Quanto às cotas raciais minhas objeções acho que são todas as que já foram feitas, começando pela que vai contra o último argumento do Juca, então:
1- tratamentos desiguais "compensatórios" (afirmação positiva, discriminação positiva, leis compensatórias, seja lá o que for ou como queira se chamar) que se dirigem a um grupo que é ícone/símbolo do que se quer combater e não o próprio objeto tende a construir dois grupos de mais discriminados/privilegiados ainda. Digo, assume-se que a maioria dos pobres é negra e que por isso os negros em geral merecem receber um privilégio e não os brancos, mas como o que se quer combater é a pobreza e não a negritude você acaba gerando duas novas desigualdades/injustiças.
Primeiramente a do branco que sempre foi pobre e oriundo de ascendências pobres e que nunca teve ascendente escravocrata, que de repente é de uma longa família de boias frias no interior das Alagoas, e que foi o primeiro de uma longa sequencia de gerações a ter o diploma de ensino médio... e que agora vai ter que disputar um vestibular mais difícil do que o do seu vizinho em mesmas condições socioeconômicas, porém negro. Segundamente a do negro cuja família nunca foi de escravos, talvez tendo sido até de escravistas, ou que foi bisneto de escravos mas que conseguiu subverter este processo há gerações e hoje é uma típica família de classe média para classe média alta e que vai ter privilégios em relação a branco boia-friazinha e disputar em pé de igualdade com o negro boia-friazinha.
2- Acho válido o medo de que a partir do sistema de cotas qualquer conquista acadêmica de negros (mesmo não cotistas, como eu) passe a ser minimizada culturalmente, o famoso "ahhhh, Medicina? também deve ter passado na cota, assim é fácil" e isso pode sim gerar futuras implicações no acesso destes ao mercado, por exemplo.
3- Se por um lado a classificação étnica por terceiros (aplicada na UNB e na UEZO, entre outras) levaria ao quadro do tópico 1, a auto-classificação (aplicada na UERJ e acho que na Bahia) levaria a loiros de olhos claros de classe média para alta oriúndos de boas escolas particulares da Zona Sul do Rio aplicando a velha lei de gerson (vi um caso exatamente assim na UERJ)
4- São paliativos que tendem a se tornar "direitos naturais" dos "negros" no futuro, mesmo em uma sociedade igualitária, como ocorreram a "tratamentos diferenciados" em relação a mulheres. Depois que o cachorro agarra o osso é difícil de deixar pegar de volta.
Quanto às cotas sociais, eu era a favor por entender que o erro que descrevi no item 1 não ocorria aí, isto é: se você tenta combater a pobreza mirando nos pobres propriamente ditos e não num símbolo do que é ser pobre então quando os seus intentos são alcançados sobre um indivíduo que foi alvo da discriminação positiva o cara deixa de ser pobre e portanto deixa de poder pleitear aquele benefício; ao mesmo tempo você não teria um grupo de indivíduos que estariam duplamente excluídos e prejudicados por serem do grupo alvo (pobres) mas não carregarem consigo o símbolo/ícone (afro-negritude).
Também entendia que um sujeito que tirasse 80 num vestibular tendo estudado a vida inteira numa escola estadual típica da vida e nunca tendo cursado sequer um CNAzinho não podia ser acusado de menos mérito/competência do que um outro que, tendo tirado 93 na mesma prova, houvesse estudado num Notre Damme tendo cursado Instituto Goethe desde o 7 aninhos de idade; portanto para mim era válida a idéia de que tratar desiguais de fora igual contribuia para perpetuar a desigualdade.
Só que em 2002 eu ainda era um quase adolescente, com a típica inocência da idade, e achava mesmo (não sei se achava, mas se não achava, não levava muito em consideração a possibilidade contrária) que só as pessoas de fato caracterizadas como alvo pelo edital se inscreveriam naquele sistema. Tomei um choque de realidade logo nos primeiros vestibulares quando começaram a sair nos jornais denúncias de meninas de classe média alta, pais com altas patentes da Marinha, oriúndas do Colégio MIlitar, loiras, passando nas cotas raciais e sociais da UERJ.
