Estou lendo o livro
The Cambridge Companion to Atheism, onde 18 pensadores escrevem sobre temas como a história do ateísmo, argumentos contrários e a favor, sua relação com o naturalismo/fisicalismo, suas implicações na sociedade, etc.
O capítulo com os argumentos contra o ateísmo é escrito por ninguém menos do que nosso estimado William Lane Craig. Vou fazer um apanhado dos argumentos que ele defende:
A) Refutação dos argumentos ateístas1. Presunção de ateísmo:Para Craig a presunção de ateísmo seria o argumento segundo o qual na falta de evidência sobre Deus, deveríamos presumir que ele não existe. Craig argumenta que a ausência de evidência só é evidência de ausência quando a entidade postulada devesse obrigatoriamente deixar uma certa evidência e essa evidência não fosse encontrada; portanto cabe aos ateus o ônus de demonstrar que se Deus existisse ele deveria fornecer mais provas de sua existência do que ele já fornece. Ele ainda lembra que para o Cristianismo Deus já deixou provas enormes na forma de milagres, da criação do universo a partir do nada e da ressureição de Cristo e segundo ele há boas evidências científicas e históricas para isso (acho que nesse ponto ele forçou muito a barra.)
Como a presunção de ateísmo estaria refutada, o debate se moveu para a "ocultidade" (hidenness) de Deus, com alguns ateus argumentando que se ele existisse ele deveria fornecer evidências que tornassem óbvia a sua existência para todas as pessoas. Craig diz que Deus não está interessado em mostrar sua existência, mas criar uma relação amorosa com suas criaturas e providencialmente ordenou o mundo para proporcionar apenas o suficiente de evidências para trazer para a fé salvadora as pessoas com mente e coração abertos (ou seja, aquelas dispostas a entrar nessa relação de amor), portanto a evidência que existe seria satisfatória (naturalmente a fé salvadora seria o Cristianismo, mas ele nada fala sobre por que essas evidências parecem estar distribuídas geograficamente e Deus deixa bilhões de pessoas serem enganadas por falsas religiões.)
2. Incoerência do teísmo:Este é um ponto em que concordo com o Craig em 100%. Os argumentos sobre a incoerência da definição de Deus são imprestáveis, uma vez que tudo o que uma pessoa sensata precisa fazer para salvar Deus de definições contraditórias é redefini-lo de formas que não sejam contraditórias, ora bolas! Segundo Craig, a Bíblia diz muito pouco sobre as propriedades de Deus e as ideias sobre sua onipotência, oniciência, transcendentalidade, etc., vêm de filósofos medievais, por isso os filósofos cristãos e teólogos teriam uma ampla margem de manobra para redefini-lo conforme a necessidade, então as críticas contra a coerência da ideia de Deus, longe de enfraquecê-la, a fazem evoluir e se fortalecer. Craig diz que hoje já existem definições mais flexíveis de onisciência e onipotência que não são logicamente inconsistentes.
3. O problema do mal:Definindo como "sofrimento gratuito" o sofrimento que não é necessário para atingir um bem adequadamente compensatório, os ateus formulariam o problema do mal como (1) Se Deus existe, o sofrimento gratuito não existe, (2) o sofrimento gratuito existe; (3) logo Deus não existe. Segundo Craig, nenhum teísta é obrigado a aceitar a verdade de (2). Segundo ele todo mundo admite que existe sofrimento
aparentemente gratuito, mas há três razões porque não se pode inferir que o sofrimento aparentemente gratuito não é sofrimento genuinamente gratuito:
I. Não estamos em uma boa posição para dizer com confiança que Deus não tem razões moralmente suficientes para permitir o sofrimento. Nossas faculdades cognitivas são limitadas e não sabemos que implicações uma ação pode ter a longo prazo em um mundo de agentes livres, ações que parecem desastrosas a curto prazo podem resultar no bem último a longo prazo e vice-versa. Como a divina providência atua sobre toda a história e está limitada pela restrição de respeitar o livre-arbítrio, não temos como saber se os males aparentes permitidos por Deus não seriam benéficos a longo prazo.
II. O Cristianismo contém doutrinas que aumentam a probabilidade da coexistência entre Deus e o mal, enquanto os ateístas mantêm que se Deus existe, é improvável que exista o mal. Os cristãos podem tentar mostrar que se Deus existe e certas doutrinas são verdadeiras, então não é surpreendente que o mal exista. Entre essas doutrinas estão: (i) o objetivo principal da vida não é a felicidade, mas o conhecimento de Deus, o sofrimento pode ser bom se produzir um conhecimento mais profundo a respeito do Deus que vai lhe salvar; (ii) a humanidade ganhou liberdade moral para se rebelar contra Deus e seu propósito; (iii) o propósito de Deus se estende pela eternidade, o sofrimento temporal é uma barganha perto da felicidade eterna e alguns sofrimentos podem ser justificáveis se avaliados à luz da vida eterna; (iv) o conhecimento de Deus é um bem incomensurável, os sofrimentos da vida não podem nem mesmo ser comparados com a realização que conhecer Deus pode trazer.
