chegou a dar a constrangedora declaração de que, se ela morresse, teria de pagar US$ 1,5 mil. Se sobrevivesse, o valor poderia ser dez vezes maior.
Mas só motivação financeira seria responsável por um comportamento que beira o desumano e choca pela crudeza? Para a jornalista e escritora chinesa Lijia Zhang, autora do livro "A Garota da Fábrica de Mísseis" (publicado no Brasil), há uma questão cultural presente. Na China, existe a crença tradicional em torno do shaoguanxianshi, ou “não se envolva em um problema que não é seu”. Basicamente significa que, desde pequenos, eles aprendem a ter pouca compaixão com estranhos. O cuidado se resume apenas àqueles do próprio círculo, seja ele familiar, de amizade ou de negócios, enumera Lijia. Ela ainda cita o primeiro sociólogo chinês, Fei Xiaotong, que aponta o egoísmo como o principal defeito da sociedade chinesa.
No Brasil, talvez o equivalente ao ditado chinês seja o famoso “não se meta onde não é chamado”. O problema é o limite entre quando é válido ou não se envolver. No caso de uma criança ferida em meio a uma via, o comportamento coletivo de desprezo inevitavelmente acende o debate acerca de valores morais. A China parece viver uma crise nesse sentido.
Para Lijia, a falta de uma estrutura de valores aumenta essa crise. Antes, diz a escritora, o egoísmo já estava presente no tecido social, mas era amenizado pela moral tradicional e pela religião. Ambos foram vigorosamente atacados durante os anos de governo de Mao Tsé-tung (1949-1959), especialmente durante a Revolução Cultural, que durou de 1966 a 1976. O comunismo naquele tempo transformou-se na religião. Hoje, esse sistema faliu e deu lugar a uma ecomomia de mercado, com todas as características capitalistas. Segundo Lijia, é daí que se criou um vácuo espiritual.
Como solucionar? A Província de Guangdong, onde está Foshan, a cidade do acidente envolvendo Yue Yue, quer criar leis exigindo que os cidadãos prestem atendimento a quem necessita. Para o advogado Zhu Yongping, a aplicação de normas é natural. "Se pudermos usar nossas leis para guiar a moral e a ética, nossa moral pode deixar de piorar", afirmou Zhu ao
China Daily na sexta-feira.
Uma alternativa que parece estar longe de ser a solução, e cria regras quando ainda faltam valores.
HeroínaA polêmica – e principalmente a comoção – em torno do caso de Yue Yue transformou a catadora de lixo em uma heroína momentânea. Uma empresa da cidade natal de Xianmei chegou a oferecer-lhe 100 mil yuans. Outra, 20 mil. Queriam embarcar na história e, talvez, angariar simpatia por parte de consumidores.
Xianmei, que já havia desviado o padrão de comportamento ao ajudar a menina acidentada, surpreendeu outra vez. Visitou os familiares da criança no hospital e doou a eles o dinheiro, a fim de que fossem pagos os custos. "Nem faço ideia de quanto vale este dinheiro", disse a catadora.
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