2 anos depois ingressei na UERJ e vi que era verdade, que a imensa maioria dos cotistas não respondem aos critérios socioeconomicos previstos nos editais, eu era, mas na época eu estava absolutamente dentro dos critérios estabelecidos (uma excessão) e mesmo assim minha nota no vestibular tinha ficado acima da nota de corte para não cotistas. Então passei a acreditar que o sistema de cotas para pobres só faria sentido se houvesse filtros eficientes e punição eficaz a quem fraudasse as normas, disse isso várias vezes aqui no fórum e era o que eu repetia toda vez que tocava no assunto, mas... que merda... eu estava propondo?
Os critérios para acesso a cotas são os seguintes
1 apresentar comprovante de endereço em seu nome ou algo que valha (nome dos pais, nome de terceiro com declaração do terceiro de que você mora lá)
2 apresentar comprovante de renda próprio e das pessoas que VOCÊ DECLAROU que vivem contigo ou declaração de próprio punho dizendo que não possui renda ou que possui renda informal especificando o valor
3 em caso de cotas raciais, autodeclaração de negritude (que dependendo do sistema pode ou não ser verificada por terceiros)
4 em caso de cotas sociais, histórico escolar comprovando ter se formado em escola pública
A questão chave é que nenhum adolescente de classe média ou classe média alta precisa fraudar nada para se adequar a estes critérios, os filhos do Agnóstico, os filhos do Barata e os filhos do Snow (só para citar 3 foristas que não fazem questão de omitir que são "bem de vida") podem perfeitamente se candidatar como cotistas raciais aqui na estadual do Rio, quando estiver na época, sem nenhuma dificuldade ou ilegalidade. Se derem a sorte de conseguirem vagas para os pimpolhos em algum CPII, IFSP ou Colégio Militar da vida ainda poupam um dinheirão, dão uma formação de altíssimo padrão aos filhotes e ainda podem botar os mesmos pra concorrer em qualquer universidade cotista do país.
Bota a conta de luz da casa de praia no próprio nome, declara morar sozinho lá (até onde eu saiba não é tecnicamente fraude), declara não ter renda e viver de ajudas eventuais de parentes (não é fraude e, provavelmente, nem mentira), declara ser negro (ou apresenta o histórico do IFSP). Pronto, passou em Direito com 54 pontos enquanto os honestos fizeram 70 pontos e ficaram reprovados. Aliás, este é um outro ponto, ao ser um meio facílimo e sem riscos para aplicação da Lei de Gerson as cotas reforçam e muito no imaginário popular esta ideia tão brasileira do jeitinho, da malandragem safada.
Quanto ao Prouni eu sou contra por todos os motivos citados (conheço pessoalmente gente de boas condições financeiras, uma filha de professores universitários e um filho de advogados e morador de um amplo ap em Copacabana, que usou do tipo de artifício para se formar em faculdades relativamente bem conceituadas - e muito caras - como Puc-Rio e UCAM, totalmente grátis através do PROUNI) e fundamentalmente pelo fato de que o PROUNI na verdade é um projeto de subsídio estatal à universidades privadas, a balela de aumento da oferta de ensino para os mais pobres é só a desculpa para o derrame de verbas na compra de milhares de vagas no atacado e a preço superfaturado até para o varejo (as universidades particulares cobram do MEC o preço de tabela, que este paga bonitinho, mas a maioria dos alunos na verdade não pagam o preço de tabela, já que muitas possuem descontos de convênio, de pagamento antecipado, de diploma anterior, de transferência, o escambau).
Hoje estou na UFRJ, não sou cotista, e tenho colegas cotistas cujo padrão de vida é obviamente incompatível com os critérios.
Não é que nenhum pobre seja beneficiado com as cotas, tenho, por exemplo, um colega de turma que de fato é pobre, negro inclusive, e é cotista... mas mesmo sendo bastante pobre, ele teve a oportunidade de fazer o ensino médio na Fiocruz, uma das escolas públicas mais conceituadas do país, passou em segundo lugar no vestibular, estaria lá com ou sem cota.
Mesmo que o sistema de cotas tenha feito justiça a alguns, minha observação me faz acreditar que ele funciona muito mais como uma forma de facilitar o acesso dos espertos do que de promover uma disputa igualitária, então não por uma razão ideológica, mas por uma questão pragmática, eu sou contra cotas, radicalmente contra cotas, no Brasil, pelo menos.