III. Há mais garantia para se acreditar que Deus existe do que para se acreditar que o sofrimento que existe no mundo é gratuito. Craig inverte o silogismo do problema do mal argumentando: (1) Se Deus existe, o sofrimento gratuito não existe, (2) Deus existe; (3) logo o sofrimento gratuito não existe. Nesse caso a discussão recai em qual dos silogismos é verdadeiro, o primeiro ou o segundo. O problema do mal só seria realmente um problema para aqueles que acham mais provável a existência de sofrimento gratuito do que a existência de Deus, quem não tem dúvidas sobre a existência de Deus simplesmente não acredita em sofrimento gratuito.
B) Argumentos em favor do teísmo1. O argumento da contingênciaUma declaração simples do argumento é: (1) tudo o que existe tem uma explicação para a sua existência (seja pela necessidade se sua própria natureza ou seja por uma causa externa), (2) se o universo tem uma explicação para a sua existência, essa explicação é Deus, (3) o universo existe; (4) portanto a explicação para a existência do universo é Deus.
Nesse argumento (1) seria uma versão modesta do princípio da causa suficiente que segundo Craig contorna as objeções ateístas típicas feitas contra a versão forte do princípio; (1) seria compatível, por exemplo, com a existência de fatos brutos a respeito do mundo, tudo o que ele proíbe é apenas que algo possa simplesmente existir
inexplicavelmente.
A premissa (2) é uma contraposição à visão de mundo ateísta de que o universo simplesmente existe como uma coisa contingente bruta; ele considera (2) plausível porque se o universo inclui toda a realidade física, então a causa do universo deve transcender o espaço e o tempo e portanto não pode ser temporal e nem material, e haveria apenas dois tipos de objetos que podem ser atemporais e imateriais: objetos abstratas e mentes, mas objetos abstratas não participam de relações causais, logo a única causa viável para a existência seria uma mente.
A premissa (3) apenas declara o óbvio e, logo, Deus existe. A contestação ateísta seria que o universo poderia ter um explicação para sua existência contida em uma necessidade de sua própria natureza. A tréplica teísta vem na forma do próximo argumento:
2. O argumento cosmológicoO famoso argumento cosmológico é que (1) tudo o que começa a existir tem uma causa, (2) o universo começou a existir; (3) portanto o universo tem uma causa.
Para Craig (1) é trivialmente verdadeiro (para mim é trivialmente falso: nunca na história deste universo se testemunhou algo começar a existir, apenas transformações de coisas pré-existentes, e essas sim sempre tiveram causas. A única coisa que supõe-se que um dia começou a existir é o próprio universo. Mas este post não é sobre mim, então concentremo-nos no Craig
)
A premissa (2) poderia ser demontrada tanto por argumentos filosóficos dedutivos que mostrariam que uma regressão temporal infinita levaria a absurdos (embora ele observe que há quem defenda que a matemática de Cantor resolve esses absurdos, para ele os conceitos cantorianos não podem ser transpostos para o universo espaço-temporal sem criar outros absurdos contra-intuitivas) quanto por observações científicas indutivas -- ele cita obviamente a teoria do Big Bang, fala que mesmo teorias alternativas para a origem do universo que evitam uma singularidade inicial ainda exigem um começo em algum momento e por fim cita a Segunda Lei da Termodinâmica alegando que se o universo tivesse uma idade infinita ele já deveria ter atingido sua morte térmica.
Um argumento dedutivo que achei particularmente interessante é que se o tempo fosse infinito, o momento presente jamais deveria ter sido alcançado, já que uma quantidade infinita de tempo deveria ter se passado antes -- se eu pegar dinheiro emprestado com você e disser que vou te pagar daqui a uma quantidade infinita de tempo você deve entender que eu não vou te pagar nunca, da mesma forma o tempo presente nunca poderia ter sido alcançado, isso seria equivalente a aceitar que fosse possível alguém escrever todos os números negativos, começando em menos infinito e terminando em -1; o corolário é que não se pode atravessar uma série infinita.
Voltando à contestação do argumento anterior, segundo Craig para algo existir por uma necessidade de sua própria natureza ela deve existir atemporalmente ou sempiternamente, portanto o universo não pode ser metafisicamente necessário, já que existe temporalmente. Esta conclusão fecharia a última brecha no argumento da contingência acima. Minha opinião é de que o universo é de fato sempiterno: ele é eterno no sentido de que o tempo está contido nele, não é ele que está contido no tempo; como não faz sentido falar em um tempo além do universo, pode-se dizer com toda propriedade que mesmo tento iniciado a 13,7 bilhões de anos atrás o universo sempre existiu.
