É um assunto complicado para mim. Por um lado, minha filosofia ética particular presume que o ser humano é dotado direitos naturais e absolutos, ou seja, que não dependem do contexto. Por esse motivo, obviamente, um negro tem os mesmíssimos direitos dos brancos, nenhum a mais e nenhum a menos, logo as cotas seriam imorais.
No entanto eu entendo que a lei não existe para ser justa, e frequentemente ela não é. A lei também tem objetivos pragmáticos e imediatos, por isso a lei muda, a ética não. Então cabe a pergunta: os negros e os brancos têm direitos iguais em nossa sociedade? Não apenas segundo a lei, mas em seu dia-a-dia. Evidentemente que não, os negros têm mais dificuldade em exercer seus direitos naturais do que os brancos por uma variedade de motivos.
É por isso que a lei tenta equilibrar a balança. A lei do racismo, por exemplo. Xingar um negro de "macaco" não é pior do que xingar um branco de o que quer que lhe ofenda tanto quanto "macaco" ofende um negro. Mas xingar um negro dá cadeia, xingar um branco não. Isso não é justo, mas não quer dizer que não é certo. O fato é que o negro é chamado de "macaco" com muita frequência e o branco é ofendido tão pouco que sequer consegui pensar num xingamento equivalente. Então a lei existe apenas com o objetivo pragmático e imediatista de inibir uma forma de crime que acontece mais do que a outra.
Eu, pessoalmente, preferiria que houvesse apenas uma lei para lidar com todo tipo de ofensa, em vez de uma para os negros, outra para os gays, outra para os gordos... mas eu entendo a escolha de diversificar e reconheço que há certo sentido nisso.
Agora as cotas raciais em particular: é fato que há poucos negros na universidade, vou até contar uma anedota (se você está com os dedos coçando para escrever que minha experiência pessoal é irrelevante, sinta-se livre para pular este parágrafo). Um dia eu estava conversando com dois colegas da pós-graduação, um é de São Tomé e Príncipe e outro do Quênia, os dois pretos. Como o queniano não fala português, conversávamos em inglês, mas a certo ponto da nossa caminhada de volta para casa após jantar no restaurante da universidade nós já tínhamos ficado sem assunto. Nesse momento um carro parou ao nosso lado e a mulher no banco do carona começou a falar inglês com a gente para fazer propaganda de um serviço para ligações internacionais que ela dizia ser mais barato e vantajoso. Depois que ela foi embora o queniano, que estranhou a situação, me perguntou: "Ela falou inglês com a gente por causa da nossa cor?"
Naquele mesmo dia eu tinha conversado com um monte de outros negros, e nenhum deles era brasileiro. Eu jantei ao lado de três haitianos e outro são-tomeense. Foi aí que eu me dei conta de que se eu topar com um negro da minha faixa etária (e portanto que não entrou pela política de cotas) dentro da minha universidade, há boas chances de ele não ser brasileiro. Eu chuto que entre um terço e metade dos negros que eu conheço e que não entraram por cotas é estrangeira.
A falta de acesso dos negros à universidade é um problema. Mas eu ainda acho que as cotas raciais em particular são uma medida desnecessária porque a barreira que existe para se entrar na universidade não é racial, é social e educacional. Há uma concentração maior de negros nas camadas sociais de baixa renda, e são justo essas camadas que são mais prejudicadas por educação de má-qualidade. Uma vez existindo as cotas sociais (essas sim, na minha opinião, profundamente necessárias porque o sistema é injusto), creio que os negros entrarão naturalmente na universidade numa proporção mais ou menos igual à proporção em que eles existem nessas classes mais baixas. Os negros só precisariam de cotas específicas para eles se fossem menos inteligentes, mas sabemos que esse não é o caso.
Mas se a porcentagem reservada para os negros por cotas raciais for mais ou menos equivalente a proporção na qual eles acabariam passando por cotas sociais de um jeito ou de outro, não faz muita diferença na prática, então talvez essa discussão sobre se essas cotas deveriam existir ou não gere muito barulho por quase nada.