Não obstante, Craig conclui que o universo tem uma causa e as propriedades que essa causa deveria possuir são aquelas todas tradicionalmente atribuídas a Deus: incausado, pessoal, sem um início, imutável, imaterial, atemporal, superpoderoso, etc.
3. Argumento teleológicoTambém conhecido como argumento do design: (1) o ajuste-fino do universo é devido a necessidade física, ao acaso ou ao design, (2) sabemos que não é devido a necessidade ou ao acaso; (3) logo é devido ao design.
Todos estão familiarizados com o conceito de ajuste-fino, segundo o qual as constantes universais da física e as condições iniciais do universo parecem ajustados precisamente e um ligeiro desvio em seus valores tornaria o universo inóspito à vida.
A premissa (1) já assume que o ajuste-fino realmente existe (o que é controverso) e é relevante (o que também é controverso), apenas propõe que há três possíveis explicações para ele. Em (2) ele defende que qualquer tentativa de explicar o ajuste-fino por necessidade resulta em mais ajuste-fino, por exemplo, a teoria física mais bem sucedida em tentar unificar as leis da nutureza, a Teoria-M prevê que o nosso universo deveria ter 11 dimensões, mas ela não explica porque ele teria que ter exatamente 11 dimensões e não 12. Eu acho que ele está tão correto que o próprio Deus que ele invoca para explicar o universo deveria ter sido ajustado finamente para ser um Deus interessado em criar vida, e não criar outros deuses ou se contentar em meramente observar rochas ou jogar Sudoku pelo resto da eternidade, mas ele não explica a teleologia de Deus.
A respeito do acaso, ele invoca a estatística Bayesiana para defender que é mais provável um universo tão finamente ajustado ser obra de design do que do acaso. A melhor tentativa de salvar a hipótese do acaso é a Hipótese dos Muitos Mundos (HMM), mas Craig a rejeita alegando que a hipótese do design é mais simples e portanto favorecida pela navalha de Occam: é mais simples postular um projetista cósmico do que um universo infinitamente "inchado" e "artificial" como o proposto pela hipótese dos muitos mundos e apenas se um partidário da HMM pudesse demonstrar um mecanismo único e comparativamente simples de gerar um conjunto de universos variados com propriedades aleatórias ele poderia superar essa dificuldade, mas não há maneiras conhecidas de gerá-los; além disso não há evidências da existência de um conjunto de outros mundos além de nosso próprio mundo finamente ajustado.
4. O argumento moralO último argumento de Craig é o argumento moral (no entanto no princípio do capítulo ele diz haver mais, esses quatro foram escolhidos devido às limitações de espaço): (1) se Deus não existe, valores e deveres morais objetivos não existem, (2) valores e deveres morais objetivos existem; (3) logo Deus existe.
Esse argumento é bem conhecido e diz que (1) se não há um Deus para avaliar o que é bom e o que é mal, qual é a base para valores absolutos? Que motivos temos para acreditar que os seres humanos são especiais? Por que achar que temos obrigações morais para fazer o ue quer que seja. A alegação de que uma forma de moralidade atávica evoluiu como o
Homo sapiens para auxiliar a sobrevivência da espécie não é contestada, mas é acusada de não trazer uma restrição objetiva sobre o que é certo e errado, que se ela não está ancorada em algo transcendental é algo efêmero e temporal.
Se nossa abordagem para uma teoria meta-ética é para ser sério, em vez de uma mera "lista de compras em um supermercado" de que comportamentos ajudam ou atrapalham, então algum tipo de explicação deve ser dada para por que algumas proposições morais são verdadeiras e Craig contesta que esses valores possam ser verdadeiros em si mesmos ou existam em si mesmos. E mesmo que eles existissem, que obrigação teríamos em segui-los? Nos teístas essa obrigação vem das ordens de Deus, mas o ateu não tem obrigação de arbitrariamente escolher a virtude em vez do vício.
Além disso, se os valores e deveres morais absolutos existem independentemente de Deus, não é uma incrível coincidência que nossa espécie tenha evoluído através da cega seleção natural para ser compatível justamente com esses mesmos valores? Seria quase como se esses valores estivessem esperando a gente chegar. Para ele é muito mais plausível visualizar tanto o reino natural quanto o reino moral como se estivessem sob a hegemonia de um criador e legislador divino do que pensar que essas duas ordens da realidade inteiramente independentes uma da outra se misturaram por acaso.
Surpreendentemente Craig sequer se dá ao trabalho de contestar a resposta óbvia de que não existem valores morais absolutos e eles estão sim fundamentados em princípios imanentes e temporais.